A solidão é um terrível inverno. Aquele era dos piores numa terra que só conhece duas estações — o inverno e o inferno da canícula. Na velha casa de pedra da aldeia vivia M. M, talvez de Maria, letra do anonimato e do esquecimento. Hoje recordo o triste inverno de M. Uma das muitas histórias no alforge de Nuno Marçal, o quixote-bibliotecário que diariamente percorre as aldeias perdidas do concelho de Proença-a-Nova

O inclemente vento frio soprava na copa dos pinheiros que entrincheiravam a aldeia numa asfixia de céu. Sibilino, rasgava as frestas das janelas e da porta da casa de M. como se tivesse garras finas e aguçadas. Sentada no decrépito sofá, a velha senhora, agasalhava-se com um endredão de algodão amarelo amargo em frente a uma escalfeta que era a única carícia de calor daquela casa de pedra. A magra reforma não dava para pagar aquecimentos modernos e nem sequer para atenazar borralho na braseira.

M. passava os dias daquele longo inverno abrigada na cápsula do seu endredão. Alimentava-se de caldos knorr dissipados em água, vinho branco de pacote e maços de cigarros, o único dos luxos que lhe sobrevivera numa vida completa que terminava assim, naqueles dias tristes, numa aldeia deserta do pinhal do concelho de Proença-a-Nova.

M. abalara nova para Lisboa, onde fez vida e carreira. Secretária de administração de poderosos senhores e magnates, foi correndo mundo. Lisboa, África, Macau, Brasil, cultura, luxo, festas e glamour.

Nunca casou, mas colecionou amantes de lençóis de linho macio que agora recordava na humidade recalcitrante do seu endredão-cápsula e nas histórias que à soleira da porta contava às suas vizinhas da aldeia, numa linguagem desbragada e explicita, para pavor, choque e benze-te das aldeãs que do mundo o mais que viram foi os campos da ceifa do Alentejo ou as encardidas ceroulas conjugais.

M. não era uma mulher de aldeia, era uma mulher de mundo. Sofisticada e culta, fora obrigada pela necessidade a recolher ali, para a casa de uma irmã que lhe deu telhas fraternas. As relações com as suas vizinhas na aldeia eram de azeda desconfiança e só melhoraram no dia em que M. regressou do hospital, depois de um longo internamento.

M. percebeu que não podia hostilizar as únicas pessoas que lhe podiam valer numa aflição e, lentamente, o azedume foi-se adoçando em relações solidárias de boa vizinhança e cumplicidade. As velhotas da aldeia traziam-lhe ovos, fruta e legumes para M. ir espessando o seu caldo Knorr. Em troca, M. lia-lhes as cartas dos seus filhos, quando as havia, e preenchia-lhes as papeladas burocráticas.

Naquela imensa solidão de uma aldeia com menos de dez habitantes do Pinhal Interior, havia no entanto uma companhia mais poderosa para enfrentar o inverno da vida.

No caso de M. eram os livros.

Foi assim que a conheceu Nuno Marçal. Solitariamente encapsulada no endredão, pés na escalfeta, mãos trémulas no cigarro e no pacote de vinho branco, olhos vagabundos nos livros que devorava: “Era uma leitora compulsiva, lia de tudo e a toda a hora. Às vezes deixava-lhe mais de dez livros e passados quinze dias já os tinha lido todos. Dizia que eram a sua única companhia”.

M. acabou por morrer sozinha naquela aldeia de pedra onde apenas o bom coração das vizinhas e o sonho dos livros lhe trouxeram calor no mais longo inverno da sua vida.

Naquela imensa solidão de uma aldeia com menos de dez habitantes do Pinhal Interior, havia uma companhia mais poderosa para enfrentar o inverno da vida. No caso de M. eram os livros

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A história comove-me de uma maneira estranha e impotente. Talvez escrever seja um remédio para a solidão tão bom como ler.

Vou no banco lado da velha e trepidante Renault Traffic que há mais de dez anos é a fiel companheira de Nuno Marçal nas sinuosas estradas entre os vales e as serras de Proença.

Vou ali embalando o olhar na primavera de cores que vai pintalgando a monotonia do tapete de pinhal verde que se estende, ondulando no horizonte, enquanto Nuno me conta as histórias de solidão e pobreza, como a de M.

