Uma caligrafia bonita, esculpida, morosa.
Como Cargaleiro a cinzelar mármore, Manuel Beja debruça-se com cuidados de artesão sobre a folha de papel branco e desenha as capitulares com vagar e minúcia de estilete-BIC. Uma caligrafia ornamentada, quase barroca, que enche de orgulho o antigo ferroviário, reclinado na velha cadeira de mogno entronizada no terreiro de luz do Abril-em-flor beirão. “Toda a gente me gaba a letra”, aventa com um sorriso empinado nos óculos garrafais que tentam iludir as cataratas do octogenário escrevinhador. “Nos Escalos, antigamente, a minha mãe era das poucas que sabia ler e escrever e era assim que ganhava mais uns trocados para alimentar sete filhos. Lia e escrevia as cartas para o povo. Acho que lhe herdei o jeito”.

Imagino a letrada camponesa no Largo dos Escalos como os escribas que montavam banca e tinteiro no Largo do Pelourinho de Lisboa no final do século XVI para escreverem cartas galantes a soldo; ou Florentino Ariza, personagem de “Amor em Tempos de Cólera” de Garcia Marquez, dedilhando a sua angústia em cartas de amor mercenárias forjadas para outros amantes se amanharem nos montes de Vénus; ou os ardis do amor por escrito que uma freira do séc. XIX ministrava, ensinando a simular o pingo de uma lágrima a pontuar uma carta de saudade.

As cartas de amor são como retratos amarelecidos com a usura do tempo. Já não se escrevem cartas de amor como antigamente, aliás já ninguém escreve “Meu amorzinho, meu Bébé querido” como Fernando Pessoa escrevia a Ofélia.
Na era do “fast-love” dos piropos via SMS, dos “chat´s” e da Internet, o romantismo lacrado num envelope perfumado é um romantismo extinto: “Quem me dera no tempo em que escrevia/ Sem dar por isso/ Cartas de amor/ Ridículas / A verdade é que hoje/ As minhas memórias/ D`essas cartas de amor /É que são ridículas”.

Ti Manel contorna o sobrescrito com a língua, para acicatar a goma que sela as palavras esculpidas: “É para o meu irmão que está em França. Hoje em dia, já ninguém escreve cartas por causa do telefone. É tudo mais fácil. É pena, já nem o carteiro vem à nossa porta e uma carta escrita tem outra graça.”
Desde que Ti Sebastião, o antigo carteiro do “giro” de Castelo Novo se reformou, as quintas semeadas no sopé da Gardunha já não recebem com alegria o estardalhaço da motorizada zundape-alada deste Mercúrio rural, fintado a canzoada para entregar o correio, dois dedos de conversa e boa disposição: “Agora as caixas de correio estão concentradas em caminhos de acesso às quintas e já não se entrega a correspondência ao domicílio como antigamente. Muitas vezes os carteiros nem conhecem as pessoas. No meu tempo não era assim. Íamos a todas as quintas, mesmo as mais remotas. Conhecia toda a gente e ao longo dos anos fui ficando amigo de muitos deles. Vi gente nascer, crescer, casar, partir e fui vendo esse mundo rural morrer devagarinho à medida que os últimos velhotes iam entregando a alma ao criador”, conta Ti Sebastião enquanto prepara a pauta para o ensaio da Banda de São Vicente da Beira, da qual é maestro.
Empunha a batuta com as mãos que durante anos cavaram o fundo da sacola de carteiro, garimpando cartas que traziam as novas – boas e amargas -, a esperança e a angústia.
O mestre de música sabe que o homem que inaugurou a moderna indústria dos correios com a invenção do selo postal em 1837 era também maestro?
Sir Rowland Hill, administrador do Correio inglês, venceu a casmurrice da Câmara dos Lordes e impôs uma reforma postal que consagrava um sistema de padrões tarifários que permitia aos Correios Ingleses cobrar antecipadamente pelos serviços prestados, bastando colar um comprovativo do pagamento sobre a encomenda.
Nascia assim a lambidela no selo postal, gesto universalmente repetido da Gronelândia ao Burkina-Fasso, que permitiu aos serviços de correios de todo o mundo crescerem e democratizar esse sistema de comunicação tão antigo como a própria escrita e cujos registos mais ancestrais remontam a 2.400 AC no Egipto, quando os sigmanacis – velozes mensageiros – percorriam grandes distâncias a pé, de cavalo ou a camelo, carregando os papiros e correspondência com que os faraós mandatados pelo deus Sol, subjugavam o seus domínios à beira-Nilo.

