Uma aula com o professor Kankkunen, os óculos de Timo Salonen e um Cupra de 300 Cv

30/03/2017

A Finlândia é o país menos povoado da Comunidade Europeia, mas ali, naquela imensa língua de gelado, entalada entre a Suécia e a Rússia, há a maior concentração de lendas de ralis por metro cúbico de gelo.

Uma delas está aqui sentada ao meu lado, ao volante de um SEAT Leon Cupra de 300 Cv, pneus de neve e tração integral. É o meu professor de hoje para uma aula de condução no gelo e chama-se Juha Matti Pellervo Kankkunen, ou simplesmente Juha Kankkunen, ou simplesmente KKK.

É impossível deixar de sentir um calafrio na espinha e não é por causa dos 5 graus negativos que sopram lá fora com aquele encanto ártico, tão branco como o sorriso de um político, um thriller sueco ou a pele de uma beldade nórdica.

Não é todos os dias que nos sentamos no banco do pendura de uma lenda viva dos ralis. É como uma viagem no tempo que me cola as costas ao banco para um flashback emocional que talvez explique porque é que estou aqui hoje a escrever isto num site chamado Motor24.

Anoraques, autocolantes e Toivonen

Os ralis foram a minha primeira paixão. Não sei bem explicar porquê. Se calhar era por causa dos anoraques. Eu adorava aqueles anoraques que a malta dos ralis usava nos anos 70. Eram barbudos, tinham anoraques às cores, eram os hipsters daquela época. Também gostava de autocolantes.

Aliás, era maluco por autocolantes. Lembro-me da alegria que era quando o meu pai trazia autocolantes dos ralis. Eu acho que gostava de ralis por causa dos anoraques, dos autocolantes e do meu pai. O meu pai era jornalista de automobilismo e adorava ralis.

Eu gostava muito do meu pai. Era sobretudo por isso que eu gostava de ralis. Ele levava-me com ele a ver os ralis, e estar com ele era muito divertido.

Numa idade em que as paixões se mediam pela quantidade de posters colados na parede do quarto, as do meu estavam forradas com os meus heróis. O FIAT 131 Abarth de Markku Alen em Sintra, o Toyota Celica de Bjorn Waldegard às piruetas no slalom do Autódromo, Juha Kankkunen e o Peugeot 205 Turbo 16 e, acima de todos, o deus finlandês que subiu ao Olimpo dos ralis cedo demais, como todos os mártires que morrem pela sua paixão.

Henri Toivonen e o seu Lancia 037 Rally, o epítome da minha paixão pelos ralis, que quase posso jurar, não me traia a memória, me deixou sentar no banco do lado do seu 037 no final de um Rali de Portugal.

toivonen-1-pianotoivonen1

Tenho quase a certeza. Eu tinha 10 ou 11 anos. Tenho a certeza que me sentei ali ao lado dele, do meu ídolo de infância, do Henri Toivonen. Se é fruto da imaginação infantil, que se lixe, a vida é feita de enganos, ao menos que sejam bons.

Henri Toivonen morreu seca e estupidamente numa ravina profunda da Córsega, onde despenhou o seu brutal Lancia Delta S4, um dos monstruosos Grupos B que marcou para sempre a história da disciplina e capturou a imaginação de uma inteira geração de adeptos.

Em pouco tempo perdi os meus dois heróis infantis, Gilles Villeneuve e Henri Toivonen, e nunca mais consegui substitui-los.

Cicatrizou a paixão. Seguiram-se Ayrton Senna, Juha Kankkunen, Colin McRae e pronto. Tudo o resto é simpatia, admiração pelo virtuosismo e competência, mas nunca foi, nem nunca mais será, paixão.

Todos os meus heróis do automobilismo, o Toivonen, o Villeneuve, o Senna, o Colin e o meu pai. Morreram cedo demais e ficaram para sempre novos e gloriosos, cravados na memória da minha adolescência, como posters eternos no meu quarto de miúdo. Morreram todos, menos um. Está aqui bem vivinho da silva, ainda não chegou aos 60 anos , costuma abrir um buraco num lago de gelo ali no meio do Ártico e dá umas mergulhaças que o mantêm rijo que nem um bacalhau da Escandinávia.

