Ciclovias em tempos de pandemia

13/07/2020

Creio que já todos percebemos que é necessário retirar muitos automóveis do interior da cidade, dando-a mais às pessoas, incentivando a utilização de transportes públicos e de meios de mobilidade suave, como as bicicletas. Mas, será que a forma como a autarquia lisboeta o está a fazer é a mais adequada? Experimentem passar pela Avenida Almirante Reis ou pela Defensores de Chaves e terão a vossa resposta.

Nunca como hoje se procedeu a uma alteração tão grande nos padrões de mobilidade das pessoas dentro da cidade, deixando acreditar que o grande alerta de Carlos Tavares, Presidente do Grupo PSA, é real e está em vias de se concretizar: vão começar a existir restrições à liberdade de escolha na forma como a mobilidade é feita. A mais recente ordem de implementação de ciclovias na cidade, que está longe de estar terminada, de acordo com a própria autarquia, prevê medidas simples como a supressão de faixas de trânsito automóvel para a construção de ciclovias, bem como eliminação de espaço de estacionamento rodoviário para a criação de mais esplanadas.

A retórica de que a cidade está insustentável e de que é preciso impedir os automóveis de circular no seu âmago, muitas vezes como resultado de medidas prévias que já haviam prejudicado o normal fluxo de tráfego (usando um termo bem português, uma ‘pescadinha de rabo na boca’), é apontada como uma das razões para esta multiplicação de faixas cicláveis que, na grande parte do tempo, não cumprem o fim para o qual estão destinadas – a circulação de ciclistas. Aliás, há não muito tempo, parado de manhã no engarrafamento da Defensores de Chaves durante cerca de 20 minutos após criação de ciclovia, vislumbrei um único ciclista a utilizar a dita ciclovia. Idêntico exemplo na avenida entre Telheiras e Pontinha, onde a faixa dedicada aos ciclistas está quase sempre vazia. Ou a ser utilizada por pessoas a correr.

Mas, as ciclovias não são o problema. Longe disso. A problemática é a forma como são agressivamente plantadas na malha urbana. Tome-se como exemplo a obra na Avenida Almirante Reis, onde uma via de trânsito foi subtraída para se construir uma ciclovia no sentido ascendente – Martim Moniz-Areeiro. O engarrafamento que se gera e o tempo perdido são as maiores consequências daquela obra para os automobilistas, além de, pelos vídeos que já se publicaram pelas redes sociais, darem azo a momentos delicados como os da necessidade de passagem de ambulâncias ou carros de bombeiros quando a fila de carros está parada. A solução acaba por ser a passagem desses veículos de emergência pela ciclovia para fugir à cruel paragem. Haverá quem diga que a sua existência é ótima porque assim até conseguem passar mais depressa pelo trânsito parado – li num comentário do Facebook. Mas há sempre que rezar que nunca aconteça um acidente com um utente da ciclovia. E que esse utilizador não seja nosso conhecido, parente ou amigo.

Por aqui se vê a inteligência de quem projectou ISTO e sobretudo do que mandou projectar……o DOM MErDINA !!!!

Publicado por João Chaves em Quinta-feira, 25 de junho de 2020

Diria eu que bastava ter o espaço marcado no chão, mas que a via se mantivesse utilizável pelos automóveis para se dar alguma margem de coexistência. Em cidades como Barcelona ou Berlim, as ciclovias estão, muitas vezes, nos passeios. Aliás, por incúria minha, quase ia sendo atropelado em Barcelona por um ciclista ao não reparar que estava na sua faixa. Mas, assim, como está a ser feito em Lisboa, nem arte, nem habilidade. E, no entanto, volto a frisar que o problema nem são as ciclovias, longe disso. E é natural que as pessoas achem bem este movimento de afastamento de todos os carros da cidade, pelo menos, até ao dia em que esse mesmo movimento as afete, por exemplo, para ir a uma consulta de carro quando tiverem a sua mobilidade pessoal reduzida – pense-se num idoso ou numa qualquer deficiência física, mesmo que temporária. Perdendo tempo na fila e, depois, no estacionamento. Dirão agora: ‘seu tonto! E para é que servem os transportes públicos?!’…