Os comensais que uma vez por mês se agremiam na casa do Ti Sebastião na Soalheira para uma patuscada são a reencarnação desses sigmanacis e dos peregrinos, escudeiros, almocreves, correios-mores, correios a cavalo da mala-posta e de todos os homens que ao longo da história da humanidade carregaram o poder da palavra escrita para reis, senhores feudais, corpo eclesiástico e derradeiramente … para o povo: “É uma almoçarada de carteiros, alguns já reformados, outros no activo. Sempre serve para nos mantermos em contacto, trocarmos histórias ou até ensinarmos alguns segredos da profissão aos mais novos.” A deliciosa curta-metragem “Escola de Carteiros” do cineasta francês Jacques Tati, num remake-petiscada na Soalheira…
A banda afina a marcha, o sisudo oboé abafa a fanfarronice do cornetim, o mesmo que serve de símbolo ao cavaleiro do logótipo dos CTT, que sopra com estribilho as novas de um mundo em permanente mudança, um mundo em que já ninguém escreve ao Ti Manel: “Até a reforma é depositada no banco. Só recebo publicidade do Jumbo e recibos da água e da luz. Hoje em dia, a única coisa que leio é o Jornal do Fundão para ver os resultados dos Escalos nos distritais e saber quem morreu por lá”.
Todas as quintas-feiras, Manuel Beja desenferruja o reumático que lhe atravanca o andar, no quilómetro e meio que separa a sua quinta da caixa postal junto à ordenha colectiva, entretanto desactivada pela falta de vacas; nem gordas, nem magras.
Todas as quintas-feiras, Ti Manel caminha até ao mundo exterior ao seu lameiro, que hoje lhe entra pela televisão (o lameiro mediático) e pelo telefone, com o coração acelerado pela secreta e irreprimível esperança de ter uma carta do seu irmão Carlos, emigrado em França.
A mesma esperança renovada e amarga que levava o velho coronel de Gabriel Garcia Marquez a desesperar todas as sextas-feiras a carta da pensão do seu filho morto na revolução, a carta de um tempo que já não volta, a carta que nunca chega: “Estou à espera de uma carta urgente – disse ele – é de avião.
O administrador procurou nos compartimentos classificados. Quando acabou de ler, repôs as cartas na letra correspondente, mas não disse nada. Sacudiu as palmas das mãos e dirigiu ao coronel um olhar significativo.
– Devia chegar hoje de certeza – disse o coronel.
O administrador encolheu os ombros.
– A única coisa que chega de certeza é a morte, coronel”.

