A atribulada história do Museu da Audi

17/08/2017

A casa de Ingolstadt”. Foram muitas as vezes que o escrevi, por não querer repetir “Audi” a cada duas frases, para encher o texto nas raras vezes em que me sobravam linhas ou porque tentava dar aquele toque sabichão de quem está mesmo por dentro do assunto. Certo é que nunca mais o farei. Nunca depois de saber que as origens da marca estão bem longe desta terra perdida na Baviera, que passou a ser o centro de operações da Auto Union apenas porque os seus dirigentes perceberam atempadamente o clima geopolítico do pós-guerra, que a ocupação russa na Saxónia não tardaria a fazer-se sentir e que mais valia viver sob o controlo dos aliados ocidentais e aturar os bávaros do que arriscar umas férias ativas nos gulags.

 

Nem sequer Richard Bruhn, o banqueiro que ditou o rumo desta aliança industrial durante a depressão vivida na Alemanha após a Primeira Grande Guerra, gostava da ideia de assentar arraiais em Ingolstadt, mas foi lá que encontrou edifícios altos onde instalar a maquinaria, que até obrigaram a adaptar a produção – na impossibilidade física de fazer-se uma linha de montagem, estabeleceu-se a filosofia de construção por módulos, os quais passavam de uns andares para os outros com recurso a rampas. Ainda que tenha sido o berço da renascida Auto Union, Ingolstadt foi uma mera solução de conveniência e estava longe da (e de ser a) casa dos muitos trabalhadores que laboravam nas anteriores instalações e que migraram para estas paragens.

Quem mo conta é Stefan Felber, o curador do Audi Museum Mobile em… Ingolstadt, nem mais. Fico sem palavras para descrever a amabilidade e o entusiasmo com que me conta as histórias que fizeram da Audi uma das marcas mais prestigiadas da atualidade, mas estou igualmente impressionado com o conhecimento, a dedicação e a simpatia dos demais profissionais desta casa. Mesmo sem o curador para lhe mostrar a luz, pode ter a certeza de que terá uma visita bem guiada.

DESCANSO DE MUSEU
Ingolstadt fica a 80 km de Munique, distância suficiente para tornar o museu da Audi no mais sereno de todos os que visitei nesta missão da Turbo rumo ao passado; aqui só vem quem quer, não é solução de recurso para turistas que ainda não saibam o que fazer numa tarde livre. Trata-se de um enorme cilindro de vidro e metal escovado, com 51 metros de diâmetro por 22,5 de altura, que se destaca facilmente no seio do Audi Forum Ingolstadt por incluir um colossal expositor rotativo, onde catorze veículos vão rodando e percorrendo os quatro pisos – tantos quantas as argolas no símbolo da casa – como se estivessem numa montra de ourivesaria.

É só debruçar-se no corrimão e apreciar o desfile. Os quase 60 automóveis e algumas dezenas de motociclos aqui reunidos têm ao seu dispor o mais poupado e ecológico sistema de iluminação da atualidade: o sol. Ao todo, são 5500 metros quadrados de área vidrada que, desde Dezembro de 2000, trazem luz natural ao interior deste edifício, que é o deleite dos apreciadores de modularidade interior e de domótica, com paredes móveis e uma gigante cortina metálica exterior que gira em seu torno. Contudo, talvez por ter sido o primeiro desta nova geração de museus, fica bem clara a sua pequenez perante os mais recentes da Mercedes, da BMW e da Porsche.

Cerca de 30 pessoas trabalham nesta estrutura, com Ralph Hornung a ter o dia-a-dia mais agitado. É ele quem percorre o mundo à procura de carros com interesse para o museu e não lhe faltam histórias para contar, como o chassis completo de um Wanderer 5/15 PS de 1923 esquecido num porto australiano e que Hornung resgatou em 1996. Novinho em folha… De momento, falta-lhe um VW Carocha que tenha sido produzido em Ingolstadt e dois Audi: um Sport Quattro branco e um 100 CS Quattro vermelho, idêntico ao que subiu uma rampa de saltos de ski para um anúncio televisivo. Tento espiar a sua conversa com Felber – talvez até já saiba do paradeiro dos Auto Union de corrida dos anos 30 que, reza a lenda, continuam escondidos algures na Rússia –, mas o meu alemão continua tão limitado quanto o conhecimento de automóveis antigos e desvio a atenção para o aventureiro Horch 10/35 PS Phaeton de 1923. Com relação de caixa mais curta, lavatório embutido, finas aplicações em madeira e interior forrado com o que parece ser pele de elefante, foi concebido para que a família real sueca pudesse caçar com toda a elegância.

A ORIGEM DO SÍMBOLO
O piso superior do museu dedica-se ao período de 1899 a 1945 e é lá que vai ficar a saber o porquê das quatro argolas, uma para cada marca da Auto Union: Horch, Audi, DKW e Wanderer. As atenções centram-se em August Horch (1868- 1951), o ferreiro que decidiu estudar engenharia e que viria a colaborar com Karl Benz em 1896, tendo fundado a marca com o seu próprio nome em 1899.

