A tratar da moto como se vivesse na América

26/04/2018

The Craters of the Moon fica num deserto ao sul do Estado de Idaho. Há uma pequena vila a cerca de 30 Km, Arco, onde fiquei essa noite.

Os pneus que me tinham montado na fabrica da Honda no Japão já estão nas ultimas. Duraram menos que o costume, talvez por as estradas americanas serem mais abrasivas que o normal, para ganharem aderência nos períodos de chuva ou neve. Como o local é isolado atestei o depósito antes de sair Arco e até Eden, o meu próximo destino, perto de Salt Lake City, tentei não ultrapassar os 120 Km/h com medo que o pneu traseiro, já com arames à vista, pudesse estoirar. As cidades e vilas por onde tinha passado desde que deixei Seattle eram demasiado pequenas para que algum concessionário tivesse em stock pneus para a CrossTourer.

Os primeiros cem quilómetros foram através de uma estrada de faixa única em cada sentido que cruza o deserto. Passei junto a uma central nuclear e, pouco depois, afastada da estrada dois ou três quilómetros, vejo Atomic City, uma pequena cidade que foi a primeira no mundo a ser totalmente alimentada a energia nuclear.

Em Eden ía ficar em casa de um homem que me foi apresentado por uma amiga comum que vive em Cape Town, na África do Sul e, por telefone, pedi ao Ross para me tentar encontrar um jogo de pneus na região de Salt Lake City. Acabou por me informar que só havia um jogo num concessionário BMW e outro num da Honda, de entre os perto de dez da região. A razão talvez seja o facto de nos Estados Unidos não venderem estas motos, pois quase todas as Honda de grande cilindrada são Gold Wing ou réplicas das Harley.

O Ross, que só conheci quando cheguei a casa dele, mas que já me tinha dito que poderia lá ficar o tempo que quisesse, é uma pessoa encantadora. Médico reformado tem cinco filhos de três casamentos e vive nesta casa fantástica sobre um lago no Norte do Utah. Aqui a maioria da população são Mormon e ferverosos apoiantes do Trump, como ele, que chegou ao ponto de contribuir financeiramente para a campanha.

O Ross é um tipo grande, bonacheirão, simpático, divertido e inteligente. Uma pessoa que veio de baixo e subiu a pulso, abrindo um consultório de sucesso depois de se formar. Os bisavós, contava-me, chegaram a esta terra, de carroça, no final do século XIX quando não havia aqui absolutamente nada. Tive conversas interessantíssimas com ele e ajudou a mudar a opinião generalizada que tinha do povo americano.

Quando entrei nos Estados Unidos e aqui critiquei os americanos pelas conversas que tive e ouvi nos autocarros, uma das minhas irmãs, que cá viveu muitos anos, discordou da minha opinião e pediu que fizesse uma reavaliação depois de atravessar o país. Ainda vou a meio, mas confesso que, depois dos muitos contactos que tive com pessoas de diversos meios sociais, incluindo os polícias que me pararam na estrada, a minha opinião mudou.

Cheguei a casa do Ross no sábado à tarde e os concessionários fecham, normalmente, à segunda, de maneira que nesses dias, para além de me mostrar a região, apresentou-me a família que vive por perto e aproveitei para mudar o filtro de ar à moto, que não fazia desde a Indonésia, e substituir as pastilhas de travão da frente, que estavam no fim. Quando acabei de mudar o filtro, operação trabalhosa na Cross Tourer pois obriga a desmontar as carenagens e levantar o depósito de combustível, pus a moto a trabalhar mas só uns segundos, para não deixar poluição na garagem. Quando, na terça-feira de manhã, me preparava para arrancar quis pôr a moto a funcionar mas ela não pegou. Voltei a desmontar tudo e verificar as fichas elétricas que pude mas o problema não se resolveu. O que se passou foi porque, por a região de Eden estar a cerca de 1600 metros de altitude e o filtro velho estar muito sujo, a eletrónica da moto tinha regulado o sistema para pouca pressão de gasolina pois o motor também recebia pouco ar. Ao desligar a moto poucos segundos depois de ela ter pegado não dei tempo ao sistema de se autorregular e assim, quando a quis voltar a pegar, respirando bem através de um filtro novo, não tinha pressão de gasolina suficiente para pegar. Tentei fazer um “reset” ao sistema a partir de uma gravação que o Ross encontrou na internet mas sem sucesso.

Assim, na quarta-feira de manhã carregamos a moto num atrelado e levámo-la ao concessionário local. Quando lá chegámos disseram-me que tinham uma lista de espera na oficina de dois meses mas, depois de explicar que estava em viagem, prontificaram-se a receber logo a moto. O computador deles não tinha o “software” para esta moto, por não ser aqui vendida, nem o próprio importador, que eles entretanto contactaram mas, depois da minha explicação sobre o que se tinha passado, acabaram por conseguir pôr a moto a trabalhar e, para meu espanto, não me cobraram nada pela intervenção. Sensacional.

De ali parti para o concessionário que tinha o jogo de pneus reservado para mim, o quinto jogo que monto desde que comecei a viagem.

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*Francisco Sande e Castro está a dar a volta ao mundo de moto e M24 publica o seu diário de bordo. Acompanhe-o nesta grande aventura

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