Ele é o bibliotecário que leva livros a 40 aldeias perdidas do concelho de Proença-a-Nova: “Costumo dizer que os livros são os comprimidos e as aspirinas contra o isolamento e a solidão, sou uma espécie de farmacêutico que vai às aldeias levar remédios para a solidão.”

Espreito para o retrovisor e vejo as prateleiras com os livros alinhados com rigor farmacêutico e sinto que vou numa ambulância sem sirene, perdida num mar de pinheiros verdes onde naufragam ilhas de granito e xisto, jangadas para os últimos, os que resistem e os que apenas esperam que a morte os leve como que engolidos por um manso vagalhão no mar do esquecimento.

Trabalhador de histórias

Se tivesse definir o que faço para ganhar a vida, diria — trabalho em histórias. Sou uma espécie de historiador a dias, garimpando por aí uma boa história para guardar no bolso ou a vender ao preço que por ela quiserem pagar.

A minha mina são as pessoas anónimas e os lugares esquecidos. Descobri que a estrada é por onde melhor se chega ao coração sentimental das histórias. Quanto mais longe, melhor. Sempre é uma forma de me perder por aí, encontrando histórias perdidas para contar e vender, como um almocreve que no alforge traz palavras de terra em terra. Mas, já se sabe, palavras leva-as o vento.

Esta história da biblioteca móvel de Proença é desejo antigo. Há muito tempo que queria vir acompanhar o trabalho de Nuno Marçal que um dia conheci na famosa pastelaria Bélar em Castelo Branco. O seu pai é a figura daquela casa histórica da cidade onde o meu pai também nasceu.

Nisto do garimpo das histórias, a raridade costuma ser bem cotada. Não é o caso. Quase já todos os jornais e televisões nacionais vieram a Proença-a-Nova acompanhar o trabalho do Nuno Marçal e da Biblioteca Móvel. Desconfio que é por essa atenção mediática que a autarquia ainda paga o gasóleo que mantém a biblioteca móvel a rolar na estrada. Desconfio que o Nuno Marçal e a sua Rocinante Renault Traffic são os maiores embaixadores do concelho, eles e as cerejas. A história de Nuno Marçal, o D. Quixote dos livros de Proença, é já batida. Mas não faz mal, arranjei comprador, e cá venho em reportagem para o jornal “Dica da Semana”. É a primeira vez que escrevo para um jornal desta tiragem sem ser sobre viagens ou automóveis. Impresso pelo Lidl, entra na caixa do correio de centenas de milhares de portugueses. É mais lido que o Correio da Manhã e mesmo que venha embrulhado com as promoções de peixe da semana, não cheira a peixe, como o outro.

Não paga lá grande coisa, mas enfim é Portugal do jornalismo a pacote, 80 euros para a peça curta, sempre dá para o gasóleo para o almoço e para os cigarros. Aproveito a viagem e trago na bagagem uma história daquelas longas que ninguém tem paciência para ler até ao fim da estrada, as histórias do Grande Turismo, jornalismo ao quilómetro. Era esse o meu plano. Tenho sempre planos, concretizo poucos, mas aqui estou, ao lado do Nuno, a entrar pela porta da Santa Casa da Misericórdia de Proença-a-Nova, a primeira paragem do dia.

A história é dele, a minha foi só um apontamento confessional, que é coisa que todo o leitor gosta, aquele bocadinho de umbigo e mundo interior que bem apiegado dá um blogue de sucesso e sustento, se não para as contas de mercearia, pelo menos para o ego.

Hoje não estou cá para esse peditório. São 10.00 h da manhã, dormi apenas quatro horas e a jornada promete ser longa. Ao fim da tarde tenho de estar no Fundão para apresentar um livro, neste caso, o meu, uma compilação de crónicas que um editor industrioso achou que daria uns trocos. Estava, obviamente, enganado.

Este é também o primeiro dia de calor a sério do ano. Venha ele.

As memórias pescam-se à linha

O pequeno auditório disposto à mesa da sala de convívio da Santa Casa da Misericórdia de Proença-a-Nova está pronto e de orelha à coca para escutar as histórias que Nuno Marçal, bibliotecário-ambulante traz na sacola.

