Um apátrida num triângulo desamoroso

08/03/2017

A vila fronteiriça de Tachileik faz parte do famoso Triângulo Dourado, o ponto onde a Myanmar se juntam o Laos e a Tailândia.

Ao contrário do resto do país por onde andei, em que há muito pouco trânsito, ali vê-se enorme quantidade de jipes e “pick-ups” novos e muitas mais motos, mesmo se todas pequenas. Sente-se que há dinheiro a circular e cheira a “negócio ilícito”. Por incrível que pareça a moeda que circula na cidade em tudo o que são negócios, hotéis, restaurantes, etc., não é o Kyat birmanês mas o Baht tailandês.

Tinha combinado com a senhora do ministério que tratou da minha autorização para atravessar o país, que passaria de Myanmar para o Laos e não para a Tailândia. Ela concordou, mas disse que eu teria primeiro que ir junto à passagem para a Tailândia carimbar o passaporte para então andar por outra estrada uns 20 Km, onde passaria para o Laos.

Quando cheguei ao local indicado não quis acreditar no que via. Depois de passar vários postos de controlo uma pequena casa representava a fronteira de saída, junto a um rio que, para ser atravessado, só tinha disponíveis pequenas e frágeis barcaças. Ali me deixou o guia, entretanto acompanhado pelo chefe da polícia local, que veio certificar-se que eu saía mesmo do país.

Sete ou oito homens colocaram primeiro a moto, sem as malas, dentro de água, com esta a chegar à parte de baixo dos escapes, içando-a depois a pulso para dentro de uma das barcaças. Ouvi as madeiras do fundo da pequena embarcação  estalarem, sob os 300 kg da Honda, e temi o pior. Para além disso o fundo plano daquele objeto flutuante parecia-me extremamente instável.

Um dos homens sentou-se em cima da moto, com um pé em cada uma das bordas do mini barco e lá puseram o motor de carro que o fazia navegar a trabalhar. Fiquei cheio de medo ao vê-la partir comigo e as malas a seguirmos numa segunda barcaça. Imaginei aquilo tudo a tombar e a “CrossTourer” a falecer, afogada no Rio Mekong.

Felizmente chegou sã e salva e rapidamente a descarregaram na margem oposta.

Subi a rampa de chegada já montado na moto e com as malas nos seus sítios, depois de me despedir dos barqueiros que regressaram a Myanmar.

Vi uma casa que parecia ser a alfândega e estacionei à porta. Estava tudo deserto. Entrei e um homem, em troco nu e descalço, via televisão deitado numa cama de campismo colocada no meio da sala. Quando me viu deu um salto e, com um ar assustado perguntou-me de onde vinha. Não queria acreditar que tivesse chegado de Myanmar.

Chamou o chefe que estava a dormir e apareceu a esfregar os olhos com uma camisolinha de alças e havaianas nos pés. Perguntou-me o que ali fazia  com ar de que nunca um estrangeiro por ali passara e, quando lhe expliquei que tinha chegado de Myanmar numa barcaça, disse-me que teria que voltar para trás pelo mesmo meio.

Expliquei-lhe que isso seria impossível porque já não me autorizavam a regressar ao país. Depois de muito insistir, ligou a um superior que concordou com ele. Eu teria que voltar para onde tinha vindo. Só aceitavam pessoas no Laos que viessem da Tailândia e não de Myanmar. Insisti que não poderia regressar e sugeriu então que deixasse a moto e o acompanhasse à outra margem para falarmos com a alfândega de Myanmar.

Entretanto eram perto das seis da tarde e eu só tinha tomado o pequeno almoço às sete e meia da manhã. Perguntei se não tinham uma banana e um dos empregados foi lá dentro e regressou com uma lata de conserva de peixe que me soube como caviar russo.

O chefe do posto enfiou então um polo, umas calças e uns sapatos, de como quem vai à cidade, e lá partimos os dois noutra barcaça, com o sol já a pôr-se, de volta ao local de onde tinha partido uma hora antes.

Chegados à outra margem, tal como eu previra, os guardas fronteiriços birmaneses não me aceitaram de volta e gerou-se uma desconversa entre eles em que cada um dizia que eu tinha que ir para o país do outro. Senti-me um apátrida indesejado e sugeri que me abandonassem no meio do rio, numa jangada.

Depois de vários telefonemas e de eu me recusar terminantemente a trazer a moto de volta de noite , nas condições em que tinha ido, chegámos a um acordo. A moto ficaria no Laos e eu em Myanmar para, no dia seguinte, atravessar para a Tailândia e dali seguir para o Laos onde apanharia um táxi que me levasse ao pequeno posto do porto, onde recolheria a moto.

Esta situação gerou enorme confusão na cabeça dos responsáveis do ministério do Turismo birmanês que mandaram regressar o meu guia e o seu motorista para me acompanharem no dia a mais que eu teria que passar em Myanmar.

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*Francisco Sande e Castro está a dar a volta ao mundo de moto e M24 publica o seu diário de bordo. Acompanhe-o nesta grande aventura

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