O comboio é o meio mais rápido e romântico de fazer uma viagem no tempo. Ao tempo dos Romanos, dos Visigodos, dos Templários e dos fósseis com 460 milhões de anos. Isso saboreado com a gastronomia, a música, as paisagens e a identidade de Monsanto, Idanha-a-Velha e Penha Garcia.

Um viajante deve estar preparado com um livro e um bom par de aforismos para inscrever no seu moleskine como programa de viagem. Oscar Wilde, um feroz viajante de comboio que cumpriu uma autêntica odisseia pela América, costumava dizer: “Levo sempre o meu diário para ler no comboio, uma pessoa tem de ter algo sensacional para ler”.

Sem risco de querer concorrer com os diários do genial escritor irlandês, atrevo-me a dizer que uma coisa boa para ler no comboio é sobre os lugares onde vamos. Agora à boleia de outro escritor, Júlio Camargo e do comboio Intercidades com destino a Castelo Branco, lá vem a segunda citação para completar o par: “A vida é uma viagem a três estações: ação, experiência e recordação:”
É este o meu programa de viagem para a Rota das Aldeias Históricas da Beira Baixa, organizada todos os sábados pela CP.
Venha, salte a bordo e faça-me companhia nesta viagem ao coração de Portugal.

 

Ação – partir

Manhã fresca e a prometer dia de calor na estação de Santa Apolónia. Um viajante, por mais experimentado que seja, nunca pode deixar de sentir a emoção da partida. Há uma incontida excitação que aguça os sentidos. Desconfio que por baixo das camadas de civilização e sedentarismo, há em todos os homens civilizados, um nómada, um bom selvagem, com vontade de mundo, com ânsia de descoberta.
Nada como uma estação ferroviária e a azáfama dos viajantes, o resfolgar dos comboios para fazer despertar os sentidos meio entorpecidos. O olfato é o primeiro. Os comboios têm um cheiro forte e inconfundível que se grava e cola na memória olfativa. É sempre uma memória boa, das viagens que fizemos com aqueles que amamos.
Esta, pela linha da Beira Baixa, tem um cheiro ainda mais especial. Era por ela que viajava com os meus avós, ele ferroviário, ela camponesa, sempre animados e aperaltados para as longas viagens no velhinho Regional, com paragem em todas as estações e apeadeiros, com tempo de sobra para ir delapidando o farnel preparado com fausto pela minha avó.
Um comboio é um sítio bom para visitar memórias e saborear uma melancolia, sincopada e ritmada pelo movimento que embala.
Poupo-lhe essa viagem interior que uma jornada como esta me convoca e passo à partilha que lhe interessa, porque o leitor deve ser de pressas e quer é saber ao que vai.
Um pouco de paciência, só mais um bocadinho para ir aqui de nariz esborrachado na janela a ver passar os subúrbios de Lisboa, até as fábricas e o desvario do casario se ir desvanecendo no verde da Lezíria e no azul cintilante do Tejo, o nosso companheiro, o nosso irmão, nesta jornada única na extensa rede ferroviária nacional, que só encontra rival na majestosa linha do Douro.

Por esse rio acima
O primeiro troço da Linha da Beira Baixa foi construído entre Abrantes e a Covilhã e inaugurado no dia 6 de setembro de 1891. Os restantes troços foram sendo acrescentados ao longo do tempo, ligando o Entroncamento à Guarda, numa das mais difíceis e monumentais obras de engenharia ferroviária portuguesa. Ao circularmos com conforto e suavidade nesta linha, nem percebemos que estamos a viajar sobre autêntico património da engenharia.
Pontes e túneis que nos vão mantendo com o Tejo a encher o retângulo da janela. Podemos ir ali a ler a paisagem como se fosse um livro, ela passa rapidamente, mas merece marcador no Castelo de Almourol, pontiagudo e misteriosa construção templária numa ilha do Tejo, ou depois, ir atento no troço mais dramático e espectacular que franqueia as Portas de Rodão, essa gargantilha de granito em Vila Velha de Rodão, que estreita o rio antes de o deixar espairecer até à barragem do Fratel. No alto desta maravilha natural de Portugal, oculta-se o Castelo do Rei Wamba, personagem mítica de que lhe falarei mais tarde.
Na sua longa caminhada desde a nascente em Espanha, o Tejo galga mais de mil quilómetros, pouco mais de 300 em Portugal, a maior parte deles feitos em companhia do comboio que é o melhor transporte para conhecer os meandros do rio, já que chega a locais que nenhuma vivalma motorizada ousou descer. Nas Portas de Rodão apenas os grifos e os comboios têm bilhete para o primeiro balcão deste espectáculo geológico.
É por isso que nos despedimos com pena do rio companheiro e rumamos a Castelo Branco. Por hoje o nosso destino são as aldeias históricas da Beira Baixa, sobre a qual pouco dissemos, distraídos que íamos com o Tejo e os seus encantos.
De Castelo Branco a Idanha-a-Velha também não é tempo perdido no autocarro que nos leva ao coração da campina idanhense. A paisagem é bonita e ondula com campos lavrados, um horizonte azul e limpo, e rebanhos de ovelhas a pintalgar a paisagem, em labuta ruminante que acabará por dar nos queijos da região – Alcains, Soalheira e Idanha – que ombreiam com os da Serra da Estrela, senão em fama, pelo menos em paladar.
Chegamos por fim à nossa primeira paragem, a remota e isolada aldeia de Idanha-a-Velha, uma das doze que compõem a Rede de Aldeias Históricas de Portugal, um património material e imaterial reunido e preservado para preservar traços da identidade portuguesa, que a modernidade vai fazendo o desfavor de apagar.