Esta é a primeira paragem do dia da Biblioteca Móvel de Proença-a-Nova, projeto de itinerância e cultura em movimento que há dez anos percorre as aldeias perdidas de um dos mais remotos e despovoados concelhos da Beira Baixa.

Na bagagem vão mais que livros, vai um paliativo itinerante contra o maior dos males de quem vive em terras do fim do mundo a solidão. Idosos de olhar neutro e triste faiscam uma centelha assim que Nuno Marçal começa a ler a história do dia. É sobre a matança do porco, escrito por Maria Assunção Vilhena no seu livro “A flor do feto real”.

A história descreve as traquinices do pequeno Tonho e seus irmãos em dia de matança do porco. Percebe-se a escolha, à medida das memórias dos dias felizes daquele grupo de velhotes: “À tarde, depois das raparigas regressarem do ribeiro, faziam-se as morcelas de assar, enchendo com carne e sangue condimentados com sal, cominhos e salsa, algumas tripas mais delgadas. Estas morcelas seriam a iguaria por excelência para o fim do dia, pois ainda tinham de ser fervidas e postas algum tempo ao fumeiro.

Tonho e os irmãos, logo que os homens se afastaram para o desjejum, deixando os porcos a arrefecer, pendurados nos ganchos, saltaram do poleiro e toca a cortar onde quer que aparecia um bocadinho magro, para irem fazer assaduras.”

Nuno vai interrompendo a leitura para conversar com o seu pequeno público, desafiando-o a puxar pelas recordações, partilhar experiências e até receitas de como preparar a sebeneta, iguaria feita de várias partes de porco após a matança, uma variante local do sarapatel: “Tento sempre que estas leituras sejam partilhadas e que convoquem histórias e memórias destas pessoas com histórias de vida para contar.” É um mister difícil e meticuloso este de pescar memórias à linha, como tão bem fazia Alçada Baptista.

As rugas cavadas dos rostos dos velhotes vão-se iluminando com as lembranças do passado, aquilo que ainda vai temperando os seus dias cinzentos e rotineiros.

A funcionária do Lar, alegre e maviosa, vai espicaçando os velhotes mais adormecidos em vigília de pré-almoço. A conversa, por vezes vai de rédea livre e chega até aos futebóis, a puxar o estribilho de improviso da Dona Lurdes, da Corga: “O Benfica ganhou com uma cama de algodão/ ia sob proteção da Nossa Senhora da Conceição.” Jorge sorri com a graça da sua vizinha da cadeira do lado. Ele coleciona posters do Benfica e deixa que Nuno Marçal lhe escolha os livros. É o mais novo do grupo, terá pouco mais de 50 anos. Antigo militar, sofre de uma doença degenerativa que lhe trava a liberdade de andar e lhe entremelece a língua, mas tem um sorriso e uma gargalhada que bem dispõem qualquer alminha sorumbática.

As rugas cavadas dos rostos dos velhotes vão-se iluminando com as lembranças do passado, aquilo que ainda vai temperando os seus dias cinzentos e rotineiros

O Sr. Fernando, já passado das 90 primaveras, também é um bem dispostão. Está há apenas uma semana no lar, mas não se acanha nas histórias que conta de nariz arrebitado por cima da bengala, recordando o tempo em que os “ratinhos” da Beira Baixa desciam ao Alentejo para as duras jornadas da ceifa: “Chamavam-nos ratinhos porque íamos para lá esgravatar a nossa côdea e trabalhar no duro.” Também recorda a morte da mãe que se finou ao dá-lo à luz. Diz que nada de bom é de esperar destes tempos. Há uma espécie de profecia apocalíptica no seu cabecear, que Nuno Marçal tenta contrariar: “Maus tempos sempre os houve sr. Fernando, olhe lá que antigamente também não eram famosos, pois não? Muita fome, muita miséria.”

Depois de lidas as histórias, seguem-se as recomendações e os cumprimentos para Nuno levar na bagagem nas suas voltas pelas aldeias do Pinhal: “Olhe, leve lá cumprimentos para o meu sobrinho e o meu cunhado”, recomenda o sr. Pedro, de Monte Fundeiro. “Como é que vai tudo lá por Pedras Brancas”, pergunta outro.