Kankkunen, mestre Jedi no gelo

“Cresci numa quinta e por isso comecei logo a guiar os tratores e depois tudo o que tinha rodas. Como tínhamos de guiar na neve e no gelo, aprendi depressa a controlar um carro. Aos 7 anos já guiava e aos 12 tive o meu primeiro carro.”, recorda Juha, em conversa após a aula, enquanto saca da sua lendária cigarrilha. Já não tem aquele bigodinho à Errol Flynn, mas a cigarrilha, essa continua lá, no canto da boca, tal e qual me recordo de a ver esfumaçar no final do Rali de Portugal de 1992, que Juha finalmente venceu com o também inesquecível Lancia Delta Integrale.

ce748791d108f306f5423023e6c0c8ff1990_kankkunen_juha1000lakes19902tl3

Num país de virtuosos do volante é preciso ser um sobredotado para chegar à ribalta. Juha Kankkunen começou por dar nas vistas na sua terra, o que naquela época era meio caminho andado para se tornar piloto oficial no Mundial. Começou com a Toyota Europe e em 1986 ingressou na equipa Peugeot para domar o feroz Peugeot 295 Turbo 16.

Foi com esse carro que o vi primeira vez ao vivo em Sintra. O som, meu Deus, o som e a fúria a ribombar da Pena à Peninha. Depois do primeiro título mundial com a Peugeot, somou mais dois com a Lancia e fechou a contabilidade com a vitória no campeonato do mundo de ralis de 1993 ao volante de um Toyota Celica Turbo.

Até ao final da sua longa carreira no Mundial de Ralis, ainda pilotou pela Ford, Subaru e Hyundai, equipa em que terminou a carreira no ano de 2002, quase vinte anos, 700 etapas vencidas, 162 ralis cumpridos, 23 ralis vencidos, depois. Pelo caminho, tempo para vencer a edição de 1998 do Rali Paris Dakar, com a Peugeot e aviar duas Corridas dos Campeões.

Agora, aos 58 anos, ainda não está propriamente retirado. É detentor do recorde de velocidade no gelo, obtido com um Bentley em 2007. Recorde que confessa se estar a preparar para bater outra vez, outra vez com a Bentley: “Deve ser no próximo inverno, mas ainda é mais ou menos segredo”, diz sorrindo, “o que não é segredo é que também tenho o recorde do mundo de velocidade com um trator no gelo e esse vai ser difícil roubá-lo”, uma gargalhada, uma baforada na cigarrilha e já está.

A escola do professor Kankkunen

A Juha Kankkunen Driving Academy é apenas uma das suas múltiplas atividades. Esteve metido na política (à semelhança do seu compatriota Ari Vatanen) e tem um contrato como piloto da Bentley. A escola de pilotagem foi criada aqui em Kuusamo, na Lapónia finlandesa, porque este é um importante centro de testes de inverno, onde as marcas do grupo Volkswagen (e não só) vêm fazer os rigorosos testes com temperaturas árticas que podem ir até aos 30 a 40 graus negativos.

Foi também por esta fronteira dos 1000 lagos gelados que andou o mais mortífero sniper da história. O segundo tenente Simo Häyhä, a quem está creditado o maior número de mortes em combate, durante a guerra russo-finlandesa de 1939.

tumblr_mnjc5hia2s1reh0fqo1_500

Mais de 700 soldados russos encontraram a “morte branca”, que era o cognome dado a Simo Häyhä pela sua capacidade de se camuflar na neve e surpreender os seus inimigos. Li isto algures, e agora imaginava que o fantasma de Simo e das suas 700 vítimas ainda soprava por ali com um lúgubre uivo ártico.

“Temos vários níveis de curso, mas para um condutor vulgar, sem nenhumas aptidões, bastam dois dias aqui connosco para poderem dominar o essencial da condução no gelo.”, interrompe Juha.

Mas, afinal qual é o segredo da condução do gelo? —pergunto-lhe.

— Acima de tudo suavidade e visão.

Lá vem a conversa de Mestre Jedi. Visão tem mesmo de ser bem treinada. Eu cá só vejo branco por todo o lado e nunca sei bem para que lado é o raio da curva. “Todos os movimentos devem ser suaves, porque o carro reage sempre com imensa sensibilidade a qualquer movimento de volante, acelerador ou travão. Depois é saber antecipar cada curva e saber o que fazer na curva a seguir, balançando o carro para ter o drift perfeito para a próxima curva.”

Ao volante, na aulinha na pista de gelo, ele já me tinha explicado isto tudo, enquanto olhava para mim, sem sequer olhar para a frente do carro, ao mesmo tempo que deslizávamos num interminável slide pelo gelo. “O compasso é sempre o mesmo: brake, stear, throttle!” , que é como quem diz: trava muito antes da curva, vira o volante um bocado antes da curva, acelera a fundo para ganhares tração quando estiveres de frente para o apex; para saíres da curva.

Isto se o teu carro tiver potência para isso. Se for um Ibiza 1100 cc é provável que vás fazer de boneco de neve. Agora com este Cupra de 300 Cv e este sistema de tração integral eletrónica que puxa mais à frente, “só sais da pista se fores demasiado bruto com o acelerador” que é mais nervoso que uma pedra de gelo no meu vodka.