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Giro do carteiro
Uma azáfama própria de quem sabe que o relógio é ladrão. No Centro de Distribuição Postal do Fundão,  António Leal, chefe da distribuição não me passa grande cartão. São 8.30 horas da manhã e para aqueles homens que separam com afã o correio, o dia já corre longo. “Vai com o carteiro Pedro, que dá a volta pela Serra do Açor”, informa-me com o mesmo tom peremptório de um treinador de futebol que está habituado a escalar os seus futebolistas no terreno ou como o jogador de damas que dispõe as pretas com ardis de ratoeira: “Temos vinte e quatro carteiros neste centro de distribuição, com rotas que abarcam todo o concelho do Fundão e algumas freguesias da Covilhã. É um trabalho duro e desgastante, vai ver”.
Todas as manhãs, a rotina da expedição e separação do correio repete-se nos centros de distribuição postal espalhados por Portugal Continental e ilhas.  “Apesar das cartas pessoais e postais serem cada vez menos e da emissão de facturas de algumas companhias ser agora trimestral, o facto é que o volume de correio tem vindo a crescer por causa do direct mail e da publicidade”, explica António Leal enquanto dá as últimas ordens aos carteiros que se preparam para a sua faina diária.
As cartas já estão separadas por ruas e números das casas, que é aliás a razão histórica da toponímia e da numeração das portas – a distribuição do correio ao domicílio – que outrora se chamava posta pequena.
A reluzente “diligência” vermelha dos CTT pára no átrio e o “cocheiro”, armado de sorriso franco estende-me um vigoroso passou bem: “Pronto para uma volta pelo fim do mundo?” É essa a cartografia da reportagem – uma viagem ao fim do mundo rural pelos olhos de um carteiro, uma peregrinação interior à velocidade da expedição do correio por um mundo desligado da modernidade das comunicações móveis, dos SMS, da internet de banda larga, do e-mail e do satélite espião.
Lá longe, onde o vento dá a volta, onde Judas perdeu as botas, para lá de cascos de rolha, para lá do sol posto, uma viagem na companhia do selo postal de combate à info-exclusão e do seu emissário e paladino – o carteiro.
“O giro começa em Lavacolhos, vamos ao Ouroundo, subimos a serra do Açor até Casegas. Vai depois conhecer a minha terra – Sobral de São Miguel. A terra mais bonita do mundo”, informa com orgulho estampado no sorriso.
Pedro Santos tem 47 anos. É carteiro há vinte: “O meu pai já era carteiro, mas teve um acidente grave que o inutilizou e eu acabei por ficar no seu lugar. Tinha acabado de fazer a tropa e fiquei logo a fazer o giro das Minas da Panasqueira. De há cinco anos a esta parte faço esta rota, que me dá vantagem de poder ir todos os dias a casa e à minha terra.”

Pedro Santos vive na Covilhã com a sua mulher “empregada na câmara, e as minhas duas filhas, gémeas. Mas os meus pais e dois dos meus cinco irmãos ainda vivem no Sobral”. A conversa quebra-gelo vai decorrendo à medida que a sua diligência-Ford negoceia as curvas serranas do Castelejo: “Esta carrinha é nova, mas não tem vidros eléctricos, estou farto de chatear o chefe por causa dos vidros eléctricos. Dão jeito para entregar a correspondência pela janela …”.

Liturgia diária ou geografia do esquecimento
No vale fértil da Cova da Beira, as cerejeiras em flor vão estendendo aquele manto branco que nos envolve na pertença da terra e na promessa carnuda das cerejas temporãs. Parece um postal ilustrado, como aquele que vou bisbilhotando no maço de cartas da EDP, Caixa Geral de Depósitos e Segurança Social. Mas este postal é da Toscana, e escrito em francês: “Mommi: Je suis en Italie e il fait chaud. Je fais de visites qui sont longue.” Faço visitas que são longas … Para Pedro Santos, longas são as horas que “pedala” em contra-relógio como o mais famoso carteiro da história do ciclismo, o americano Lance Armstrong.

Lavacolhos, a primeira contagem de montanha desta etapa ergue-se como o nosso Alp D`Huez. Gracejo sobre a picaresca origem do nome desta terra alcandorada na encosta da serra a 13 quilómetros do Fundão, mas Pedro Santos prefere falar de coisas mais sérias: “Já cá vive pouca gente, só aos fins-de-semana é que tem alguma vida. Não há trabalho, os mais novos partiram todos e os mais velhos vão morrendo.” É a funesta aragem que varre todas estas terras da orla Norte do concelho do Fundão, marcadas pela desertificação e por esse véu negro que se abate sobre as antigas aldeias mineiras; as aldeias das viúvas negras …

Não insisto na jocosa questiúncula toponímica, que fica para posteriores indagações. A primeira correspondência é distribuída nos “arredores” da terra. É a distribuição “montada”, já que mal saímos da “diligência” basta encostá-la à caixa do correio e depositar os livrinhos de “Liturgia Diária”, que pelos vistos têm saída por estas bandas: “Muita gente compra imagens da Nossa Senhora por cinco euros, são cinco euros que lhes fazem falta mas como é pela Nossa Senhora …”, longe chegam os tentáculos cobiçosos do negócio da fé …
Entramos na malha “urbana” e aí a perícia de condução é digna de Fittipaldi – ruelas estreitas e becos feitos em marcha-atrás com velocidade e precisão geométrica deixam o “pendura” com a respiração suspensa. É que o relógio continua a ditar a sua tirania.

