O Carocha do Senhor Casimiro

11/03/2018

Li há poucos dias uma crónica de Vitor Belanciano, Não Ter Carro, em que o jornalista do Público afirma que o carro ocupa um campo desmesurado na sociedade portuguesa. “Na redefinição do espaço urbano, na ocupação da rua, no fim do reinado absolutista do automóvel ainda estamos nas trevas”.
Escreve ainda que lhe “custa compreender as horas gastas, aos domingos de manhã, a arejar e a limpar o popó, com o mesmo cuidado do dar banho a um bebé. Não percebo como é que o museu mais visitado em Portugal é o dos coches. Não apreendo a relação identitária, por vezes mesmo fetichista, que a maioria tem sobre um objecto estético que é, na sua esmagadora maioria, acinzentado e de formas padronizadas, parecendo quase todos idênticos”.
Não esperem de mim que venha para aqui insultá-lo – para isso há a caixa comentários do jornal – até porque, na essência, concordo com quase tudo o que diz. O problema é o quase. O tom, sou muito sensível ao tom.
Sempre tive carro, mas durante cerca de dois anos fui de bicicleta para o trabalho. Em Lisboa, sim. Era uma pasteleira amarela, meio senhoril, linda. Usava o carro, sobretudo, ao fim-de-semana, pensei ver-me livre dele várias vezes, a verdade é que gostava daquela vida dupla, não me parecia de todo incompatível. Até que um dia a deixei sem cadeado e roubaram-ma. “Tiveste sempre tudo de mão beijada, é esse o problema”, ouvi.
Não interessa quem disse, até porque esta crónica não é sobre mim, é sobre o senhor Casimiro. Vou contar-vos a história de forma resumida, espero acertar no tom.
Casimiro era torneiro mecânico numa empresa têxtil. Uma fábrica gigante, com centenas de empregados. Começou como ajudante de pedreiro aos onze, aos doze entrou para a fábrica e para a Segurança Social, aos vinte e poucos era já era uma espécie de guardião dos teares, capaz de construir de raiz qualquer peça.
Também tratava dos carros clássicos do patrão, um homem duro mas correto, à luz da época. Tinha uma colecção invejável, agora não me lembro ao certo os modelos, sei que eram muitos e exclusivos, tirando talvez um Carocha pelo qual nutria, ainda assim, um grande valor sentimental. Foi o seu primeiro carro. Passava os dias à cata de relíquias, algumas delas só chapa e osso, e depois depositava-os nas mãos de Casimiro.
“Quero isso como se tivesse sido feito em Inglaterra” dizia-lhe.
Ninguém restaurava carros como os ingleses, à excepção de Casimiro, que nunca tinha estudado nem galgado as fronteiras do concelho, mas nascera com uma sensibilidade britânica. Acordava todos os dias às quatro, saía de casa às cinco e pedalava 55 minutos até ao portão de entrada da fábrica, onde estacionava a sua pasteleira. Herdou-a do seu avô.
“Estás a dar banho ao Jaguar? “, envenenavam os vizinhos, quando o viam, todos os domingos de manhã, a lavar e afagar o quadro com uma delicadeza de amante.
“Aposto que não tratas assim a tua mulher”.
Um dia Casimiro caiu. Não foi culpa sua, foram os olhos embaciados de sono que não viram uma ruga nova naquele velho chão, deixando-o a agonizar na valeta durante várias horas. Foi salvo pelo padeiro. Corajoso, estancou o sangue com o calor das regueifas e dos papos secos, colocou-o na parte de trás da carrinha e acelerou até ao hospital mais próximo. Casimiro sobreviveu, mas ficou incapaz de pedalar.
“Onde está o Casimiro?” – perguntou o patrão depois de dois dias sem lhe pôr a vista em cima.
“Não pode vir trabalhar” – responderam.
O homem não esteve com meias medidas. Entrou no Carocha, pediu a um empregado que o seguisse, e foi até sua casa.
“É teu”, disse para Casimiro, apontado para o carro.
“Não posso aceitar”, respondeu.
“É uma ordem”
“Não tenho carta”
“Eu compro-te uma”
A partir de então Casimiro passou a ir de automóvel para o trabalho. Quase até ao trabalho. Não queria passar por rico, apesar d’ aquele ser conhecido como o Carro do Povo, muito menos visto como preferido do patrão, por isso deixava-o num descampado e fazia o resto do caminho a pé, quinze minutos a coxear, mais perna menos perna.
Foi assim durante quase quarenta anos. Só os domingos eram diferentes. Acordava tarde, por volta das seis e meia, tirava a pasteleira e o carro da garagem e ficava a manhã toda a cuidar do seu império. Ao meio-dia, pegava na mulher e nos filhos – uma rapariga e dois rapazes – e acelerava ladeira acima até à Tasca do Manel, onde religiosamente pediam chouriça assada, rojões, codornizes e uma garrafa de vinho verde, às vezes duas. As tardes eram passadas no campo da bola, quando havia jogo, ou no miradouro, a ouvir o relato. A mulher, Severa.
Quando Casimiro morreu, já senhor Casimiro, já viúvo, já os filhos quase velhos, todos com carro, decidiram ainda no funeral que o Carocha rodaria uma semana por cada um deles.
Dizia o meu avô que era bonito observá-los, todos os domingos de manhã, a arejar e a limpar aquele acinzentado amontoado de chapa com o mesmo cuidado do dar banho a um bebé, onde, de tão bem cuidado, se via refletida a memória e a cara do pai.
Termos sido um país pobre durante tantos anos não nos uma dá carta branca para sermos provincianos a vida toda – e nem deus, talvez Belanciano, sonha como somos provincianos – mas dá-nos uma pequena margem de manobra para escrever histórias com esta.