Nuno Marçal conhece todas estas pessoas e as suas famílias, porque percorre diariamente todas as aldeias que vão lentamente ficando desertificadas: “Muitas das pessoas que estão nos lares, conheço-as do tempo em que ainda viviam nas suas aldeias e terras. A biblioteca móvel é também um meio de ligação entre pessoas”, explica o bibliotecário-ambulante que já dobrou os 40 anos.

Entramos para a carrinha cheia de livros nas estantes, um posto de internet móvel e uma bandeira de Portugal no tablier e fazemo-nos à estrada para a volta do dia.

A verdadeira rede social

Enquanto conduz a biblioteca sobre rodas pela bela e traiçoeira estrada que nos leva até à aldeia de xisto de Figueira, Nuno Marçal vai-nos explicando este original projeto: “A ideia nasceu há dez anos e foi impulsionada pela Santa Casa da Misericórida de Sobreira Formosa e o município de Proença-a-Nova. No fundo, recupera um pouco a filosofia das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian que marcaram uma época e que levaram cultura onde ela não havia. O objetivo aqui é proporcionar esse acesso a populações que vivem isoladas.

Inicialmente, o projeto incluía ainda uma Unidade de Saúde Móvel e destinava-se a combater a pobreza e a exclusão social”. A Unidade de Saúde Móvel já está estacionada, mas esta reinvenção das bibliotecas móveis da Gulbenkian está aí para as curvas.

Num tempo que já lá vai, as velhas carrinhas Citroen levavam cultura ao interior e os primeiros livros a muitos leitores, sobretudo os mais jovens. O Serviço das Bibliotecas Itinerantes foi criado em 1958 por sugestão do escritor e notável contista Branquinho da Fonseca, que iniciara anos antes uma experiência semelhante no Museu-Biblioteca do Conde Castro Guimarães, em Cascais. O projeto tinha como objetivo “promover e desenvolver o gosto pela leitura e elevar o nível cultural dos cidadãos, assentando a sua prática no princípio do livre acesso às estantes, empréstimo domiciliário e gratuitidade do serviço.”

A Gulbenkian manteve este serviço ativo até 1996, distribuindo milhares de livros e promovendo a leitura e a cultura no interior e nas regiões mais desfavorecidas de Portugal.

Um serviço à cultura que marcou uma época e que foi dirigido por brilhantes mentes da nossa literatura como António Quadros ou David Mourão Ferreira. Entre os bibliotecários ambulantes das 47 carrinhas Citroen pontificaram nomes como os poetas Alexandre O`Neill ou Herberto Helder.

Inicialmente, o projeto incluía ainda uma Unidade de Saúde Móvel e destinava-se a combater a pobreza e a exclusão social”. A Unidade de Saúde Móvel já está estacionada, mas esta reinvenção das bibliotecas móveis da Gulbenkian está aí para as curvas

O nosso amigo Nuno Marçal tem portanto antepassados célebres e carrega na sua Traffic uma pesada herança. As estantes da carrinha estão arrumadas com os livros catalogados e além disso há um posto de acesso à internet: “Muitas destas terras nem cobertura de telemóvel têm, mas além de levar os livros e as revistas, também ajudo as pessoas nalgumas pequenas burocracias ou a preencher papelada”.

A primeira paragem é na aldeia de Padrão. Nuno estaciona no largo em frente ao café “Pescador” que por encomenda serve as iguarias da região, conforme explica o Sr. Joaquim, pescador e proprietário: “Temos de um lado o Ocreza e do outro a ribeira da Pracana e por isso há por aqui bons locais para a pesca deportiva. Fazemos umas boas migas de peixe”. Enquanto Nuno distribui jornais e revistas para os dois clientes passarem uma vista de olhos, aproxima-se a primeira utente.

Dona Emília vem devolver um livro de Isabel Allende e levar dois, um para ela e outro para o seu marido: “Vivemos em Lisboa e agora estamos reformados e passámos muito tempo aqui no Padrão. Gostamos muito de ler e por isso esta biblioteca móvel e o Nuno são bons amigos. É um projeto muito importante para combater o isolamento destas aldeias”, explica.

Desta vez, depois de trocar umas impressões com Nuno sobre a próxima escolha, a Dona Emília leva “Ossos de borboleta” de Rui Cardoso Martins, mais por afinidade geográfica — o escritor é de Portalegre e a sua família é presumivelmente dali perto questão genealógica que ela tratará de averiguar com o Padre Américo: “O Rui Cardoso Martins foi um dos escritores que convidamos a vir dar uma conferência à biblioteca e a acompanhar-me um dia nestas voltas com livros”, explicou o Nuno Marçal.