As suas criações rapidamente ganharam boa fama, pela qualidade e alto desempenho, mas desentendimentos com quem geria as finanças de empresa levaram-no para o olho da rua – a casa que fundou continuaria a produzir automóveis de alto gabarito. Nada disto o impediu de prosseguir os seus intentos e, ouvida a sugestão de traduzir o seu nome para latim (em alemão, “Horch” é o imperativo do verbo “ouvir”, ou “audire” na língua de Cícero), adotou-se a designação Audi para a sua nova marca, que se destacou pela acumulação de bons resultados desportivos.

Horch abandonou a Audi em 1920 que, oito anos mais tarde, viria a cair nas mãos de Jørgen Rasmussen, o astuto dinamarquês que começou por apostar na tecnologia a vapor e que fez fortuna com o seu pequeno bloco monocilíndrico a dois tempos, de 118cc e a debitar apenas 1cv – ao todo, venderam-se mais de 30.000 bicicletas com este motor, o qual ficava tão próximo do selim que ficou conhecido por “queimarabos”… A marca de Rasmussen era a DKW – de certeza que já ouviu falar nos “Dê-Cá-Vê”.

Eventualmente, a Grande Depressão dos anos 20 e 30 desencadeou resgates financeiros do Banco da Saxónia à Horch, assim como às empresas de Rasmussen (DKW e Audi) e à Wanderer, o fabricante de automóveis que tinha como trunfo o motor de seis cilindros em linha com bloco em alumínio, desenvolvido por Ferdinand Porsche. Richard Bruhn, em representação do banco credor, foi o mentor da aliança entre as quatro marcas, que viria a designar-se Auto Union. Um plano de sinergias não tardou a surgir e, curiosamente, alguns modelos Audi combinavam os melhores atributos das diversas casas: o Front UW Limousine, por exemplo, reunia a tração dianteira dos DKW, o motor Porsche dos Wanderer e a qualidade de execução dos Horch, indo assim ao encontro da filosofia de August Horch.

Contudo, por muitos méritos que possamos encontrar nos seus modelos de produção, é no plano desportivo que a aliança mais se destaca. É arrepiante imaginar como seria galgar rampas poeirentas ao volante de um Auto Union Typ C/D (1938), com o 6.0 V16 de 520 cv mesmo atrás das costas…
E o que dizer do recorde de velocidade de 1937, com Bernd Rosemeyer a acelerar o aerodinâmico Typ C “Stromlinie” para lá dos 400 km/h? Em autoestrada!

ESTRELINHA DA SORTE
É preciso descer um piso para ficar a conhecer o percurso da Auto Union de 1945 a 1995. Se rodassem as chaves de todas as máquinas aqui expostas em simultâneo, isso teria dois efeitos em mim: levar-me-ia a viajar na memória até encontrar o cheiro (ou fedor) e o som (ou ruído) das “cinquentas” no liceu; a morte. Aqui, a concentração de motores a dois tempos é tal que bastariam segundos para gazear os visitantes – mas apenas no improvável caso do sistema de ventilação de emergência não funcionar –, demonstrando assim que os princípios técnicos e conceptuais da DKW foram a grande aposta da Auto Union após a Segunda Grande Guerra.

Sem querer adiantar muito mais, até para não arruinar aquele sentimento de descoberta para quem planeie visitar o museu, é curioso saber que muito do que a Audi é hoje, deve-o à Mercedes… Em 1962, a marca de Estugarda investiu na Auto Union e o resultado palpável disso foi o modelo 72 – de início, apenas era dado a conhecer por Audi – com tração dianteira e um invulgarmente eficiente motor a quatro tempos de alta compressão, concebido pelo engenheiro da Mercedes Ludwig Kraus. E mesmo depois da aquisição da Auto Union por parte da VW, este homem foi fulcral para o desenvolvimento do 100, o carro que estabeleceu o rumo “Premium” da Audi até aos nossos dias.

Boa parte desta visita guiada faz-se na companhia de Nilo Mello e Vanessa Cardoso, um simpático casal do Rio de Janeiro. Nilo é um fã incondicional da Audi e o seu carro tem uma história curiosa para contar: trata-se da RS2 Avant que Ayrton Senna ofereceu a Xuxa, quando ainda namoravam. Felber fica encantado com a história, refere que os planos pós-competição do ídolo brasileiro incluíam assegurar a representação da Audi para todo o Brasil e, talvez para compensar a viagem Rio-Ingolstadt com escalas pelo meio, pergunta-nos se queremos visitar o depósito do museu! É que nem se pergunta…
A ARCA DO TESOURO
O armazém de três andares fica a dois quilómetros do Fórum e está repleto de automóveis, uns perfeitamente mundanos, outros de esbugalhar os olhos.

Os vencedores de Le Mans estão lá, ainda com a sujidade acumulada ao longo de 24 horas de corrida, e fico siderado com as proporções do Audi 90 IMSA GTO, que está a ser preparado para um evento desportivo. Mas o mais cativante de todos é um musculado carro de motor central, com a horrorosa carroçaria em fibra a servir apenas para tapar a poderosa mecânica e os dois ocupantes: estamos perante o protótipo do que viria a ser a arma da Audi para o Grupo S do Mundial de Ralis. O Grupo S viria a ser cancelado e esta besta de 1000 cv (!) foi o que sobrou de uma ordem superior para destruir todas as unidades… Que fantástica chave de ouro para fechar esta passagem por Ingolstadt.
FLÁVIO SERRA, em Ingolstadt

Percorra a galeria de imagens acima clicando sobre as setas.