Depois de meia dúzia de atravessadelas mal medidas, aquilo do compasso lá começa a saír mais certo e menos limpa-neves. Ao fim de uma hora a fazer patinagem artística com o Leon Cupra, já me sinto o novo Juha Pelejonen. É bom para treinar as contrabrecagens a média, baixa velocidade e para compreender melhor as reações dinâmicas de um carro, bem eficaz e divertido de conduzir, como este SEAT Leon Cupra.

seat-leon-cupra-004lseat-leon-cupra-024l

Mas há um truque nisso do virar o volante, não há? Conte lá Sr. Kankkunen exatamente o que é isso do scandinavian flick?

— Basicamente é dar primeiro um pequeno golpe de volante para o lado contrário da curva, para rapidamente dar o contragolpe e equilibrar o carro para o slide saír certinho.

Esta é a razão pela qual o meu velho diretor, Rui Freire, que sempre gostou mais de F1 do que de ralis, dizia a gozar: “Que desporto é esse em que um gajo para fazer uma curva tem de virar o volante para o lado contrário da curva?”

Aqui na escolinha de inverno do Sr. Kankkunen ensinam a fazer scandinavian flicks como ninguém. Dois dias bastam, dizem eles, e quanto custa? pergunto eu. “Isso é aqui com o Reppo”, despacha Juha, como que dizendo: “Eu não me ocupo dessas coisas, que isto da escola é só para pagar ao jardineiro da minha casa no Mónaco:”

Juha Reppo estende-me a mão e diz: “Faço-te um bom preço!”

Mesmo que faça um desconto, um curso básico de iniciação custa 2000 euros. Depois há cursos mais completos e até escola de pilotagem. No grupo de instrutores, além de Kankkunen, há nomes como Hari Rovanpera, Harri Toivonen, Anton Alen ou o sorridente Juha Reppo, outra velha lenda dos ralis, que foi navegador de Kankkunen na fase final da sua carreira e está aqui mesmo à minha frente a tentar vender-me um curso de pilotagem no gelo.

Num trenó de huskies, qual Amudsen

Depois do circuito gelado do lago, a etapa seguinte é uma road trip de SEAT Ateca pelo meio da floresta. As estradas estão cobertas de neve, mas os pneus de inverno e a eficácia do sistema de tração integral do primeiro SUV da marca espanhola permitem andar com segurança, desde que não se exagere no pedal do acelerador ou no volante. Ao meu lado, um tipo novo e simpático vai-me indicando o caminho entre aquele imenso branco, só pontuado pelas copas dos pinheiros e as brumas dos lagos gelados.

Só já quase no fim da viagem percebi quem era o meu navegador. “Conheci muito bem o teu pai, em Portugal ele é venerado como um deus”.

Ele sorriu, com um certo ar de enfado de quem já ouviu esta conversa mais de um milhão de vezes. É normal, para quem se chama Anton Alen, e tem um pai chamado Markku, Markku Alen.

Despeço-me dele, e quase mando um tralho com uma derrapagem descontrolada à saída do Ateca. Na Finlândia é mais perigoso andar a pé do que andar todo atravessado num lago gelado com um Leon de 300 Cv.

Ler + Uma corrida no gelo entre um trenó de huskies e um SEAT Leon Cupra de 300 Cv

Sobrevivo à patinagem artística e preparo-me agora para viver uma das mais fantásticas experiências da minha vida e conduzir o veículo mais empolgante de sempre. Um trenó puxado por seis cães. Nunca guiei nada assim, nunca nenhum Lamborghini, Porsche, Aston Martin ou assim, me fez sentir assim. Os huskies da Sibéria e do Alasca puxam o mais antigo meio de mobilidade do Ártico, os trenós. São capazes de percorrer 130 quilómetros por dia e atingir velocidades próximas dos 30 km/hora. É incrível a sensação de liberdade, levar com o vento cortante na cara e olhar para um interminável horizonte de branco, e seguir em frente, sempre, puxado pela euforia competitiva do meu trenó com tração aos seis huskies, que não param nem á lei da bala. 

Só sabem correr como uns desvairados organizados, só correm e por vezes estendem a língua em andamento para chupar um pouco de gelo da berma. Sinto-me um autêntico Amundssen rumo à conquista do Polo Norte. Estou tão mergulhado na aventura que não travo a tempo e entro pela traseira dentro do trenó de um italiano pastelão que plantou a sua “machina” ali bem na trajetória dos meus cães – Pizzi, Nelson Semedo, Jonas, Luisão e os outros os dois não me lembro o nome que lhes dei, mas deviam ser do Benfica.