A terra do rei Wamba
Idanha-a-Velha parece um lugar perdido no tempo e na planura da paisagem. A sua simplicidade esconde no entanto uma dignidade antiga e orgulhosa que se adivinha nas muralhas circulares, na Torre dos Templários, último vestígio do castelo daqueles que foram os senhores povoadores da região, por doação de D. Afonso Henriques, como se pode ler:
“Afonso, notável rei do Condado Portucalense, filho de Henrique e da Rainha D. Teresa e neto do grande e ilustríssimo Imperador de Espanha, por nós ao mestre Galdino e a todos os Irmãos da Ordem dos Templários que estão no meu reino, faço uma vasta e fortíssima doação da região da Idanha [-a-Velha] e de Monsanto com os limites: Seguindo o curso da água do rio Erges e entre o meu reino e o de ‘Legiones’ até entrar no [rio] Tejo e da outra parte seguindo o curso da água do [rio] Zêzere que igualmente entra no Tejo (…).”
In Carta de Doação,de D. Afonso Henriques aos Templários em 30 de Novembro de 1165.

Mas não é na Reconquista que Idanha-a-Velha ganha a sua nobreza, é muito antes. Aqui que se erguia a antiga Egitânia, a mais importante cidade romana entre Mérida e a Guarda e que floresceu durante a era Visigótica que dela fizeram a mais importante povoação da região, elevada a sede de diocese com direito a bispo e a Basílica – a mais antiga do país que começou a ser construída em 581 sob os escombros de um templo paleocristão, para, durante a ocupação muçulmana, ser mesquita e voltar a ser Igreja na Reconquista. Sob aquelas pedras do bem conservado edifício estão as camadas da História da formação Portugal. Reza a lenda que foi nesta terra que nasceu o mítico rei Wamba, o tal do castelo sobranceiro ao Tejo em Vila Velha de Rodão.
Flávio Wamba era um lavrador que foi feito rei por ter cumprido a profecia do papa que dizia que o rei dos Visigodos seria aquele que ao espetar uma vara na terra, faria imediatamente flori-la. Ainda hoje o povo da Idanha diz que a vara de Wamba se pode ver junto à Ponte do Rio Pônsul. Um imponente freixo que ondula ao vento os seus alegados 1600 anos de vida na terra.
Além destes edifícios históricos que atestam a nobreza da antiga Egitânia, vale a pena perdermo-nos pelas ruas, ladeadas de casas de granito, onde o tempo passa com o vagar e a calma de uma terra milenar.
Antes de nos fazermos novamente à estrada, oportunidade para visitar um edífício moderno – o Lagar de Varas de Azeite, espaço onde se fazia a transformação dos produtos agrícolas da região, nomeadamente o azeite, o ouro da região.

Terra de adufeiras e de Fernando Namora
A próxima paragem é a altaneira Monsanto, erguida num penhasco como uma escultura viva, talhada no granito e nas pedras que dão teto a casas, num dos mais impressionantes e originais conjuntos arquitetónicos da península ibérica.
Pausa retemperadora para almoço e ganhar forças com um cabrito assado à moda de Monsanto. Bem são precisas (as forças) porque a subida até ao Castelo é longa e íngreme, mas vale a pena o esforço.

