Citroën, a marca de Tintin e de Julio Verne

20/12/2016

O Citroen C4 Cactus é uma das coqueluches da marca francesa fundada há quase 100 anos por André Citroen, engenheiro inspirado pela imaginação de Julio Verne. Da Arrastadeira ao C4 Cactus, com passagem pelo 2 CV e pelo Boca de Sapo, viagem à história e às histórias da marca do double chevron

Ler Julio Verne na infância e assistir à construção da Torre Eiffel pode despertar uma vocação. Foi o que aconteceu ao pequeno André Citroen que cedo decidiu querer ser engenheiro. Um engenheiro com a imaginação de Julio Verne que acabaria por se tornar um dos grandes génios da indústria automóvel francesa na primeira metade do séc. XX.
Filho de judeus holandeses que se estabeleceram em Paris no final do séc. XIX, o seu nome, Citroen, quer literalmente dizer limão em holandês.
Numa visita à Polónia, André Citroen comprou a bom preço a patente de um mecanismo que lhe daria celebridade e que mais tarde inspiraria o logótipo da marca que fundou em 1919 – o double chevron. Esse mecanismo foi a transmissão de roda dupla helicoidal, que conferia maior robustez e flexibilidade às insípidas e caprichosas caixas de velocidades da época.

Só sei estas coisas porque li há uns anos a biografia de André Citroen escrita por Jacques Wolgensiger. Nessa biografia há dezenas de deliciosas histórias que explicam o génio de André Citroen, mas também alguns episódios mais anedóticos.
Quando foi visitar Henry Ford a Detroit para conhecer os princípios da linha de montagem da Ford, André Citroen foi recebido sem cerimónia e com alguma arrogância pelo velho tubarão da Motown.
Ford convidou Citroen a sentar-se numa cadeira com alguns centímetros a menos do que a sua secretária – velho truque de homens poderosos.
– Puxe uma cadeira.
– O senhor sabe quem eu sou? Sou André Citroen!
– Nesse caso, puxe duas.

O sarcasmo de Ford não impediu André Citroen de criar uma das marcas mais importantes do mundo, notabilizada pelo constante espírito inventivo que ao longo do séc. XX colocou a Citroen na vanguarda da tecnologia.
A tração dianteira, por exemplo, passou a ser um paradigma da indústria após a Citroen a ter adotado numa estrutura monocoque no lendário Traction Avant, a “Arrastadeira”, ou o carro de serviço dos irmãos Dupond das aventuras de Tintin e o carro preferido dos heróis da resistência francesa e também dos ocupantes nazis.
Os faróis amarelos eram utilizados pelos Renés e Pierres da resistência para distinguir os seus dos carros dos boches.
André Citroen foi também dos primeiros a perceber a importância da publicidade para a promoção da sua marca e para aumentar a venda dos seus produtos, por isso as revistas de automóveis (e não só, também as que não ligam nada a automóveis mas sim à publicidade dos automóveis) têm muito que lhe agradecer…

Ficaram célebres as audazes e originais iniciativas, como colocar aviões a desenhar com fumo as letras Citroen nos céus de Paris, atirar uma Arrastadeira por um penhasco abaixo para provar a sua resistência (os rapazes da Top Gear não inventaram nada), envolver a Torre Eiffel com milhares de luzes de néon a piscar o nome da marca ou a abertura do maior stand de automóveis de Paris, palco de concertos, sessões de cinema e exposições.
Algumas campanhas eram dirigidas a crianças, criando uma linha de brinquedos da marca Citroen, com o célebre carrinho a pedais. André Citroen costumava dizer que a sua grande ambição era que as primeiras palavras que as crianças francesas pronunciassem fossem: “Papá, mamã, Citroen”.

 
A Citroen foi uma das primeiras marcas a perceber a importância fundamental da publicidade e algumas das suas campanhas estão entre as mais notáveis e inesquecíveis na história do automóvel e da própria arte publicitária. Jacques Séguela, o maior génio francês da publicidade, fundador da RSCG foi responsável por algumas das mais célebres campanhas da marca do double chevron nas décadas de 70 e 80. Quem não se lembra do spot do AX na Muralha da China – Revolucionário, ou de Grace Jones a engolir o Citroen CX?

