Boeing 737: 50 anos a despertar paixões

20/04/2017

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Ninguém se pode gabar de ser “passageiro frequente” sem ter alguma vez voado num Boeing 737. Na verdade, ninguém saberá verdadeiramente o que significa o “século da aviação comercial” sem conhecer esta aeronave. Transporta, ainda hoje, milhões de passageiros, representa a democratização do voo a jacto e é profundamente amado por pilotos, em especial por aqueles que passaram a comandar aparelhos da era do “fly by wire”. O Boeing 737 está a comemorar 50 anos de vida. E parece que está só a começar.

Coloquemos tudo isto em perspectiva: em 9 de Abril de 1967, dia do primeiro voo do Boeing 737, a aviação estava apenas ao alcance das elites mais abonadas. Confesso que tenho pena de não ter vivido essa era, em que viajar de avião era sinónimo de glamour, um casual chic aconchegado por refeições decentes e bar aberto. Em que o passageiro era um cliente e não um incómodo. E, pois claro, em que havia mais espaço entre os assentos do que hoje há nos corredores.

É certo que na altura em que o “37”, como é chamado na gíria dos pilotos, começou a ser construído pela primeira vez, já não se vivia tão intensamente o deslumbre da “jet age” que nos final dos anos 50 fez do mundo uma pequena aldeia e cunhou termos tão exóticos como “jet lag”. Também é verdade que já fazia mais de 10 anos que Frank Sinatra tinha prometido levar-nos de Bombaim ao Perú em “Come Fly With Me” (a única canção que consegue dizer a palavra “rarefied” e sair-se bem com isso). E até Frank Abgnale Jr. já tinha deixado os cockpits da Pan Am e as aventuras que haveriam de lhe sair caras daí a pouco tempo, muito por conta de uma hospedeira francesa que o topou em Montpellier. Sim, os Boeing 707 e 727 eram já uma visão comum nos aeroportos de todo o mundo. Mas tudo isto, mesmo que já evidenciasse uma certa generalização, só era verdadeiramente rotina para um grupo relativamente restrito de afortunados viajantes.

A genialidade do 737, a sua enorme magia, reside precisamente aqui: a forma como conseguiu ler perfeitamente o seu tempo e aparecer como uma proposta vanguardista para a época. O tal lado exclusivo do transporte aéreo ainda era uma realidade, mas a Boeing arriscou na antecipação de tendências que só hoje nos parecem inevitáveis, como por exemplo a massificação.

“ninguém saberá verdadeiramente o que significa o ‘século da aviação comercial’ sem conhecer” o Boeing 737″.

Para isso, era necessário um avião mais pequeno, mais versátil e mais eficiente que os 707 e 727 nos percursos de curta e média distância, ou seja, uma solução que se ajustasse ao modelo “high frequency/low density” – mais voos com menos passageiros. Porque, como se sabe, cada lugar vazio significa perda de dinheiro. Era necessário – ou adivinhava-se que isso iria acontecer – uma aeronave com capacidade em torno dos 100 lugares, capaz de operar a partir de aeroportos mais pequenos e que permitisse rotações (tempo entre um voo e o seguinte) mais rápidas. E não deixa de ser curioso como aquilo que acabo de escrever se encontra ainda hoje tão presente nos discursos de eficiência no transporte aéreo, incluindo os modelos low-cost…

A fórmula encontrada foi aquela que, meio século depois, perdura como o grande paradigma do curto e médio curso: dois motores sob as asas, libertando constrangimentos estruturais da fuselagem e permitindo, assim, torná-la mais larga para acolher filas de seis assentos. Afinal, o modelo de single aisle que domina este segmento de mercado até à actualidade.

A Lufthansa, ontem como hoje uma das melhores companhias do mundo, foi a primeira a acreditar no projecto, recebendo em Dezembro de 1967 o primeiro 737 da história, um 737-100, o mais pequeno de todos os que foram produzidos, com capacidade para 115 passageiros. O arranque acabaria por ser tímido e a grande descolagem só aconteceu verdadeiramente com as versões -200, maiores, mais potentes e com inúmeras melhorias aerodinâmicas. Esta variante viria a tornar-se a espinha dorsal de muitas companhias aéreas em todo o mundo, incluindo a TAP. Nos anos 70 e 80, os Boeing 737, nas suas múltiplas modernizações, detinham a hegemonia dos céus na sua categoria e só os DC-9/MD-80 lhes faziam uma concorrência tímida. Foi preciso esperar até 1987, ou seja, exactos 30 anos, para surgir um competidor à altura: o Airbus A320. E isto diz muito da tal genialidade do 737.

Os números são arrasadores: até ao final de Março, a Boeing já tinha produzido 9448 unidades, com as encomendas para futuras entregas a superarem as 4500. Com a chegada da nova geração, denominada “Max”, o fabricante norte-americano anunciou mesmo o aumento da capacidade da unidade de Renton de 47 para 52 aviões por mês. De acordo com as estimativas que cruzei junto de várias fontes, a todo o momento existem perto de 1500 Boeing 737 a voar nos céus.