Posto isto, vale a pena observar que todas estas obras estão a ser feitas num momento extremamente delicado devido à pandemia de Covid-19, um momento de temor e de dúvida por parte das pessoas, às quais, diga-se, há que dar o direito de não quererem usar os transportes públicos. Porque não querem correr riscos de saúde com a Covid-19 ou, porque, simplesmente, podem não ter o arcaboiço mental para fazê-lo – não nos esqueçamos das consequências mentais deste período de pandemia e de luta contra a mesma e do ensinamento principal que nos foi dado: “temos de desconfiar de todos” e isso nem é por maldade. É por necessidade de subsistência.

A redução das suas opções de mobilidade, ora obrigando-as a utilizar os transportes públicos, ora não lhes dando a hipótese de estacionar no fim de uma viagem pode ser aceitável e promissor noutra época. Não nesta e é sobretudo isso que me inquieta. Confesso que se puder evitar os transportes públicos fá-lo-ei. E adoro o metro, que é um belíssimo método de deslocação urbana. Mas não agora. Eu me confesso: sou dos que não conseguem. Lamento. Como eu haverá muitos outros. Podem garantir que é seguro, mas se é assim tão seguro, porque fazemos filas às portas dos supermercados para evitar ajuntamentos, sendo o espaço muito maior? Ou porque há lotação limitada numa sala de cinema? Ainda não estou convencido de que o malfadado vírus possa distinguir os trabalhadores honestos em autocarros dos consumistas dos supermercados, infetando uns e poupando outros.

Há ainda, noutra dimensão de observação, a questão dos comerciantes, a quem vai ser retirada uma importante fonte de rendimento com a redução de estacionamento automóvel. Imaginemos os restaurantes da Baixa de Lisboa, que tão bem conheço com as suas estratégias de angariação de clientes. Alguém acredita que uma família de quatro pessoas vai deixar o seu carro num parque a três ou quatro quilómetros para fazer o resto de transportes para ir jantar à Baixa? Admitamos que sim no verão. Agora, no inverno, a chover, alguém quererá sequer planear uma ida a um restaurante da Baixa vindo, imagine-se, de Sintra, Cascais ou Amadora sem poder, pelo menos, ter uma noção de que não terá de expor a sua família aos elementos?

Dirão os que agora já estão escandalizados com esta prosa que os cidadãos vão apreciar o espaço disponível e a segurança suplementar. Mas a questão é que os cidadãos foram sendo paulatinamente empurrados para fora do centro da cidade pela enorme pressão imobiliária. Muitos lisboetas foram deixando a cidade, multiplicando-se a criação de hotéis, que agora, em tempo de pandemia, devem estar a batalhar pela sua existência também devido à ausência de turistas. A verdade é que o centro da cidade tornou-se numa ‘passerelle‘ turística, na qual desfilam linguagens e nacionalidades diferentes, não havendo até aqui grande carinho pelo português visitante.

Pode ser que esta minha visão seja excessivamente comodista, mas aflige-me, sinceramente, que haja uma visão única. É óbvio que é importante reduzir o trânsito na cidade, mas criem-se primeiro as bases, a começar pelos transportes públicos decentes, seguros e fiáveis, mesmo que não sejam gratuitos. A qualidade deve ser paga.

Mas, primeiro, é preciso que exista qualidade e enquanto se andar a brincar às linhas circulares de metropolitano nunca se irão resolver os problemas estruturais de quem tem de usar o veículo particular para trabalhar, porque vem de longe ou porque a rede de transportes públicos não se ajusta ao seu modo de vida. Porque a esses a escolha é muito mais difícil à partida.