Do “La Jamais Contente” às corridas de robôs

05/03/2017

La Jamais Contente foi o primeiro carro a alcançar os 100 km/h de velocidade máxima. Parecia um torpedo, tinha motor elétrico e era pilotado por um “Diabo Vermelho”. O Robocar também é elétrico, mas não precisa de piloto.

No dia 8 de dezembro de 1913, o “Diabo Vermelho” cumpria a sua velha profecia — morrer num Mercedes. A profecia concretizou-se na fatídica manhã em Habay La Neufe, nas Ardenas belgas, mas não exatamente como havia antecipado.

Naquela manhã, um grupo de amigos organizara uma caçada. O “Diabo Vermelho”, mestre em pequenas partidas, decidiu esconder-se atrás de uns arbustos e emitir uns guturais ruídos, imitando um javali. A sua performance foi tão convincente que Alfred Madoux, diretor do jornal “L’Etoile Belge” se escusou de cumprir o elementar preceito jornalístico de confirmar a veracidade das fontes e antes de perguntar, disparou, atingindo o infeliz imitador que acabou por morrer a caminho do hospital, a bordo do tal Mercedes da profecia.

Morria assim aos 45 anos o homem que na Bélgica era conhecido por “Diabo Vermelho” por causa das suas flamejantes barbas ruivas e por ter sido também o primeiro a ultrapassar os 100 km/h de velocidade terrestre ao volante de um original e revolucionário automóvel — o “La Jamais Contente”.

Chamava-se Camile Jenatzy, era filho de um poderoso industrial belga e notabilizou-se por ser um dos grandes pilotos do seu tempo e também um original e inovador engenheiro, fascinado pelo fenómeno que no final do séc. XIX atraía a curiosidade pública e entusiastas na América e na Europa — o automóvel.

Camile Jenatzy foi um pioneiro e um visionário daquela que viria a ser uma das mais importantes indústrias do século seguinte. Era uma espécie de Elon Musk (o patrão da Tesla) dos oitocentos. Começou por construir fiacres e camionetas com motores elétricos para a Companhia Internacional de Transportes de Paris, desenvolvendo ele próprio as tecnologias e os protótipos e travando uma guerra sem quartel com a empresa rival — o carroçador Jeantaud.

Os recordes de velocidade eram naquele tempo um poderoso instrumento de propaganda comercial e Camile Jenatzy bateu-se em sucessivos duelos com o gentleman driver que a Jeantaud contratou para essa proezas — o aristocrata francês Gaston de Chasseloup-Laubat. O primeiro recorde reconhecido de velocidade em terra de um automóvel foi alcançado por Gaston ao volante de um Jeantaud elétrico numa competição organizada pela revista “La France Automobile” no dia 18 de dezembro de 1898 em Achères.

O voador Gaston cumpriu um quilómetro em 57 segundo à média de 63 km/h. Camile Jenatzy não esperou muito para dar a resposta e um mês depois, ao volante de um CGA Dogcart, fixou o recorde em 66 km/h de média. Para desespero de Jenatzy, no mesmo dia, Gaston de Chasseloup-Laubat batia de novo o recorde. E a disputa continuou ao rubro nos meses seguintes, com cada um dos rivais a suplantar a marca estabelecida anteriormente pelo outro.

Foi então que Jenatzy construiu a verdadeira bomba atómica — ou seja, um carro especialmente desenhado para bater um recorde de velocidade em terra. Tinha a forma de um torpedo, uma carroçaria feita numa liga de alumínio, pneus especiais concebidos pela Michelin e um motor elétrico da marca Postel-Vinal, alimentado por baterias de acumuladores Fulment que pesavam mais de 700 quilogramas, quase metade do peso do “projétil” sobre rodas que oferecia a Jenatzy a potência de 50 kw ou 68 Cv.

O nome que ficaria para a história como o primeiro carro a ultrapassar os 100 km/h de velocidade foi o “La Jamais Contente”, um símbolo do inconformismo do génio de Jenatzy.

Naquele dia 29 de abril de 1899, a poucos meses do começo do “século do automóvel” Jenatzy e o seu “La Jamais Contente” fixaram o novo recorde de velocidade em terra nuns fantásticos 105.88 km/h de velocidade média, cumpridos como de costume no quilómetro de Achères.

Elétrico e autónomo – Robocar, a competição do futuro

O feito de Jenatzy e do “La Jamais Contente” inspirou 120 anos depois a Venturi Automobiles, empresa monegasca especializada em veículos elétricos a batizar de “Jamais Contente” um veículo desenvolvido pela Universidade do Ohio que estabeleceu em 2010 um novo recorde de velocidade de ponta para um veículo elétrico, atingindo o 515 km/h na pista de sal de Bonneventuri_eletric_record_2010-4ville nos EUA.

A Venturi é uma das equipas que participa na Fórmula E, competição de ponta destinada a monolugares com motores elétricos e que é considerada a Fórmula 1 do futuro, por muito que isso custe aos adeptos do som dos F1 com motores de combustão.

O ator Leonardo Di Caprio, proprietário de um Toyota Prius, defensor de causas de sustentabilidade ecológica e fervoroso adepto da mobilidade elétrica é um dos sócios da Venturi, equipa que participou na mais recente prova da Fórmula E, em Buenos Aires, na Argentina. Prova que deverá entrar para a história, da mesma forma que Camile Jenatzy entrou com o “La Jamais Contente”.

Daqui a muitos anos, o futuro editor do Motor 24, escreverá, num exercício memorialista como este, a seguinte notícia:

“No dia 20 de fevereiro de 2107, no Circuito citadino de Buenos Aires, disputou-se a primeira corrida de automóveis-robôs. Pintados nas cores dos clubes de futebol mais populares da cidade — River Plate e Boca Juniors — Devbot 1 e Devbot 2, desenvolvidos pela Roborace, disputaram um animado duelo na pista que terminou com um acidente de um dos robôs, que ao  calcular mal uma trajetória, embateu numa das barreira de proteção. O outro Devbot terminou o desafio, alcançando a velocidade máxima de 186 km/h. Ambos os carros eram pilotados por inteligência artificial, dispensavam controlo humano e podiam comunicar entre si. Foram os protótipos que lançaram as bases daquela que é hoje, em 2040, a mais popular competição automóvel do planeta, a Roborace, cujos primeiros modelos foram desenvolvidos pelo visionário designer, Daniel Simon, anteriormente conhecido pelo seu trabalho futurista no cinema — em filmes como Tron Legacy e Oblivition, ou em marcas, entretanto desaparecidas como a Bugatti.

Robocar of Roborace

Foi Simon que criou o primeiro carro de competição pilotado por inteligência artificial, o Robocar, que tinha um motor elétrico, tecnologia que foi entretanto preterida em favor dos motores a hidrogénio ou a energia solar, desenvolvidos por corporações sino-americanas, como a Dongfeng-Tesla ou a Geely-Apple&Faraday Motors.”

Esta notícia de 2040 será escrita por um robô, por isso não são só Lewis Hamilton e Fernando Alonso a ter de procurar outro emprego. Eu também.

POR DENTRO DA ROBORACE – SEIS EPISÓDIOS