Estacionamos o “bólide” resfolgante e com os maços de correspondência na mão, partimos para a distribuição “apeada”, que se faz porta-a-porta por ruelas intransitáveis. O ritmo não abranda e rapidamente se galgam as ruas vazias, se batem a portas mudas com cartas registadas: “O marido desta senhora morreu há pouco tempo, e ele foi viver com a filha para o Fundão”. Portas fechadas pela morte.
O sol morno ilumina as ruas íngremes, as casas e janelas aferrolhadas parecem amortalhadas para o velório. O silêncio é apenas interrompido pelo coro desafinado dos cães que parecem anunciar a vinda do carteiro.
Por falar de cães, é verdade que são o pior amigo do carteiro? “Agora já me conhecem todos. Hoje só ladram desta maneira por causa de si, que é um estranho.”

Informação pouco reconfortante, sobretudo quando confrontada com um cão de Hades, que espreita ameaçadoramente de um quintal, reluzindo o incisivo pouco cordial. “Uma vez apanhei um susto com um cão preto enorme nas Minas da Panasqueira. Já tinha pedido ao dono para o prender, mas naquele dia ele apareceu-me de surpresa num sítio onde eu não tinha escapatória. Ele desatou a correr para mim a ladrar que nem um desalmado. Então, em vez de fugir, lembrei-me de correr para ele aos gritos a abanar o maço de cartas. Ele corria para mim e eu para ele; ele ladrava e eu berrava. O medo devia dar-me um ar assustador, porque ele acabou por se arrepender e pirou-se a ganir com o rabinho entre as pernas. Se eu tivesse tentado fugir, ele filava-me na certa”, gargalhou Pedro.
Uma das prerrogativas dos carteiros é recusarem-se a entregar correspondência em quintas ou casas em que os animais não estejam acorrentados, mas uma vez por outra, algum carteiro leva para casa umas bainhas novas nas calças, cozidas à dentuça: “Os piores são os cães mais pequenos, que quando não estamos à espera, zás! Quando distribuía correio de motorizada era pior, tínhamos de andar a fintá-los”.
Mas a “bête-noir” da velha guarda dos carteiros eram mesmo os gansos, que os romanos utilizavam como animais de guarda e que pelos vistos nunca perderam o instinto pretoriano; costumavam atacar em grupo e à valente bicada para pânico do carteiro-intruso.

Larguemos estas deambulações zoológicas e vamos ao cafézinho: “Este senhor espera sempre por mim de manhã, ali na esquina para irmos beber um café”. Numa aldeia às moscas, um carteiro é sempre uma boa companhia, e ainda por cima uma companhia rotineira, diária, pontual. O café central é rico, balcão moderno, grande ecrã para ver o futebol. Vê-se que é produto do labor da emigração. O palpite está certo: na TVI passam uma reportagem sobre um massacre na Virgínia. Os poucos clientes unem-se num silêncio de requiem e o assunto desagua na facilidade com que se compram armas na Terra do Tio Sam: “Até no supermercado”, diz o velho reformado cafeinómano. “Na Suiça também é assim. É fácil comprar armas de guerra, desde que se tenha uma licença. Somos obrigados a apresentar a arma todos os anos às autoridades, para evitar o tráfico”, informa o emigrante que trocou as Glock de Genebra pelas Super Bock portuguesas que tilintam sobre o balcão moderno e lustroso na sua terra.

