2017: Odisseia na oficina

11/01/2017

Lembro-me muito bem do dia em que me mostraram pela primeira vez um “computador de diagnóstico”, daqueles que hoje existem em quase todas as oficinas com um mínimo de condições. O responsável da marca, um engenheiro que muito prezo ainda hoje e com uma carreira que atravessou inúmeras inovações no automóvel, não escondia o orgulho na máquina. A partir daquele momento, acabava-se o “achómetro” do mecânico. Era ligar a ficha ao carrinho que ele se encarregaria de enviar as queixas para o computador da assistência, que logo ditaria o veredito.

A intenção era a melhor, como se sabe, mas também era verdade que a eletrónica a bordo dos carros começava a ditar novas exigências nos padrões de assistência pós-venda. Pelo caminho, era uma forma de manter clientes nesta parte choruda do negócio: cada marca com o seu sistema e com a sua ficha exclusiva. Hoje já não é bem assim e apesar de o software e hardware serem, em regra, mais completos nas oficinas de marca, existem pontos de assistência fora desse universo que dispõem de meios eletrónicos de diagnóstico muito completos.

Mas aquilo que mais me agradou foi mesmo a parte de ter ali uma forma objetiva de me dizerem, sem falcatruas, qual era a avaria no meu carro. Uma sentença imparcial, direita ao assunto e sem aqueles assomos de imaginação que nos rapam a conta bancária mais depressa que a aceleração dos 0 aos 100.

Há pouco tempo, tive oportunidade de experimentar na pele este assunto. Na pele, salvo seja, que este ano ainda nem uma constipação me apareceu. Quem começou a tossir foi a minha fiel station wagon cinzenta, que começou a perder potência em subidas, umas faltas de ar e umas palpitações sem razão aparente e sem padrão definido que me fizeram temer o pior.

Recorri à primeira oficina (sim, houve mais que uma e é por isso que estou a escrever sobre o tema). Carro ligado à máquina e os sintomas identificados: anomalia na alimentação e sensor do filtro de partículas sem qualquer leitura de valores. Solução dada pelo mecânico: mudar o filtro de gasóleo e substituir o filtro de partículas, entre outras coisas. Tudo somado, cerca de 900 euros + IVA.

Pareceu-me grave. Fui pedir nova opinião. Evitando grandes subidas pelo caminho, claro.

Segunda oficina: carro ligado à máquina e rigorosamente os mesmos sintomas apontados pelo querido computador. A solução é que já foi outra: filtro de combustível e sensor do filtro de partículas. E o filtro de partículas propriamente dito, esse danado quem nem dá sinal na máquina? Ó amigo, isso pode-se sempre mandar limpar. Se não der certo, é retirar-lhe o miolo. Fica a deitar fumo, mas nunca mais tem problemas. Estamos conversados – nem quis saber do orçamento, apesar de este “ficar à volta duns 400 euros, sem o trabalho no filtro”.

Pedi paciência à minha station. Vamos lá a outro lado antes que te fiques de vez, pode ser? Agora decidi não arriscar, recorri a uma oficina da marca. É como ir direto a Deus. Enfim, mais ou menos direto porque tive de dar uma volta maior para evitar grandes subidas pelo caminho (claro!).

Oficina da marca (à terceira terá de ser de vez): ficha ligada e o computador a debitar a mesma informação. Desta vez não houve solução. Existiu, isso sim, atenção. O mecânico leu os valores, mas leu acima de tudo a falta de valores. Não sei porquê, mas quando ele me disse “deixe-me experimentar aqui uma coisa” fiquei com a clara sensação que estava pela primeira vez em boas mãos. Retirou a tampa do motor (o que aconteceu pela primeira em toda esta odisseia) e não precisou de muito tempo para extrair um pequeno tubo totalmente corroído. Mistério resolvido: o filtro de partículas não comunicava com o sensor e o motor entrava em corte. Ah, a eletrónica! A eletrónica! O orçamento desta reparação? 57 euros + IVA.

Saí da oficina com mais umas centenas de euros na conta do que se tivesse aceite a primeira solução. Não sei se o dinheiro traz felicidade ou não, mas pelo menos deixa-nos com tempo para pensar noutras coisas mais, digamos, “filosóficas”. Talvez por isso, dei por mim a refletir que vivemos numa era de profundo avanço tecnológico mas, afinal, tudo continua a resumir-se ao valor da competência e da ética humana. Neste caso, a máquina deu os sinais, mas houve que interpretá-los corretamente. E com integridade.

Todos os dias nos entram pelos olhos dentro conceitos como “internet das coisas”, “computação cognitiva”, “carros autónomos” e “inteligência artificial” e talvez seja esse o maior risco que corremos: confiar de mais na possibilidade de tudo começar e acabar nas máquinas quando, no fundo, elas são a coisa mais manipulável que existe.

Da minha parte só tenho a dizer uma coisa: nunca mais confiarei o meu carro a outra pessoa que não seja o Sr. Nuno, o chefe de oficina que me demonstrou que a inteligência pode ser artificial, mas a competência nunca o será.

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ONDE É QUE EU JÁ OUVI ISTO? – “Penso que o maior risco não está na Inteligência Artificial desenvolver uma vontade própria, mas sim que siga a vontade de outras pessoas” – Elon Musk, Fortune, Agosto 2016

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Luís Pimenta acompanha o setor automóvel há mais de 25 anos. Editou e dirigiu vários órgãos de comunicação social especializados e generalistas e dedica-se hoje à consultoria e produção de conteúdos e de plataformas de comunicação online.