 

Em Portugal, uma campanha em especial, ficou gravada no ouvido de uma geração. Quem não se recorda da letra? – “Com capota, sem capota ele e jipe é camião, Mehari, Citroen”.

O fundador André Citroen foi também dos primeiros a entender o potencial de promoção das grandes expedições. Animado pelo espírito de Julio Verne organizou duas grandes aventuras que o próprio escritor teria certamente apadrinhado pela ousadia e imaginação. “La croisiére noir” e “La croisiére jaune”.

As lendárias cruzadas da Citroen
As famosas cruzadas Citroen da década de 20 são ainda hoje objeto de estudo nas faculdades de marketing do mundo inteiro como exemplo pioneiro de ação de marketing global associado a uma aventura ou desportos radicais, fórmula que hoje a Red Bull repete até à náusea.
A ideia começou a geminar em André Citroen como forma de testar em ambientes extremos algumas das soluções tecnológicas que preparava para os seus carros, mas também como uma espetacular fórmula de repetir as proezas de Phileas Fogg e Passepartout, os heróis da epopeia de Verne – “Volta ao Mundo em 80 dias”.
O facto da rival Renault estar também a fazer ações semelhantes no Norte de África terá dado o decisivo impulso às célebres expedições organizadas pela Citroen – a Croisiérie Noir e a Croisiére Jaune. Mas, ainda antes disso, a Citroen havia organizado em 1922 a primeira travessia automóvel do deserto do Sahara cobrindo uma distância de 3200 quilómetros entre Argel e Tombuctu.

Dois anos depois, em 1924, espicaçado pelos sucessos da Renault em idênticas iniciativas, André Citroen decidiu lançar um projeto bem mais ambicioso – a travessia de África de Norte e Sul, da Argélia ao Cabo da Boa esperança. O objetivo desta missão era recolher dados científicos e criar uma linha de travessia automóvel de África numa viagem que envolveu 17 homens e oito automóveis.
A expedição, dirigida por Georges-Marie Haardt contava também com um realizador, um operador de câmara, um pintor e diversos cientistas. Os carros eram protótipos precursores dos modernos 4×4 cuja mobilidade todo-o-terreno era assegurada por um sistema de lagartas Kégresse associado às seis rodas.
Cada protótipo tinha um nome de guerra – Escaravelho de Ouro, Centauro, Pegasus, Elefante em Rota, etc. Juntos cumpririam cerca de 28 mil quilómetros entre Bechar na Argélia e Madagascar, destino proposto pelo presidente francês que dava o seu alto patrocínio à iniciativa para dar a conhecer a ilha (colónia francesa) e o seu potencial económico e turístico.

A missão cumpriu as etapas com sucesso desde a partida no dia 28 de outubro de 1924 até à chegada ao seu destino, oito meses depois. Pelo caminho a caravana francesa passou pelo lago do Chade e desde aí, sempre por território colonial francês, alcançou o lago Vitória. Nesse ponto, a expedição dividiu-se em dois grupos que fariam duas rotas diferentes até se reencontrarem em Madagascar.
No final, percorreram territórios que à época eram praticamente desconhecidos como o Quénia, Zanzibar, o lago Tanganica, Moçambique e o deserto de Kalahari, enfrentando difíceis obstáculos e passando pela savana, pela selva, por montanhas e desertos. Os feitos e aventuras deste corpo expedicionário eram acompanhados avidamente pelo público através dos jornais e ao longo da “croisiére noir” foram produzidos inúmeros documentos e levantamentos científicos que permitiram um melhor conhecimento de África, bem como diários de viagem, milhares de fotos e mais de 20 quilómetros de película de cinema.
Thierry Sabine, o pai e promotor do famoso Rally Paris-Dakar nunca escondeu que foi ao “Croisiére Noir” da Citroen que foi buscar inspiração.
No início da década de 30, Citroen repetiria a fórmula de sucesso, desta vez com o “Croisiére Jaune” que atravessou a Ásia de uma ponta a outra. Infelizmente, pouco tempo depois, André Citroen entrou em bancarrota e foi obrigado a vender a empresa ao seu principal credor – os irmãos Michelin, a quem devia uns bons milhares de pneus.
O visionário engenheiro com a imaginação de Julio Verne acabou por morrer na miséria em 1934, sem poder assistir ao sucesso do carro que ele havia idealizado para motorizar o povo e que só veria a luz do dia após a II Guerra Mundial – o Citroen 2 CV.

