Carros e vinho: o segredo da prosperidade

12/03/2017

Os carros e o vinho combinam bem. Se estiverem juntos, então, dão saúde e fazem crescer. Assim escrita, à bruta e sem rodeios, esta é uma frase candidata à chicotada moral da brigada dos costumes, à vergastada inclemente dos guardiões do politicamente correcto. Por muito menos, ao que se diz, os Távoras ganharam um beco salgado em Belém. Citá-la sem contexto é lugar garantido no pelourinho dos tempos modernos e que se chama, como sabemos, Facebook. Todo o cuidado é pouco e por isso a explicação que se impõe: os automóveis clássicos e os vinhos raros foram os objectos de colecção que mais valorizaram na última década, com crescimentos que ultrapassam os 458% e 237%, respectivamente.

Neste caso, está bem de se ver, a saúde vale ouro. Na verdade, até vale mais do que isso. O metal precioso só registou uma valorização de cerca de 100% nos últimos 10 anos, com um pico importante nos anos mais duros da crise financeira, fruto da maior apetência dos investidores por aplicações de refúgio em tempos de aversão ao risco. Nada que se compare, portanto, às mais valias geradas pelos automóveis clássicos e pelos vinhos de colecção. As estatísticas dizem que estes brilharam mais do que as caves do Fort Knox.

As contas encontram-se espalhadas por uma miríade de relatórios de casas de investimento e as conclusões – mais ponto percentual, menos ponto percentual – apontam todas no mesmo sentido. Retenho, de tudo o que tenho lido nos últimos tempos sobre isto, um trabalho da Knight Frank, firma britânica especializada em investimentos de luxo. De acordo com o seu Knight Frank Luxury Investment Index (KFLII), que recolhe índices de fontes externas (e credíveis) para analisar a performance de 10 tipos de bens, automóveis clássicos e os vinhos de topo mantêm um padrão consistente de valorização, apesar de alguma desaceleração face ao início do período em análise.

grafico-classicos

O gráfico é claro quanto à tendência. E torna-se ainda mais relevante quando todos os anos vamos ouvindo os analistas dizerem que o mercado tocou finalmente no seu ponto máximo. A subida tem sido tão espantosa que nem os especialistas acreditam, como se percebe. E os automóveis clássicos têm desmentido estas previsões muito melhor do que qualquer outro dos denominados “investimentos de paixão”. Os preços são especialmente galopantes na franja de topo, isto é, nas raridades valorizadas ao escalão milionário. Há cerca de um ano, no Retromobile de 2016, a casa francesa Artcurial fez o maior alarido com aquela que foi a sua venda mais cara de sempre, quando um comprador mãos largas pagou nada menos do que 32 milhões de euros por um Ferrari 335 Sport Scaglietti, de 1957. Mesmo assim, abaixo dos cerca de 35 milhões com que, do outro lado do Atlântico, a Bonhams fechou a venda de um 250 GTO Berlinetta, de 1962, no seu leilão de Quail Lodge, em 2014. E, na verdade, eu já ficaria contente em entrar naquele clube exclusivo da Califórnia, nem que fosse só para fazer a magnifica estrada de Carmel ao volante de um carrinho de golfe. Mas isso sou eu e cada um sonha com o que pode. Pois.

A última edição do Retromobile, em Paris, voltou a ser pródiga neste fenómeno e o Motor 24 até falou bastante sobre isso. Mesmo por valores menos astronómicos do que aqueles que cito acima, ficam para a memória a qualidade dos carros levados a leilão e o interesse despertado. Nesta que foi uma das edições mais concorridas de sempre do salão de clássicos – em expositores e público –, a Artcurial anunciou um total de 31,944,484 milhões de euros no seu leilão de 10 Fevereiro. Desta vez, a unidade mais cara foi um Dino 206 P Berlinetta Speciale, pela pechincha de 4,4 milhões de euros. Excluindo o recorde do tal 355 Sport Scaglietti do ano anterior, o volume de transacções representou um acréscimo de nada menos do que 33% face ao leilão de 2016.

Os números são relevantes, mas o que impressiona mais nisto tudo é a dimensão da tribo: mais de 500 pessoas, de 18 nacionalidades, registaram-se para licitação na sala, onde se juntaram cerca de 3 000 almas. E a Artcurial diz-nos ainda que à volta de 15 000 outros seguiram o leilão online. Recordes? Mas é claro: 59 lotes vendidos por mais de 100 000 euros, 11 por mais de 500 000 euros e 7 a ultrapassarem a fasquia do milhão.

Este caso revela, assim, a robustez e vitalidade do mercado. Tanto mais que, na mesma sala, ao mesmo tempo que o Dino deixava todos de boca à banda, pela beleza e pelo preço, e um Bugatti Atalante dobrava a base de licitação, também era possível descer à terra com um Renault 4CV, vendido por pouco menos de 18 000 euros…

Parece evidente que o mercado não abre portas apenas a quem é milionário ou aos investidores hardcore. A sua magia parece residir exatamente aí. Tal como na sala de leilões da Artcurial em Paris, há lugar para todos: lado a lado com aqueles que olham para os carros clássicos como “activos”, está uma multidão de entusiastas que a eles se dedica por paixão pessoal e sem contrapartidas.

E aqui é interessante verificar o lado a que chamo “mercado geracional”. Por exemplo: os carros produzidos depois de 1980 estão a conhecer um sucesso assinalável, fruto da dinâmica temporal óbvia que começa a transformá-los em… clássicos. Mas não é só isso. A geração que agora chegou tem a vida suficientemente resolvida para poder resgatar aquele sonho de adolescência que tinha no poster do quarto lá em casa. Os baby boomers andam em grande e a minha geração, a X, desata a salivar perante a possibilidade de ter e cuidar de um GTI (o Golf ou o 205, que eu cá não sou esquisito). Tenho sérias dúvidas que os jovens Y ou Z tenham o mesmo afinco: a vida está muito mais dura para eles e, sinceramente, não vejo que um carro autónomo tenha grande futuro como clássico. Talvez a Artcurial e a Bonhams tenham de se dedicar aos leilões de iPhones 3G, Nintendos ou Play Stations. Essa até eu pagava para ver.

É também por isso que não ligo nem um pouco às transacções dos tais vinhos “de colecção”. Talvez porque ainda não tenha recuperado do trauma de um certo almoço de Natal, quando o patriarca da família lá acedeu a abrir aquela – a tal – garrafa de Barca Velha e afinal o néctar estava mais passado que uma ressaca das pesadas. Foi uma dor de cabeça. Deitar dinheiro fora é mau, transformá-lo em vinagre é pior. Não consigo, por isso, compreender esta dinâmica estranha que faz com o vinho valha mais enquanto está rolhado. É como aquelas pessoas com quem simpatizamos muito, mas só até ao dia em que abrem a boca. É terrível.

Nos carros é diferente. Gosto de olhar para os automóveis clássicos como um bálsamo da memória. Só assim eles fazem sentido para mim. Se um dia tiver um clássico, serei aquele dono que lhe dedica carinho, que sonha com ele a cada quilómetro – nem que seja só ao domingo – e que o leva a passear. Um carro fez-se para andar. Ou então para ser apreciado enquanto olhamos para ele ao sabor de um caloroso Callabriga em final de tarde. A pensar em tudo menos em leilões.

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Luís Pimenta acompanha o setor automóvel há mais de 25 anos. Editou e dirigiu vários órgãos de comunicação social especializados e generalistas e dedica-se hoje à consultoria e produção de conteúdos e de plataformas de comunicação online.