A mulher que brinca com facas no meio do trânsito

10/08/2018

Conduzir pela cidade de Lisboa é tudo menos fácil na grande maioria dos dias: o trânsito caótico leva-nos a soprar fundo vezes sem conta, com mãos rodopiantes pelo volante e ‘vizinhos’ casuais nas vias do lado com quem não há vontade de entabular qualquer conversa. Pior ainda quando o calor aperta.

No entanto, em agosto, abrem-se ‘clareiras’ (exceto na Segunda Circular, fuja da Segunda Circular no sentido Campo Grande-Benfica) e o trânsito flui de forma mais ‘simpática’. Fosse sempre assim e Lisboa seria um paraíso. Sabemos, porém, que isso só se deve ao facto de uma grande parte dos lisboetas (nativos ou conquistados) se moverem, de armas e bagagens, para outras paragens – Norte, Sul… não interessa. Simplesmente, não estão em Lisboa.

Mas, se a capital parece mais deserta (já diziam os Ornatos…), as viagens têm sempre muito de imprevisível. Por exemplo, uma malabarista arrojada em pleno cruzamento. Não um qualquer, mas um dos mais movimentados de Lisboa.

De sorriso fácil, múltiplas facas nas mãos e uma escada, a malabarista – baloiçando entre os 20 e os 30 anos – está à espera do semáforo vermelho, o encarnado que trava as vontades dos automobilistas de seguirem por ali fora rumo ao destino. O traje tem inspiração circense e a escada está encostada ao poste do ‘luzinhas’ até ao momento em que todos os carros param, ordeiros, com condutores uma vez mais bufando de impaciência. E, de súbito, é impossível continuar de mal com a vida.

A escada planta-se no meio da estrada e a jovem sobe alguns ‘degraus’. Facas ao alto e… Lá vão lâminas pelo ar enquanto se equilibra nas duas ‘patinhas’ de uma escada à qual eu tremo só de subir 30 cm lá em casa. Mesmo encostada à parede…

Mas, se aquilo poderia parecer fácil para alguns, a rapariga move a escada com as pernas – sem sair lá do alto – e coloca-se de perfil. Mais uns quantos lançamentos de lâminas ao ar e o ‘espetáculo’ está terminado. A moça pede aplausos e, de facto, num ato instintivo, dou uns toques no volante como que sentado numa qualquer plateia, aplaudindo os atores de uma peça. Depois, claro, obviamente o espetáculo não é de graça.

Sorrindo, sempre sorrindo, vai saltitando as vias de trânsito recolhendo um ou outro donativo que os condutores – certamente tão extasiados quanto eu – estendem pela janela aberta. Ato rápido e contínuo, porque o verde está para ‘abrir’. A artista, que o é, acreditem, passa pelo meu carro e, num momento de lástima, sabendo que não tenho trocos – o parquímetro anti-herói levou-me as últimas moedinhas -, levanto as mãos encolhendo os ombros numa expressão que lhe disse praticamente tudo. Espero. Adorei, mas não estava preparado para uma sessão artística em plena cidade de Lisboa numa manhã de calor.

Estendeu o polegar e sorriu. Pareceu-me ler um ‘não faz mal’ no rosto dela. Posso ter ‘lido’ mal. Quiçá tenha optado pelo termo ‘sovina’… Mas, acima de tudo, parecia haver ali felicidade genuína. Aquela manifestação artística deixou-me, como diriam os amigos brasileiros, ‘de bem com a vida’, vendo aquela alegria alheia.

A viagem tinha de continuar, como sempre. Deixei a rapariga cada vez mais distante no espelho retrovisor com o desejo sincero de que os outros condutores fossem mais generosos (precavidos, diria melhor…) do que eu. E assim se faz mais uma viagem em Lisboa, ora suspirando pelos atrasos, ora sorrindo porque o inesperado acontece.

PS: Imagens da proeza é que não há… Pegar no telemóvel, mesmo parado num semáforo, é um ‘não-não’ e, em boa verdade, você também não o devia fazer ao volante.