O fenomenal 2 CV
O Citroen 2 CV foi a interpretação dada por Pierre Boulanger ao sonho de André Citroen – um carro simples, robusto e económico que permitisse aos agricultores franceses substituir os seus cavalos e carroças. Com tração e motor dianteiro (refrigerado a ar) e uma suspensão com capacidades para off-road ligeiro, graças ao curso longo para absorver as pancadas nos terrenos agrícolas, o 2 CV foi um verdadeiro todo-o-terreno da sua época. Apresentado no Salão Automóvel de Paris em 1948, foi produzido até 1990 em diversas gerações e versões, num total de 3,8 milhões de unidades (com todas as variantes, como o Ami ou a Dyane foram perto de 9 milhões). A última é portuguesa e saiu da linha de montagem da fábrica de Mangualde. O “chapéu de chuva com rodas” é a mais notável aplicação do princípio do minimalismo na construção de um automóvel no séc. XX e, como escrevia o escritor L.J.K Setright um carro de uma “racionalidade sem remorsos”.
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A lendária robustez e fiabilidade é ilustrada pela deliciosa história das duas freiras francesas que levaram o seu Citroen 2 CV à revisão dos 50 mil quilómetros, informando o mecânico que o carro fazia uns barulhinhos. O mecânico foi dar uma volta com elas e percebeu que as freiras apenas utilizavam a primeira velocidade e não sabiam que era preciso meter óleo no motor. 50 mil quilómetros sem óleo e só com a primeira engrenada é mesmo obra do Altíssimo.

O meu primeiro carro
O carro mais importante da história da Citroen é também um dos quatro mais importantes automóveis do séc. XX – juntamente com o Ford T, Volkswagen Carocha e Mini. A primeira vez que andei num, fiquei irremediavelmente apaixonado pela sua simplicidade e graça. Era vermelhinho e teimoso – custava a pegar de manhã, tal como eu, antes do segundo café. O carro era do meu amigo Luís Neves, e lembro-me perfeitamente de atravessarmos a Ponte 25 de Abril, de capota enrolada, rumo o Sol da Caparica ao som da música dos “Peste e Sida”.

