Como os SUV dominaram o mundo, ou isto assim perdeu a piada

16/03/2023

Desde que vendi o meu KZJ95, há quase dez anos, tive apenas esporádicos regressos ao todo-o-terreno mais sério. É lamentável, até porque o vício está bem e recomenda-se, nos exactos níveis do dia da venda, mas o preço do gasóleo e das portagens provocaram, na altura, um divórcio racional apesar de pouco ou nada desejado.

Para lá dessas incursões mais a sério por terrenos menos próprios e para ir matando o vício, fui levando o VW Tiguan 4×2 – que se seguiu ao Toyota KZJ95 – por alguns maus caminhos. Hoje trato do vício de pó, areia e lama em duas rodas, com uma bicicleta de montanha elétrica, mas isso fica para outra conversa.

A verdade é que, por muito que custe aos mais puristas, a grande maioria dos SUV atuais, mesmo nas versões 4×2, é capaz de chegar bem longe fora do asfalto. Aliás, já tinha comprovado isso quando, há uns largos anos dei de caras com uma velha 4L no meio do nada, numa duríssima pista entre Zagora e Ouarzazate, no sul de Marrocos. Eu no alto de um 4×4 meio preparado, convencido de que estava a viver uma pequena aventura, e lá mais abaixo um descontraído marroquino que, com a calma dos seus mais de 60 anos, acenava simpático de dentro de uma 4L meio destruída.

E serve toda esta conversa para falar de uma curta viagem até aos Pirinéus, para mais uma edição do Nissan Crossover Domination, um evento onde a marca japonesa tentou este ano provar que o Juke Hybrid, os Qashqai e X-Trail com a tecnologia e-power, e o mais recente e 100% elétrico Ariya estão à altura dos pergaminhos da Nissan nesta coisa de andar por qualquer caminho em quaisquer condições.

Entre Barcelona e Puigcerdà, a um passo de Andorra e junto à fronteira com França, fomos descendo na temperatura, subindo na altitude e navegando por estradas cada vez mais enroladas e geladas, sem que isso incomodasse qualquer dos modelos da caravana, todos equipados com pneus de inverno.

Algumas das estradas fizeram-me recuar até 1996 e aos quase dois meses passados numa Bósnia acabada de regressar à paz, pouco tempo depois de assinados os acordos de Dayton. Então, um Nissan Patrol GR longo, com o belíssimo seis cilindros em linha 2.8 turbodiesel, foi o fiel companheiro de incontáveis quilómetros e de uma longa lista de repórteres da TSF que passaram por Sarajevo, cobrindo a missão dos militares portugueses na IFOR – força de implementação da paz da NATO – e os primeiros passos da Bósnia e Herzegovina em paz desde a fragmentação da Jugoslávia, em 1992.

Mas, voltemos aos Pirinéus, para algo de completamente diferente. Os tempos são outros, a legislação europeia impõe, há muito, rígidos limites para emissões de gases com efeito de estufa e o resultado é o que tivemos em mãos durante aquelas 48 horas. SUV ou Crossovers electrificados ou elétricos, com uma pegada carbónica a anos-luz do tal Patrol GR 2.8 movido a gasóleo.

O Juke recorre a uma solução híbrida clássica. Motor 1.6 atmosférico a gasolina com 94cv conjugado com dois motores elétricos, um dedicado em exclusivo à propulsão, com 49cv e outro que serve de motor de arranque e gerador. Ao todo são 143cv, que garantem condução descontraída e até breves momentos em modo 100% elétrico, mas que também são capazes de garantir ritmos mais animados, por exemplo em estradas de montanha como as que percorremos nos Pirinéus. A Nissan garante que esta nova solução híbrida oferece mais potência (mais 25%), reduzindo os consumos em 21% e que, em ambiente urbano, o Juke passa mais de 80% do tempo em modo elétrico.

O Qashqai, que desde que iniciou uma nova tendência no marcado, em 2007, tem sido um autêntico ganha-pão para a Nissan e o X-Trail, um SUV maior e mais dado a maus caminhos, recorrem à nova tecnologia E-Power. No essencial, oferecem prestações e sensações de um elétrico, sem preocupações com autonomia, já que recorrem a um 1.5 a gasolina como gerador.

A Nissan defende que os 190cv no caso do Qashqai e os 213cv no X-Trail, conjugados com aquela boa sensação de ter todo o binário do motor ou motores elétricos disponível desde bem cedo, e os consumos relativamente comedidos do motor/gerador, justificam a opção por esta tecnologia. Na prática, os consumos são apenas marginalmente mais baixos do que num híbrido clássico com prestações equivalentes e, mais grave, como a bateria é pouco mais do que simbólica, com 2,1 kWh, o gerador está quase sempre a trabalhar e as emissões ressentem-se: 120 gr/km no Qashqai e 144 gr/km no caso do X-Trail.

Por último e para completar o leque de opções neste Crossover Domination, surge o novo SUV 100% elétrico da Nissan, o Ariya. Recorrendo à plataforma CMF-EV, desenvolvida especificamente para veículos elétricos da Aliança Renault-Nissan, o Ariya oferece muito espaço e conforto no interior – com exceção do espaço para bagagens, que está abaixo da concorrência. Disponível, por enquanto, apenas na versão 4×2 e com grandes limitações na produção face a uma procura que acabou por surpreender a marca japonesa, o Ariya terá uma gama composta por três versões distintas – bateria 63 kWh, 218cv e 403 km de autonomia; 87 kWh, 242cv e 533 km, e por último a versão e-4ORCE, com tração integral, com a mesma bateria de 87 kWh, mas dois motores a debitar 306cv e uma autonomia de 500 km.

O Ariya surpreende pelo design exterior, com linhas depuradas e uma presença distintiva no meio do trânsito, mas sobretudo por um interior muito elegante, minimalista e funcional, com materiais e montagem que oferecem uma percepção de qualidade verdadeiramente premium.

Feitas as apresentações, fica claro porque não há construtor que tenha escapado a entrar nestes segmentos e porque dominam uma boa fatia do mercado.

Agora, sobra o momento mais aguardado desta edição do Nissan Crossover Domination, um breve percurso fora de estrada num trilho em linha, quase sempre coberto de neve e gelo. Ao volante do X-Trail e-power e na versão de tração integral e-4ORCE, o percurso foi cumprido sem sobressaltos, sempre com bons níveis de aderência, quer a subir uma encosta em que o piso estava sobretudo coberto de gelo, quer na descida, num trilho coberto com neve mais suave.

Uma enorme tranquilidade num piso nada fácil, que pode ser atribuída à eletrónica. O sistema e-4ORCE recorre a dois motores elétricos, um para cada eixo, e faz a gestão de binário e travagem roda a roda, com cálculos que procuram a melhor solução a um ritmo de 10.000 por segundo, garantindo uma adaptação quase perfeita às condições do terreno. Do lado do condutor, basta haver o bom senso de não pedir ao X-Trail coisas que ele – ou qualquer outro SUV semelhante – jamais poderá fazer, e escolher o modo adequado no selector do sistema e-4ORCE, neste caso foi só rodar o comando para a posição de neve e gelo quando saímos do asfalto, e deixar a eletrónica tomar conta do assunto.

Parte da minha memória ainda vai tentando convencer-me de que isto de rodar comandos com símbolos iluminados não tem propriamente o mesmo “sabor” do que puxar uma alavanca da posição H para a L, e ouvir as engrenagens a engatar, e que nada chega a um diferencial com bloqueio mecânico, mas devem ser só sintomas de saudade.

Paulo Tavares