Guiar no porta-bagagens

08/12/2016

Visitar as galerias de protótipos das diversas marcas de automóveis é um pouco como ler livros de ficção científica dos anos 30 e 40. A curiosidade é saber se a imaginação dos designers e dos autores de BD foi um exercício de futurologia concretizada pelo tempo, esse engenho, ou uma mera abstração.
Por mais que seja inspirador ver como muitos protótipos inspiraram e modelaram gerações de automóveis, os meus protótipos preferidos são os “estrambólicos”, ou seja, aqueles que na grande árvore da evolução do automóvel, foram ramos que não deram em nada, inférteis para a posteridade, mas ainda assim, admiráveis como objetos de criação, loucos e disruptivos.
A Renault, que é hoje uma marca conformada e previsível, sempre soube que a imaginação e o risco são os dois motores principais da inovação e os seus protótipos são exemplo dessa permanente irreverência.

Um dos mais estranhos e extraordinário exercícios de estilo da história de protótipos da Renault é o 900. Lançado em 1959, o Renault 900 é o primeiro de uma série de estudos sobre modularidade e espaço a bordo que, dizem os especuladores, acabaria duas décadas mais tarde por dar corpo ao primeiro monovolume – o Espace. Essa futurologia retroativa pouco me diz, mas o facto de naquela época haver alguém capaz de desenhar um carro em que o volante e o posto de condução eram colocados naquilo que parecia ser a bagageira, e a aparente frente do veículo ser o seu porta-bagagens, é uma deliciosa ode à criatividade, ou se quisermos à alienação. Desconfio mesmo que os designers deste automóvel o desenharam numa noite de copos e de absinto num boteco de Paris. O Renault 900 devia mesmo chamar-se era a fada verde.

O Renault 900 tinha o ar de ser um carro ao contrário e na sua primeira versão o acesso à bagageira-capot era feito pelo interior do veículo – o que devia dar um jeitão para meter as malas de viagem. Numa segunda evolução, o problema foi resolvido com a deslocação do motor – um V8 com 1.7 de cilindrada – mas ainda assim, o carro parecia desenhado ao contrário – com a frente para trás e a traseira para a frente. Uma última solução para resolver este problema de percepção foi criar uma versão ironicamente chamada Fastback.
Nenhuma das versões chegou a passar a porta da linha de produção, felizmente para nós, quem sabe se hoje o paradigma automóvel não seria guiar dentro do porta-bagagens.