Visto assim à distância, tudo isto parece muito certo. Óbvio, mesmo. So what? A verdade é que há 50 anos nem mesmo em Seattle, a cidade-berço dos Boeing, havia certezas quanto a esta evolução. Basta ler o que diz Brian Wygle, o veterano piloto, hoje com 92 anos, que comandou o first flight do 737, em Abril de 1967: “Há 50 anos, a nossa melhor expectativa era vender o suficiente para atingirmos o breakeven”. Em declarações a um jornal de Seattle, Wygle reconhece que “o Boeing 737 tomou o mundo da aviação de surpresa e tem sido melhorado consistentemente desde então. Claramente veio preencher uma enorme necessidade”.

O que diz o piloto…

Mas o Boeing 737 tem ainda outra particularidade: é o que se pode chamar um avião “de pilotaços”. Qualquer interessado na aviação, como é o meu caso, já leu inúmeros relatos de recordam a agilidade, previsibilidade, eficácia e, acima de tudo, o prazer de pilotar um “37”. Esta parece ser, de facto, uma aeronave com uma indesmentível aura, com um apelo único para quem se senta nos lugares lá mais à frente – e não estou a falar da Executiva, porque para isso basta ter um bom cartão de crédito ou não usar leggings.

Tenho a sorte de ter um amigo que é piloto comercial. Sorte que começou no dia em que, ainda ele era instrutor no Aérodromo de Cascais, me levou a dar umas voltas de pista em Cessna 152 e acordou definitivamente o meu gosto pela aviação. Ainda íamos a 1000 pés antes de virarmos para a final do primeiro touch and go e eu já sabia que iria tirar a licença de monomotores. Fiquei-me pelo PPA, mas ele continuou. Subiu a pulso e lembro-me muito bem como venceu tudo para conseguir a licença de piloto comercial: começou precisamente no 737 e ainda recorda esse avião com um visível entusiasmo.

Chama-se Carlos Carinhas e é actualmente Comandante de Airbus A330 numa grande companhia asiática. Trabalha no outro lado do mundo, cruza a outra metade no assento do lado esquerdo, e tripula uma das aeronaves mais sofisticadas que existem. Mas não esquece o avião onde iniciou a sua carreira: “Digo-o sem qualquer dúvida – o Boeing 737 é, até hoje, o melhor avião que pilotei em termos de handling, das sensações que nos transmite constantemente”.

Carlos Carinhas fala com a convicção de mais de 10 000 horas de voo em 737. Iniciou-se em 1991 na Air Atlantis e passou pela Ryanair e Sabena. Pelo meio, uma experiência que adivinho de voo e de vida, como co-piloto em 737-200 na paquistanesa Shaheen Air… “Uma das características mais fabulosas deste avião é a de que voamos com ele para qualquer lugar, para qualquer aeroporto”, diz o Cmdt. Carinhas, lembrando as muitas variantes especiais que operam nos lugares mais inóspitos do globo. “São autênticos tanques voadores, com sistemas muito testados e que a todo o momento parecem aguentar tudo e mais alguma coisa…” – o piloto português, que é também um conhecedor de carros desportivos, não resiste à comparação quando lhe pergunto as diferenças entre um 737 e um “fly by wire” dos tempos modernos: “É como colocar lado a lado um daqueles Lotus Elan dos anos 70, em que sentimos tudo, onde não há electrónica entre o condutor e o carro, e uma Renault Espace…” A resposta aos inputs “é extraordinariamente precisa”, o que explica que tantos pilotos gostem de o tripular, mesmo numa era em que o piloto automático domina a maior parte das fases de voo. “É como se estivéssemos ligados directamente a todas as superfícies aerodinâmicas do avião”, comenta.

Não queremos, nem ele, nem eu, entrar aqui na velha história do “Boeing vs. Airbus”, até porque o 737 é um caso à parte… E Carlos Carinhas tem também milhares de horas de voo em A320 e A330: “São aviões fantásticos e extraordinariamente eficazes, mas concebidos para um tipo de operação distinta daquela que serviu de base ao 737, em que o feeling transmitido ao piloto era fundamental”.

O comandante sublinha a importância dos avanços tecnológicos, mas o piloto não esquece as origens: “O 737 é um avião único e que deixa saudades a quem o tripulou”.

Não tenho as memórias riquíssimas do Carlos em 737, muito menos no tal assento do lado esquerdo, mas lembro-me que o meu baptismo de voo foi precisamente num 200, numa viagem entre Lisboa e Londres com a British Airways. Na altura, as portas dos cockpits ainda não eram blindadas pelo medo do terrorismo, pelo que era relativamente fácil pedir para fazer a aterragem no jump seat. Fui autorizado a entrar e sentei-me o mais quietinho que consegui. E, mesmo passado tanto tempo, estou capaz de jurar que o piloto ia tão radiante como eu naquela aproximação à pista 27 esquerda de Heathrow.


Luís Pimenta acompanha o setor automóvel há mais de 25 anos. Editou e dirigiu vários órgãos de comunicação social especializados e generalistas e dedica-se hoje à consultoria e produção de conteúdos e de plataformas de comunicação online.