Câmbios no fim do mundo e um quarto de hotel no Nepal

07/02/2017

Hoje saí antes das onze do hotel em Hetauda mas tive que parar no único banco que encontrei na pequena cidade para trocar 30 dólares que as últimas rupias tinham ido para pagar a estadia.

As empregadas bancárias penso que nunca tinham visto uma nota estrangeira. Perguntaram à gerente o que fazer e estiveram três delas, durante dez minutos, a tratar do assunto. Uma via o câmbio na internet, a outra contava e recontava três notas, a tal ponto que às tantas já não sabia onde as tinha metido, enquanto a terceira verificava se o visto no meu passaporte estava válido, confundindo-o com o do Irão e sendo mesmo necessária a ajuda de um colega.

Quando parecia estar tudo tratado, duas delas dirigiram-se ao gabinete da gerente, que eu podia ver. Esta puxou de uma calculadora, confirmou as contas, assinou o papel e deu-lhes ordem de pagamento. Quando já tinha o dinheiro na mão a gerente, no seu Sari impecável, veio ao computador de uma delas verificar o câmbio e ordenou: “Alto. Desculpe. Elas enganaram-se no câmbio”. Devolvi o dinheiro entristecido, não pelo engano no câmbio mas pela demora que isso representava. Passados mais dez minutos e muitas contas entregaram-me o equivalente a menos 12 cêntimos. Não tive duvidas que estava na província mais profunda do Nepal.

Depois de atravessar uma parte dos Himalaias tinha descido a um vale onde se situava esta cidade e partia agora rumo a uma estrada que atravessa o país de Ocidente a Oriente, pela planície do sul. É a principal estrada do país e tem o alcatrão mais bem tratado que as restantes apesar de só ter uma via em cada sentido e grandes buracos em certas zonas que podem fazer muitos danos. Rodei durante o dia em grandes rectas, já a 120, 130 km/h, mas com imenso cuidado não só para não cair num destes buracos como para evitar as inúmeras armadilhas, não só de cabras e vacas que se passeiam alegremente pela via, um bezerro até mamava tranquilamente, literalmente no meio da estrada, como por camiões que avariam e, não havendo reboques no país, são reparados no local. Houve até incidentes mais invulgares como uma ponte que abateu e me obrigou a atravessar o leito do rio com a moto, felizmente seco nesta altura do ano.

O triângulo de sinalização dos camiões é idêntico aos que já tinha visto em África, uns ramos de árvore ou pedras colocados antes e por vezes ao redor do veículo imobilizado.

Parei pelas três da tarde, junto a um mercado de fruta onde comprei três maçãs que fiquei a trincar debaixo da lona que fazia sombra a um colega da vendedora de fruta. O homem vendia tubérculos que pesava através de uma balança composta por um pau com dois pratos metálicos pendurados em cada ponta, um para os pesos e outro para os tubérculos. O seu dedo era a charneira que, obviamente, tinha tendência para se deslocar mais para o lado dos pesos. Quando as clientes se queixavam ele movia então o dedo um pouco para o outro lado, com muito cuidado para não passar o meio do pau.

Passados uns quilómetros, passei por um trator carregado de gente toda pintada em tons de encarnado e amarelo. Parei para tirar umas fotografias e, em menos de um tempo, estava um operador de câmara de uma tv local a pedir-me para comentar o evento.

Arranquei dez minutos depois para tentar ir ficar a uma pequena reserva animal que havia por perto. Comecei por passar pelo desvio sem o ver porque a placa indicativa estava escrita na língua deles. Quando voltei para trás verifiquei que o lado contrário da placa, virada para quem vem da fronteira com a Índia, já estava em Inglês. Meti pela estreita estrada de terra e, uns quatro quilómetros depois, lá encontrei o escritório decrépito da reserva. Dentro tinham alguns animais mal embalsamados e um elefante bébé dentro de um aquário grande com um líquido qualquer de conservação. Disseram que não tinham a certeza se o Lodge, onde poderia ficar a dormir, estava aberto e que ficava do outro lado da reserva que tinha uma entrada por uma estrada não assinalada.

Lá me explicaram onde era e voltei à estrada principal para a tentar encontrar, mas depois de duas tentativas falhadas e com a noite a aproximar-se, decidi regressar à via alcatroada e retomar caminho. Foi escurecendo rapidamente e, com as vacas sem luzes, decidi que era melhor encontrar qualquer sítio onde ficar. Na primeira aldeia em que passei vi um letreiro que anunciava quartos com casa de banho.

Na sala de entrada com chão em cimento fui atendido pelo que vim a saber ser um cliente. Pedi para ver um dos quartos e acabei por ficar no segundo que me mostraram. Uma cama grande mas dura como pedra, lençóis e almofadas com ar de não verem lavagem há cinco clientes e casa de banho mínima com buraco no chão e duche com saboneteira já atestada com vários restos de sabonetes velhos e uma escova de dentes usada.

A janela, como nos restantes quartos, dava para o corredor. O preço não exigia mais: quatro euros por noite. Não tive outro remédio senão por ali ficar. Prepararam-me um jantar nepalês, com Dal, uma espécie de sopa que creio ter grão e é comum aqui, arroz seco, uns pedaços de galinha num molho picante e alguns vegetais com outro tipo de molho.

Depois do jantar instalei-me numa cadeira de plástico com uma pequena mesa que me puseram em frente, no pátio do hotel, ao ar livre mas, pelas dez da noite, o proprietário anunciou-me que tinha que ir dormir.

— Está bem, eu fico aqui

— Não. É que eu tenho de me ir deitar

Só então percebi que a entrada/sala/recepção/restaurante/bar que, a meu pedido, também tinha servido de garagem para a moto era, além disso, o quarto de dormir do dono e família, mulher e dois filhos de cinco anos e cinco meses.

Fui para o quarto onde acabei de escrever a ouvir a atividade sexual do jovem empregado do hotel, com a sua mulher de 17 anos mas com aparência de 14, mesmo com a televisão do quarto deles ligada, provavelmente para abafarem o som.

Quando acordei já estavam os donos na sala única a ver televisão, sentados no sofá. Enquanto a mulher puxava e largava uma corda atada ao berço do bébé, suspenso com duas cordas no teto, o filho de cinco anos comia arroz à mão de uma tigela. Perguntei se tinham pequeno almoço, mas não havia pão de maneira que me arranjaram dois ovos estrelados e um sumo de lata que eles bebem, mas não é bem fruta. Pelo sabor parece ter caju e leite, misturados com qualquer outra coisa.

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*Francisco Sande e Castro está a dar a volta ao mundo de moto e M24 publica o seu diário de bordo. Acompanhe-o nesta grande aventura

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