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Metralhada a conversa de circunstância, partimos para a maternidade dos bombos, que estamos na terra que graças a eles ganhou fama. A porta da garagem do Sr. Natalino abre-se como a gruta dos alquimistas. Aqui trata-se da alquimia do som. As peles de cabra curtidas secam e na estante, algumas caixas e bombos aguardam a ordem de soltura para dar corpo a um das tradições locais mais emblemáticas – os bombos de Lavacolhos. É nesta oficina do Sr. Natalino que se perpetua este saber ancestral. “Os materiais usados são a pele de cabra, a madeira de castanho e de silva, o zinco e a corda. É com isto que fazemos os bombos e as caixas, de mais pequena dimensão”, explica o artesão. “O segredo está na escolha certa dos materiais e sobretudo na afinação”. E como prova de vida, lá extrai do imponente nado-bombo aquele som gutural, bruto e impregnado de uma força criadora, que ganha sentido colectivo no vigoroso matraquear de joelho ao alto, que faz do Grupo de Bombos de Lavacolhos um dos mais singulares “ex-libris” da tradição etno-musical portuguesa, devidamente assinalada por esse “garimpeiro” de sons da terra, o único corso que conquistou Portugal – Michel Giacometti.
Trocámos os bombos na garagem do Sr. Natalino pela guitarra de Carlos Paredes no rádio, os “verdes anos” que nos embalam na estrada nacional 238, a tal que se aventura nesta região marcada pelo Zêzere, pela Serra e pelas minas.
Pelas costas fica Lavacolhos e a sua misteriosa toponímia, que se presta a pilhérias, preferimos a seriedade do Prof. José Pedro Machado e do Padre Abel Guerra: “É necessário recuar aos tempos da colonização romana e estudar a etimologia latina: levo (levantar), levis (suave e leve), collum (pescoço), collis (colina), que passado para o português: Lava collus – Lavacolos – Lavacollos – Lavacolhos; isto é, terra que levanta a cabeça”.

Passando o Ourondo, levantámos a cabeça para a paisagem que se soergue no horizonte. Estamos já no Concelho da Covilhã e os cimos desnudados da Serra do Açor oferecem uma visão de território remoto, bravio, onde apenas prospera o xisto, como pedra de toque das construções arrancadas teimosamente à terra. São terras de cabeça erguida, apesar do isolamento, da pobreza e do abandono a que foram votadas: “O que mais me indigna é a forma como esta terra e estas gentes foram exploradas ao longo de décadas. Desde Salazar que Portugal extraiu aqui a riqueza do volfrâmio às custas do esforço e da miséria destas povoações e o que é que elas receberam em troca? Uma mão cheia de nada. Nem estradas, nem acessos condignos, nem assistência, nem equipamentos sociais, nada, apenas o esquecimento.”

Pedro Santos conhece bem as soleiras destas portas esquecidas, onde as viúvas dos mineiros recebem as pensões que se devem chamar com propriedade de sobrevivência: “São pensões baixas, muitas vezes para pessoas que não têm outra fonte de rendimentos. Sou eu que as levo e sei bem as dificuldades por que muitas passam.” A chegada do carteiro com a magra pensão, representa um momento de alívio e felicidade, bem ilustrada no rosto da velhota que desce a custo as escada de pedra da sua casa, nos arredores de Casegas. “Nestes locais mais isolados, a passagem do carteiro é uma réstea de vida e de esperança. Não é raro dizerem-me – Olhe, já há dias que não falava para ninguém. Por isso mesmo, arranjo sempre tempo para conversar e dar atenção a estas pessoas.” Um pouco de atenção, isso mesmo, só um pouco de atenção pode atenuar a solidão mais terrível – a da velhice.