Batemos as asas como borboletas e vamos de aldeia em aldeia, onde as pessoas esperam a passagem da biblioteca móvel para trocar livros ou dois dedos de conversa: “As revistas de bordados são as mais requisitadas. Muitas senhoras nem sabem ler, mas gostam de ver os desenhos para depois se inspirarem para os seus bordados. Já os homens, gostam de revistas de caça e pesca, mas também há muitos leitores compulsivos de livros. Os escritores que aparecem na televisão são os mais requisitado, mas os clássicos como Eça, Júlio Dinis ou Fernando Namora, também têm os seus fiéis leitores.”

Os escritores da televisão andam por todo o lado, atrás da caixa mágica, a única que canta por estas bandas. Mal não faz, que ler não é só cultivar, também é entreter, bem o dizia a Dona Emília ao agricultor que estacionou o seu trator Kubota à porta do copo 3: “É melhor ler que andares sempre com essa cigarreta na boca.”

Na terra seguinte apenas uma utente, funcionária do centro de dia de S. Pedro de Esteval, que um dia há-de acabar. Há apenas duas utentes a almoçar. Muitos resistem em requisitar os serviços domiciliários do centro de dia. “São agarrados à notinha. Mais dia, menos dia isto acaba, está tudo a ir morrendo. E depois vão-se queixar que isto acabou.”

Enquanto vai não vai leva um livro de receitas do Jamie Oliver que ensina cozinhados de 15 minutos: “Como se acreditasse, 15 minutos só se for para levar ao lume, ele não deve contar com a preparação”. O humor é sempre o último bastião dos portugueses, povo tão dado à choraminguice como à pilhéria. A conversa da cozinheira abre-nos o apetite.

Agora não perguntes o que podes fazer pelo teu país, pergunta antes o que é o almoço. É tempo de forrar o estômago, que este Sancho Pança anda a trote com o D. Quixote dos livros e já lhe ronca a barriga.

O humor é sempre o último bastião dos portugueses, povo tão dado à choraminguice como à pilhéria. A conversa da cozinheira abre-nos o apetite

Nuno Marçal cumprimenta toda a gente da estrada e do restaurante com familiaridade. Homens das obras, carteiros, vendedores, todos têm bússola com hora marcada para este restaurante de beira da estrada: “É tudo feito aqui por eles, com matéria-prima e criação própria. Os enchidos são muito bons.” A prateleira cintila com uns bons nacos de salpicão, chouriço e dois presuntos dançam languidamente pendurados num varão. A nossa escolha vai para um bom borrego assado, estaladiço e a derreter-se na língua. O Nuno fala-me um pouco da sua vida. Já tem 40 aninhos. Estudou Sociologia em Lisboa e depois tirou a especialização em Ciências Documentais. Há doze anos veio parar a Proença, terra onde tem raízes familiares, e por cá foi ficando, ao volante da Biblioteca Móvel, que conduz sozinho por montes e vales do concelho. É humilde, culto, simpático e bom contador de histórias. Também é um bom garfo e bom copo na hora certa. É uma boa companhia para a estrada. É a ela que voltamos, meio apascentados pelo borrego do almoço. Nuno conta-me uma ou outra história, que eu escrevinho na memória, o meu caderno de campo que já edita, mas muitas delas estão escritas como diário de um bibliotecário no seu blogue O Papalagui.

Na última paragem do dia, a Dona Júlia, viúva de 76 anos que vive numa aldeia com apenas quatro moradores recebe-nos com alegria. Conta-nos um pouco da história da sua vida enquanto escolhe a revista de bordados e um livro para ler: “Os livros são a minha grande companhia, passam-se dias que não vejo ninguém e até parece que os livros falam para mim.”

Despede-se com um sorriso e com um saquinho de nêsperas da frondosa árvore que faz sombra à soleira da sua porta.

Porta por onde todas as semanas passa a Biblioteca Móvel de Proença e o seu bibliotecário-ambulante, Nuno Marçal, herói das pequenas coisas, que são no fundo as mais importantes

Texto: Rui Pelejão

Foto: Nuno Marçal