Monsanto

Monsanto

A vista cá do alto é resplandescente e infindável e entendemos a visão estratégica de D. Afonso Henriques que aqui mandou erguer o castelo original, na confluência beliciosa das fronteiras do reino de Portugal com as de Leão e Castela e com o califado dos Almoádas. A encomenda foi entregue ao Mestre da Ordem do Templo, D. Gualdim Pais, o fundador de Tomar e do Convento de Cristo. Depois dos Templários o castelo e a defesa daquela importante fronteira foi entregue aos Cavaleiros da Ordem de Santiago.
Depois de descer de novo aos labirintos de granito da aldeia, podemos visitar mais alguns edifícios históricos como a Torre de Lucarno, os inúmeros solares e casas apalaçadas ou os vários exemplos de arquitetura religiosa – como inúmeras capelas e igrejas, com destaque para a intrigante e mística Capela de São Pedro de Vira a Corça.
Foi nesta terra que viveu e exerceu medicina o escritor Fernando Namora, uma experiência que deu corpo e espírito ao seu romance “Retalhos da Vida de um Médico”. Se preferir, pode tentar encontrar uma adufeira disposta a mostrar-lhe como se toca aquele antigo instrumento beirão, ou então entrar na loja “Monsabores- Produtos da Terra” de um jovem casal lisboeta que decidiu levar à letra o slogan da CP – “Próxima paragem, mudar de vida”. Abandonaram as carreiras e a vida em Lisboa para se instalarem na aldeia com um projeto de “Divulgação do trabalho de jovens produtores da região, desde os produtos agrícolas, ao artesanato, passando pelo vinho ou a doçaria”, explica Andreia Mira, enquanto nos dá a provar um queijo de mistura (cabra e ovelha) de um jovem produtor de Monsanto e a beber um branco leve e frutado – Marquês de Almeida.
Despedimo-nos do Mons Sanctus, que ostenta orgulhosa o título da “aldeia mais portuguesa de Portugal” e que a esta hora da tarde projeta já a sua sombra sobre a planície.

480 milhões de anos atrás
A próxima e última paragem também está esculpida na pedra, como um presépio vivo – é a aldeia de Penha Garcia, berço de Catarina Chitas, a mais famosa adufeira de Portugal e vulto maior da etnografia musical, cuja arte de cantadeira e de adufeira foi divulgada na recolha de Michel Giacometti para a série da RTP “Povo que cantas”.
Subimos pelas ruas íngremes até ao castelo, tirando dois dedos de conversa com a D. Maria Santos, de 87 anos e o Sr. Fortunato de 93, sentados num banco à sombra de um figueira frondosa.
A primeira, alegre e conversadora, mostra-nos o seu cesto com as lindas marafonas, bonecas de trapos, sem olhos, nem boca, nariz ou ouvidos, vestida com um colorido traje regional. Tal como em Monsanto, as marafonas são usadas para celebrar a fertilidade e a felicidade conjugal: “Ainda tenho olhos para isto, sou eu que costuro tudo perfeitinho e sei de cor as rezas que se devem dizer com as marafonas na mão.”, explica a jovem anciã.
Apetece ficar por ali à sombra, na palheta, mas ainda há muito que ver.
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Depois da subida ao castelo, mandado erguer por D. Sancho, iniciamos a descida pela rota dos fósseis, que nos leva do séc. XIII até há 480 milhões de anos atrás “quando a região era banhada por um oceano cheio de vida. Atualmente é visível uma sucessão desses fundos oceânicos, transformados em camadas quartzíticas verticais pautadas de fantásticos vestígios da actividade das trilobites, as Cruziana e outros seres marinhos.”
Imaginar que esta terra era um oceano, olhando as águas calmas da Barragem de Penha Garcia não pode deixar de causar assombro. Uma viagem a estas aldeias históricas da Beira Baixa é uma viagem no tempo, nunca imaginei é que fosse uma viagem de 480 milhões de anos. É uma viagem em que pode usar o melhor do seu tempo para conhecer e desfrutar o que o nosso país de melhor tem para oferecer.
Antes do regresso levamos o sabor destas terras com uma prova de bons queijos e enchidos beirões, que a gastronomia também é história, e da boa.
Está na hora de regressar e apanhar o comboio para Lisboa, de nariz esborrachado no vidro, tentando prescrutar na penumbra lá fora o momento em que reencontramos o Tejo e com ele vamos de braço dado até ao fim da viagem, que é sempre o princípio de outra, provavelmente de novo à Beira Baixa, desta vez à Rota das Cerejas do Fundão, que é tempo delas.
A conversa, já se sabe, é como as cerejas, mas esta já vai longa para si, camarada leitor. Fica apenas a chegada à última estação do escritor Júlio Camargo – “A vida é uma viagem a três estações: ação, experiência e recordação”.
Esta viagem deixará sem dúvida uma recordação, e das boas.
Cá voltaremos…

Rui Pelejão