O canário, o Açor e o poeta

Começamos a ronda por Casegas, terra bonita e de prédios altos e robustos, onde ainda pontificam pequenas ilhas de xisto, impassíveis às foleiradas novo-ricas, mamarrachos do mau gosto franciú. Nota-se na arquitectura e nalgumas antigas casas senhoriais a sua antiga importância, bem expressa com a presença no primeiro mapa de Portugal, da autoria de Fernando Alves Seco em 1561, sob o nome de Caregas.
As ruas íngremes puxam pela passada sincopada que o pulmão não acompanha. O maço de cartas corresponde aos padrões habituais – publicidade, bancos, luz, água e naturalmente, pensões. “Cavalitos ou burritos?”, indaga o senhor da mercearia. Perante a minha confessa ignorância, Pedro sorri e explica, “Cheque ou contas”.
Prosseguimos; carta registada para casal de emigrantes já de meia-idade. “Só papelada, estamos a pensar vir para cá de vez. Mas os filhos ficam por lá, já têm a vida feita”, explica a senhora com acentuada influência da língua de Vítor Hugo sobre a de Camões. “Há gente a voltar à terra depois de uma vida de trabalho em Lisboa ou no estrangeiro, isso vai dando algum ânimo a estas terras sem esperança para a gente nova. Num raio de 30 quilómetros não há trabalho e os acessos são maus de mais para alguém pensar em trabalhar na Covilhã ou no Fundão e viver aqui.” Diagnóstico demográfico que se acentua com a passagem rápida pelo lar da terceira idade, onde uma fileira de velhos se aposenta numa vigília sonolenta ao sol, interrompida pelo sopro de vitalidade e alegria da visita do carteiro. Ninguém espera uma carta, mas o carteiro traz-lhes a memória fugaz de um tempo em que as pernas e a vontade eram vigorosas. Um sorriso assoma nos lábios da velha que há momentos vegetava numa meditação vaga de sepulcro. Num lar de idosos, uma visita, nem que seja a do carteiro, é um sinal de vida.

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Seguimos em ritmo de contra-relógio a nossa colectânea de portas, com rostos que se entreabrem de curiosidade. No quintal do Sr. Joaquim, antigo pastor e tocador de pífaro estende-se uma longa colecção de chocalhos, que ele toca com a bengala como se fosse o carrilhão de Mafra. Num tasco, fardado da camisola interior de alças o servidor de copos-três a perder de vista, desmonta cuidadosamente uma decrépita máquina de barbear com ar de já ter presenciado pelo menos uma Guerra Mundial. “Vai fazer a barba hoje?”, zomba Pedro. “Que remédio!” replica o tasqueiro que mantém em espera de boca seca o cliente de mata-ratos na mandíbula impaciente. A mesma impaciência treinada com que o canário do homem sentado na cozinha-gaiola pede “vinho!”.
Ora esta, um canário-bebedolas?! “Este ainda o estou a ensinar, mas antes tive um que aprendia tudo num tirinho e sempre que me via a beber, pedia vinho”. Melhor sorte a deste canários amestrado para a vinicultura, do que os seus semelhantes que antigamente eram industriados para morrer nas minas, vasculhando as entranhas gasosas da terra e dando o alarme aos mineiros, quando os níveis de gases venenosos lhe calavam o pequeno bico-cantor.
Seguimos a jornada pela rua abaixo, cumprimentando os habitantes das soleiras das portas. Todos reconhecem com simpatia e jovialidade o carteiro, não o poupando a gracejos: “Então andas a ensinar o novo carteiro, vais-te reformar Pedrinho?”.
Já me querem fazer carteiro-aprendiz: “Não. É uma reportagem para mostrar como é o dia de um carteiro”, explica. O dia do carteiro é um coleccionar de histórias, de vidas, como se fosse uma daquelas máquinas Polaroids, em que gravamos a memória efémera de um instante: “Cada dia tenho uma história nova para contar. Hoje por exemplo, a história é o dia em que andei a fazer o giro com um jornalista. O lado humano deste trabalho é o mais gratificante. Vamos criando laços de amizade com a convivência com estas pessoas, e além disso vamos fazendo isso, correndo estas serras e estas aldeias. Era incapaz de estar fechado num escritório, este trabalho faz-me sentir livre.”
Na sacola das histórias de carteiro, Pedro recorda quando fez de conselheiro matrimonial para um casal de septuagenários: “Andavam sempre às turras, e um dia, o velhote, farto da mulher lhe moer o juízo, meteu lá em casa uma prostituta brasileira para fazer a ´lida` da casa. A velhota ficou para morrer, e um dia lá estive a acalmá-la e a dar-lhe conselhos para manter o casamento. Ela ficou tão agradecida que me queria dar dois contos de réis, insistia, dizendo que se fosse a um advogado, também teria de pagar. O que é certo é que os velhotes lá fizeram as pazes.”
Entretidos na palheta, alheamo-nos da paisagem que rodeia a estrada que liga Casegas à sua antiga freguesia, agora emancipada, de Sobral de São Miguel. Estamos no coração da Serra do Açor, o caminho do fim do mundo. O rosto de Pedro Santos ilumina-se com aquela luz muito especial que vem do coração. O coração de um beirão de regresso à sua terra. A estrada serpenteia pelas encostas vestidas de cores da Primavera que irrompem do ventre de uma terra rica em estanho, volfrâmio e pirite.
“Passo por aqui todos os dias e é um espectáculo, a serra nunca está na mesma, muda de côr todos os dias. Está a ver a base amarela, é a cor das giestas, carqueijas e maias. Estas vão subindo a encosta e empurrando o vermelho e os tons rosa que lhe emprestam as urzes.” A poesia criadora da natureza e o seu efeito encantatório sobre o carteiro de Sobral de São Miguel lembram-me um outro poeta e um outro carteiro. Pablo Neruda e o seu carteiro encantado pelas metáforas da mesma forma que Pedro Santos se deslumbra com a pintura de cores da “sua” serra, levando no bojo da sua sacola as cartas, de quem Neruda dizia: “quanta verdade tristonha e mentira risonha uma carta nos traz”.

