O Velho Comendador, que não era um homem fácil de levar, de acordo com os seus colaboradores mais próximos, tinha os seus motores no centro do universo, colocando-os acima de tudo o resto num carro – da beleza, do estilo e da funcionalidade. Até da família, que colocou muitas vezes em segundo plano, e das férias que, admitiu, nunca teve na sua vida. Na sua opinião, nunca precisou de outras férias que não daquelas passadas na oficina em conjunção com os seus ‘filhos’ de chapa, passeando-se no meio do embriagante aroma da gasolina. Conhecida foi também a sua insistência de que um carro bonito era um carro que ganhava corridas. Só isso lhe valia o atributo da beleza.
Ainda assim, mesmo esse caso não impedia que no final de cada ano de competição, o carro não fosse desmantelado para que se reaproveitassem peças para outras unidades. Isso fez com que modelos icónicos como o 156 F1, também conhecido por ‘Sharknose’, de 1961, desaparecessem da face da Terra. O que há hoje são réplicas fidedignas, mas que não correram na sua época.
Nem sempre acertadas, mas apenas arduamente convencido do contrário, as opiniões de Ferrari acabaram por forjar aquela que é a marca mais mítica do universo automóvel, mantendo ainda hoje a ideia de que é importante produzir sempre menos um carro do que a procura exige. Assim se mantém o interesse, o apelo e o sonho bem vivos. Em 2017, a marca de Maranello comemora mais um aniversário, o 70º da história de uma companhia que nasceu até da simbiose com um outro gigante da indústria italiana, a Alfa Romeo.
Foi com esta que Enzo Ferrari montou a sua equipa, tratando de fazer com que os carros da Alfa competissem na mítica época entre as duas Grandes Guerras com o seu escudo inculcado na carroçaria vermelha. A cor da Itália. Em contraponto com o cinzento dos flechas de prata alemães e do verde dos britânicos (que viriam mais tarde). Uma parte do misticismo da Ferrari advém também da sua ligação umbilical à história e às raízes italianas. Se os outros largaram essas suas nuances, a Ferrari não abdicou do seu vermelho, ora com tonalidade mais escura, ora mais clara, esta última resultado do aumento da cooperação com a companhia tabaqueira que ditou uma era na Fórmula 1.
Depois de montar a equipa a partir da colaboração com a Alfa numa parceria que durou toda a década de 1930, Enzo quis a ‘liberdade’ e, uma vez finda a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), durante a qual produziu peças para o esforço de guerra italiano, regressou ao seu caminho – produzir carros de competição. Mas foi também um período de emoção, a maior das quais quase na abertura do Mundial de Fórmula 1 como o conhecemos hoje: depois de bater a Alfa no GP da Gra-Bretanha de 1951 (no primeiro triunfo na Fórmula 1 por intermédio de José Froilan González), Enzo chorou por esse mesmo feito, chegando a dizer que havia morto ‘morto a sua mãe’. A simbologia, mais do que tudo, é forte, num traço usual dos latinos, a emotividade. Mas é tão forte como o legado da companhia na competição, sobretudo na Fórmula 1.Foi por causa dessa mesma competição que o homem-forte da companhia se dedicou a fazer carros para estrada, apenas porque havia que financiar o seu departamento conhecido como Scuderia Ferrari. E foi também por causa da competição, ou melhor, da redução do investimento que a Ford se preparava para fazer nesse campo, que se rompeu o negócio com a marca americana na década de 1960. Sem recursos para se manter financeiramente saudável na primeira fase da globalização automóvel, apareceu a Fiat como salvadora, ficando tudo em Itália. A partir desse momento, o símbolo Fiat passou a adornar também os monolugares de F1 e a estabelecer uma ligação mais acessível entre os carros de F1 e os que andavam na estrada.
“Os clientes nem sempre têm razão”
Mais uma frase de Enzo. Da sua teimosia nasceram muitos triunfos e lendas da competição, mas também conflitos e inimizades, algumas até com interesse histórico para a própria indústria automóvel, como aquele que o opôs a Ferruccio Lamborghini e que levou este último a criar a sua própria marca de desportivos depois de ver os seus conselhos rechaçados por Enzo sobre como deveria atuar para melhorar os produtos de Maranello. A sua importância – indireta – para a indústria viu-se também com o facto de ter levado a Ford – irritada pelo rompimento do negócio para comprar a Ferrari – a produzir um desportivo com o único objetivo de vencer a equipa italiana em Le Mans.
Só mesmo quando demonstrado sobre as vantagens de uma opinião contrária, o Comendador cedia. Foi assim com os motores V6, que nasceram por ação do seu malogrado filho, Alfredino (Dino, para abreviar), que morreria ainda jovem vítima de distrofia muscular. Deixou como legado esses motores de arquitetura V6 e foi homenageado, depois, por um modelo que se tornou icónico na Ferrari, mesmo sem o escudo da marca na carroçaria (o Dino 246 GT).
“Se o consegues sonhar, podes fazê-lo”
A frase é de Enzo e é quase uma redundância, mas é um facto. Todos os grandes empreendimentos nascem de sonhos. Foi assim com Enzo Ferrari, mas o mesmo foi válido também para Kiichiro Toyoda, que fundou a Toyota em 1937, para Soichiro Honda, que fundou a Honda em 1946 (curiosamente, depois de a sua primeira empresa ter fornecido peças para a Toyota), para Henry Ford, fundador da Ford em 1903, ou até para Elon Musk, que criou a vanguardista Tesla há cerca de uma década.
Ferrari, Toyoda ou Ford, apenas para mencionar estes, têm no entanto um mérito imenso na forma como conseguiram fazer crescer as suas marcas: fizeram-no em períodos de tremenda crispação política e social – Itália, Japão e Estados Unidos tiveram fases muito negras na primeira metade do Século XX e o acesso a fontes de informação era diminuto e estava bem longe de ser imediato. Hoje, qualquer informação está ao alcance de um clique. Quer esteja em casa, quer esteja na praia. Essa foi a essência dos sonhos que nasceram a pulso.
E foi com a ideia de sonhos contagiosos que o Comendador fez nascer a sua marca em Modena, ‘infetando’ mais uns quantos pela sua convivência – engenheiros como Vittorio Jano ou Gioacchino Colombo, diretores de equipa como Luca di Montezemolo, ou pilotos como Tazio Nuvolari (para muitos, o melhor piloto de sempre), Niki Lauda ou Alberto Ascari.
Mas, qualquer um que já tenha ouvido um dos motores transalpinos V12 a ecoar, entrando de forma agressiva pelo ouvido até mexer com o condão dos sonhos, saberá que há ali qualquer coisa de especial. Um imaginário irrepetível e do qual Enzo estava bem ciente: “A morte vai destruir o meu corpo, mas as minhas criaturas vão continuar a viver muito depois disso”. É este o seu legado. E o dos ouros criadores.
É por causa destes sonhadores e da sua persistência desmedida que os automóveis ganharam um estatuto para lá de mero meio de transporte. Sejam eles da marca Ferrari, Ford, Toyota, Fiat, Mercedes-Benz, Honda ou Hyundai.
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