Muitas outras pessoas terão com o Citroen 2 CV outras histórias de afeto, memórias e momentos que nunca se esquecerão, porque os carros sentimentais, como este, são muito mais do que um meio de transporte, são um companheiro da vida.
Alguns carros são como músicas que nos remetem para momentos das nossas vidas – o primeiro amor, a primeira road trip, um piquenique com os avós, o dia em que alguém querido nos morreu e tivemos de guiar atrás da carrinha funerária, enfim, em quase todos os momentos determinantes das nossas vidas há um carro por perto e que por isso faz parte da nossa história.
É por isso que sempre gostei da Citroen, independentemente de fazer carros bons ou maus (e acreditem já fez alguns beruchas) porque é uma marca que faz parte da minha vida. Lembro-me de atravessar a Ponte 25 de Abril (sempre ela) com o meu pai a guia um Mehari e a minha mãe aos berros a dizer – Ó Quim, olha que isto ainda vai levantar voo.
Lembro-me das noitadas malucas com o meu amigo e compadre Luís Pinheiro no seu Dyane a cair de podre e lembro-me do meu primeiro e inesquecível carro – o Citroen GS – comprado a meias por 20 contos com o meu amigo Noné. O sofá com rodas, tal o conforto de rolamento, era o petit nom do DS cor de café com muito leite.
Nesse DS era impossível não me sentir um Belmondo de 20 anos – A ir para a faculdade a fazer ratéres como uma máquina de guerra na 24 de Julho, a usá-lo como carro de campanha com cartazes e megafone da lista anarquista Jasmim que concorreu à Associação de Estudantes do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (impronunciável ISCSP).
Lembro-me de dormir nele, de comer nele, de fazer amor nele…
Lembro-me de com ele fazer a primeira viagem à Beira Baixa, numa tarde de verão, feliz e imparável, com a estrada e a vida pela frente, com paragem no Couço para as lendárias sandes de carne assada da terra mais comunista de Portugal.
Não há amor como o primeiro, pelo menos no que respeita a carros. O Citroen GS foi o meu primeiro grande amor. Um dia traiu-me com a falta de óleo na suspensão, ficou especado numa rua em Odivelas e vendi-o ao mecânico da esquina por 10 contos – 5 para mim, 5 para o Noné.
Ao longo da vida conduzi muitos carros da marca do double chevron – quase todos os modelos dos últimos 15 anos – mas daqueles que ainda me lembro melhor são os com os quais vivi grandes momentos – ir a Arganil ver o Rali de Portugal num diabólico Visa GTI, depois fazer Lisboa-Algarve no frenético e falso AX GT. O conforto rolante de um grande CX para o Minho (com o meu pai a guiar) ou o inesquecível Citroen BX – o supra-sumo do conforto da sua época.
Outra grande experiência foi poder conduzir quatro ou cinco diferentes versões dos Bocas de Sapo no tempo em que trabalhei no “Jornal dos Clássicos” quando um colecionador abriu as portas da sua garagem de Ali Bábá e em vez de ter lá os habituais modelos de várias marcas tinha uma coleção mono-boca-de-sapo, mais de 20 de todas as formas e feitios – carrinhas, descapotáveis, ambulâncias, eu sei lá.
Também me lembro de uma vez vir da escola com a minha mãe e ela apontar-me ali no Campo Grande para um belo Boca de Sapo estacionado à sombra de um plátano – lá dentro estava um senhor de boné ao volante e outro mais rechonchudo, recostado ao lado a dormir uma sesta. O senhor rechonchudo devia estar-se a sentir observado, ergue a cabeça sonolenta e fez-me um aceno. A minha mãe perguntou-me:
– Sabes quem é?
– É um boca-de-sapo.
– Não, é o Mário Soares.

Cactus e o espírito do Citroen 2 CV
Depois de um período de maior apagamento, a Citroen regressou nos últimos anos à boa forma com criações que honram o património genético da marca – conforto, originalidade, design e inovação.  O meu preferido continua a ser o Citroen C4 Cactus. Um concentrado de boas ideias, servidas com um design claramente diferenciado – entre um crossover e um citadino – servido a baixo preço.
É que não basta dizer que se quer conquistar um público jovem e esperar que ele chegue aos stands por obra e graça do espírito santo. É preciso fazer carros para isso e as marcas francesas, tal como algumas alemãs, estão claramente a ver os seus clientes envelhecer. Acham que a forma de contrariar isso é com uma publicidade fresquinha, imberbe e jovem ou com posts teenagers e parvos nas suas cinzentas redes sociais. Pode ser com tudo isso, mas convém ter um carro que se preste ao número.
O Cactus presta-se a isso porque é irreverente, simples, engraçado, económico e baratinho.
Tudo o que um jovem de 40 anos como eu precisou para dar uma volta a Portugal em 80 dias a fingir que estava numa aventura de Júlio Verne ou numa Cruzada dos tempos loucos de André Citroen. 80 dias a vadiar por Portugal com os meus amigos Flores e Oliveirinha, faz do Citroen C4 Cactus um dos carros da minha vida.