Carta das Minas
Não sei se por osmose, se por contágio do carteiro nativo, Sobral de São Miguel insinua-se ao olhar do viajante como a terra mais bonita do mundo. Incrustada no alto de um vale orientado para o majestoso Gondufo, o terreno montanhoso pintado a carqueija e urze, destaca aquele casario que se estende nas margens do ribeiro que alimenta o vizinho Zêzere.
Ao longe parece um presépio de branco e de xisto, isolado e protegido do olhar curioso do resto do mundo. Paramos em frente a uma casa, onde no terreiro um casal desfruta da sombra de um chapéu-de-sol. “São os meus pais”. Enquanto a mãe bate uns ovos que vão encorpar as típicas talassas da terra, João Santos resume uma vida de carteiro nas Minas da Panasqueira: “Era um trabalho tramado. Sempre aí a calcorrear montes e vales, com neve e um frio de rachar no Inverno e um calor infernal no Verão.
Fiz muitos anos a rota das Minas, vi muita miséria e sofrimento, muita gente a rebentar de fome, muito mineiro com os pulmões rebentados.” A agrura cravada no corpo estropiado por um acidente de trabalho que não lhe fez guardar rancor à profissão: “Gostei muito de ser carteiro e fico muito feliz do Pedro continuar o meu trabalho”, confessa “É o sangue”, acrescenta a mãe. Falámos nos tempos antigos em que a correspondência chegava à terra nos alforges de um burro, “Era a Ti Correia da burra, chamávamos-lhe Correia, porque era ela que trazia o correio”, explicam. Enquanto se fazem horas para o almoço, corremos as ruas sinuosas do Sobral, com direito a guia turístico de primeiríssima água. Pedro Santos conhece cada casa, da pedra, cada laje, cada cara que se desvela à sua passagem. “Viva Pedrinho”, “Traz carta para mim”, lá está a frase da velha música do Sérgio Godinho, “Chegou o carteiro”. Pedro bebe água na fonte reconstruída com a “ajuda do povo”, como se lê na lápide, e não evito pensar que adequado é um carteiro beber água sob estas letras gravadas no mármore.
Ao contrário do lotado lar de Casegas, a Escola Primária do Sobral tem apenas seis crianças. “Foi aqui que andei na escola, no meu tempo éramos às dezenas.” A professora leva-nos a ver a árvore da paz construída em papel pelos miúdos que em breve partirão para a escola secundária mais próxima, a umas dezenas de quilómetros, deixando a árvore da paz sem quem a enxerte. Rute, a jovem arqueóloga de 23 anos, preferiu continuar na sua terra a enxertar a sua árvore da paz – o pequeno e interessante núcleo museológico que vive das doações de gente da terra: “Para já o meu projecto de vida passa por aqui. Gosto muito da minha terra e enquanto puder, vou por cá ficar.”
Ela é também uma das impulsionadoras do blogue do Sobral de São Miguel, que na era digital, faz aquilo que durante centenas de anos esteve reservado às cartas escritas – aproxima as pessoas nos laços de afecto e saudade criados pela distância. Num dos “posts”, fotografias de emigrantes na Suiça, com mensagens para a sua terra; noutro o resumo do “derby” entre os Galitos da Serra e o Casegas; noutro ainda o programa das festas para o 25 de Abril com feijoada libertária no cardápio.
Percorremos as ruas com as casas de xisto recuperadas e estimadas: “Sem a ajuda de ninguém, como acontece noutras aldeias de xisto, apenas com o esforço e carolice das pessoas”, repete orgulhoso e amargurado.