A experiência podia terminar com uma sauna finlandesa, mas preferi fintar essa parte do programa, e aterrar no jantar típico, de salmão, carne de rena e requintados acepipes a demonstrar a originalidade da gastronomia escandinava. Na minha mesa está Jordi Gené, um grande piloto espanhol que no dia anterior tinha feito uma corrida com o Leon Cupra contra um trenó puxado por uma matilha de cães campeões.

Ainda estou inebriado pelo Kankkunen, pela expedição de trenó, e por dois ou três vodkas, que nem passo grande cartão ao Jordi.  Desculpa, Jordi, não é nada de pessoal, mas no dia em que se conhece o Juha Kankkunen é difícil dar atenção a qualquer outro piloto.

Não me digas que tu és o Seppo?

No final do jantar, um simpático velhote abre as portas da carrinha do transfer que nos vai levar de novo ao hotel, em Ruka, uma estância de esqui finlandesa. Já é noite profunda. Noite a preto e branco.

Preto o céu, branca a estrada. O nosso driver cumpre escrupulosamente os 80 km/h de velocidade máxima e guia a Alhambra com a souplesse dos mestres Jedi. À chegada ao hotel, resistimos aos 10 graus negativos e fumamos um cigarro à porta. Cigarro puxa conversa e digo-lhe que sou de Portugal, ele fala-me do peixe e do rali de Portugal, diz que já foi navegador de ralis e costumava andar ao lado de um tal de Timo Salonen.

— Espera lá!, Não posso crer!?

Este avozinho simpático é o mítico Seppo Harjane, um dos maiores navegadores da história dos ralis? Ele ri-se muito, vê-se que acha graça que ainda se lembrarem dele.

Timo Salonen foi um dos mais originais e misteriosos pilotos de ralis de todos os tempos. Tinha um talento único e inato, “mas gostava pouco de trabalhar”, explica Seppo. Ainda assim, na sua passagem pelo Mundial de Ralis, primeiro com a Nissan e depois com a Peugeot, Mazda e Mitsubishi, deixou a sua marca, sagrando-se campeão do mundo em 1985 com o Peugeot 205 T16, no mesmo ano em que venceu, conjuntamente com Seppo, o Rali de Portugal (a última foi em 1992 com o Mitsubishi Galant). Seppo esteve sempre ao lado deste talento singular, com ar de tio, gorducho e de óculos que pareciam janelas, que era conhecido como Uncle Timo.

1985salonen-harjanne242f7b48ff6f1d99b765670226cf0c29

Tal como as cigarrilhas de Juha Kankkunen, os enormes óculos de Timo fazem parte do relicário dos ralis, isso e a bela da cerveja que ele e Seppo costumavam puxar para dentro do carro no final de cada dia de prova.

Este simpático velhote que conduz transfers na Lapónia e passa um mês por ano no Quénia, foi um dos maiores especialistas do mítico rali maratona africana, o Safari, tendo sido navegador de Tomi Makkinen, depois do Uncle Timo se ter retirado da competição para a sua quinta no interior da Finlândia “para guiar tratores e beber cerveja que foi o que ele sempre gostou de fazer.”

Despeço-me de Seppo e marcho para o bar do hotel.

É noite de karaoke e parece que hoje toca uma banda finlandesa muito famosa nos anos 80. Um tipo tenta dizer-me alguma coisa, temo que seja mais uma lenda dos ralis e tento fintá-lo, por hoje já chega de lendas. Afinal era só o homem do bengaleiro.

A banda finlandesa era do piorio, daquelas roqueiradas escandinavas do Festival da Canção. Não se pode ter jeito para tudo. Os finlandeses não nasceram para cantar. Nasceram para ser pilotos de ralis e nasceram para beber. Aqui na discoteca à pinha deste hotel está tudo bêbado. Eu, como sou de um povo do sul que gasta tudo em copos e mulheres, decido poupar uns trocos para o défice e retiro-me do teatro de operações com a ligeireza com que os russos retiraram da Finlândia, acossados pelas balas do “morte branca”.

Adormeço a pensar em snipers, Lancias, huskies, expedições científicas no Pólo Norte, derrapagens no gelo, auroras boreais, lendas dos ralis, Toivonens e vodkas. Apago a pensar se terei coragem para aquele grande remédio finlandês para as ressacas — abrir um buraco no gelo de um lago e dar um mergulho na água gelada, talvez assim um dia consiga fazer um scandinavian flick como o Juha Kankkunen, ou pelo menos chegar aos 60 tão bem conservado como ele.

Percorra a galeria de imagens acima clicando sobre as setas.