463

José Camba puxa-nos sem direito a recusa para a sua adega, para nos refugiarmos num copo de bendita jeropiga das abelhas que invadem as escadas da casa contígua “Os donos estão para o Canadá e as abelhas ocuparam a casa. Mas olhem que as ferroadas das abelhas fazem bem ao reumático”.
Não é o reumático o mal que aflige este antigo mineiro de 82 anos, um dos poucos da sua idade a sobreviver à silicose: “Entrei para as minas com 14 anos, no tempo da II Guerra em que trabalhavam lá perto de 5 mil empregados, fora os que andavam ao quilo. Descia para os poços com umas cordas para montar os andaimes. Depois fiz de tudo. Estive lá enterrado 22 anos às vezes 12 horas por dia com uma buchazita no estômago. Vi muito companheiro morrer, depois abalei para a França.”
A mulher recorda com amargura esses tempos “Era uma revolta que crescia na gente, ver uns com tanto e outros que se estoiravam lá por baixo por meia dúzia de tostões que mal davam para alimentar a família. Quase todos os dias morria alguém na mina, e a espera era uma angústia para as mulheres que ficavam cá fora a ver se era o seu homem.” As minas acabaram por cobrar a sua dívida assassina a José Cambra que viu um pulmão extraído, tem cancro da mama e faz um intenso tratamento de radioterapia: “Tenho de ir a Coimbra uma vez por mês, gasto 17 contos no táxi e nem o Estado nem ninguém me dá uma ajuda.”
Da sua boca não soa a queixume, porque é um homem calejado por uma vida que não lhe roubou a dignidade e a força de viver que se adivinha nos olhos alegres de adolescente-velho. Mais uma jeropiga para a viagem, à sua saúde, Senhor José Camba, velho mineiro.
No café do francês não são mineiros que almoçam, porque o volfrâmio já não tem uso para as armas ou a fuselagem das naves que foram conquistar o espaço. O almoço agora é para os trabalhadores que montam as pás dos parques eólicos que estão a nascer nas encostas do Açor. Depois das entranhas esmifradas é o vento desta terra que agora gera uma riqueza que dificilmente será redistribuída.

A única coisa que resta para distribuir são as cartas para os lugares da Pereira e da Cerdeira, contíguos ao Sobral, e depois a recolha em sentido inverso, da correspondência que se leva, como os ponteiros do relógio que descrevem a exactidão dos dias iguais, mas sempre diferentes, como o são os dias do carteiro Pedro.

Se, como dizia Simone de Beauvoir “não se pode escrever nada com indiferença”, então a indiferença é o destinatário mais certo da nossa escrita, tão perdida como as aldeias das viúvas negras da Serra do Açor.
Neste mundo em que ninguém escreve ao Ti Manel, o carteiro renova a esperança, da mesma forma que a serra renova as suas cores, todos os dias, num tempo só sensível pelo alastrar da sombra.

Rui Pelejão