O dia em que atirei um Leon Cupra para a valeta na ‘casa’ da SEAT

10/11/2020

Há quem diga que a vida de jornalista automóvel é repleta de mordomias e benesses, numa espécie de inveja encapotada, mas bem-disposta, enquanto outros há que não fogem muito da ideia de que falar de carros e andar com eles é uma espécie de ‘segunda divisão’ do jornalismo, longe da importância de ‘salvar’ o mundo ao revelar as malfeitorias de Governos e organizações maléficas que pululam por aí.

Mas, é uma indústria de milhões. Quer de euros, quer de pessoas, aquelas que lá trabalham nas mais diversas áreas. Por isso, por vezes, quando algo corre mal, percebemos que acabámos de cair nas más graças de alguém – nem que seja na nossa própria consideração.

Voltemos a 2016: a SEAT preparava o lançamento do seu atualizado Leon Cupra, então ainda integrado na marca com a letra ‘S’ e não na sua ‘spin-off’ CUPRA. O local da apresentação internacional era, como não poderia deixar de ser, Barcelona, metrópole moderna onde o trânsito é pouco clemente, mas cujas redondezas ‘acenam’ com inúmeras estradas interessantes, as quais permitem ter uma sensação mais fidedigna do automóvel em percursos sinuosos, longas retas e pisos variados.

O dia começou com uma conversa informal com um conhecido piloto espanhol – uma ‘piéce de resistance’ ainda mais significativa como verão mais adiante –, de nome Jordi Gené, irmão do ex-piloto de Fórmula 1, Marc Gené. Conversa para aqui, conversa para acolá, eu tinha estado pouco tempo antes na apresentação do Honda Civic Type R, que era (e é) um concorrente direto do modelo catalão, pelo que Gené lançou o gancho: “depois, diz-me o que achaste do Leon”. Oh, claro que sim, pensei eu!

Há ainda que referir a introdução de uma variante ao modelo normal de apresentações (um bem-haja)! A marca fechou um troço de estrada usualmente usado no Rali da Catalunha para que os jornalistas pudessem sentir as emoções do Leon Cupra sem preocupações de velocidade ou trânsito contrário. Uma delícia. Só que no meio da delícia estava uma malagueta.

O plano era simples. Cumprir um troço – no qual nunca tinha passado – de seis ou sete quilómetros e chegar ao final com o carro inteiro. Antes do arranque simbólico para a estrada, um dos representantes da marca abeirou-se de mim, já sentado no lugar do condutor e mostrou um mapa plastificado com o troço e a mostrar como é que era. Escusado será dizer que a atenção prestada foi a mesma de uma preguiça presa a uma liana. Seja como for, na minha mente ficou uma frase – “nas curvas mais complicadas, vai estar um comissário com uma bandeira amarela a sinalizar”.

Assim foi, arranque fogoso (pelo menos, gosto de pensar que sim) e vamos a isso. A certa altura, olhei para o velocímetro e dei conta de uns 180 km/h ou coisa que o valha. Tudo tranquilo, um comportamento exemplar do Leon, o qual parecia que nem sequer estava perto do seu limite, uma mirada ocasional ao sistema de GPS para ver o rumo da estrada – uma reminiscência dos muitos anos a jogar Playstation com o mapa no canto do ecrã – e as tais bandeirinhas amarelas nas curvas manhosas. Tudo parecia correr de feição até que na antepenúltima curva, uma esquerda a subir, achei que se podia ir, não a fundo, mas pelo menos sem travar muito. Até porque não havia bandeirinha amarela. O que é que poderia correr mal? Naturalmente, foi uma má decisão.

Numa conjunção de fatores, o alcatrão branco polido, alguns vestígios de terra que estavam na estrada, a ausência de bandeira amarela e, sobretudo, o idiota atrás do volante aliaram-se e, de súbito, a constatação de que aquela esquerda que parecia tão desafiante sem travar afinal fechava (tornava-se mais apertada a meio). Em meio segundo, a mente rapidamente percebeu que o mal estava feito e que não havia muito a fazer. Mesmo com os travões pressionados e a direção virada, o Leon Cupra seguiu em frente, rumo a uma valeta de betão em ‘v’, o que até poderia não ser mau de todo, não fosse o lado externo da valeta ter um morro de terra. O SEAT galgou ligeiramente o morro a três quartos e, ao regressar ao chão, acertou com a proteção do cárter do motor na junção da valeta com o asfalto. O impacto foi pouco simpático e o Cupra deixou o seu ‘sangue’ derramar pela estrada, enquanto o painel de instrumentos apontava logo para um grande problema.

Com o seu corpo ferido, arrastei o companheiro Leon para aquilo que julgava ser um ‘porto seguro’ na estrada, esperando pela equipa de ‘socorro’. Percebi pouco depois que foi mais um erro, porque a estrada era desnivelada e o óleo do motor começou a cruzá-la rumo à valeta do lado contrário, o que quer dizer que os outros jornalistas que ainda esperavam para fazer aquele troço ficaram ‘parados’ enquanto se a) removia o Cupra e b) limpava o asfalto com pó branco absorvente.

Claro que, face à dinâmica do acidente não houve ferimentos a lamentar – a não ser no pobre carro. Coisas que acontecem, mas que o excesso de otimismo por vezes exacerba. Ou antes, houve um ferimento, mas apenas no ego do condutor. Fiquei a sentir-me pessimamente ao longo do resto do evento e, mesmo que não o fizessem, passei a sentir o olhar recriminatório dos catalães – “foi aquele ali”, imaginava eu que lhes passava pela mente de cada vez que alguém do staff se cruzava comigo. Mesmo que fosse do catering…

Mais tarde, já no velho circuito de Terramar, onde teve lugar a conferência de imprensa, chega Gené, interessado em saber a opinião da condução do Leon. Valendo-me do meu castelhano meio macarrónico lá respondi. “Bem, o carro pareceu-me ótimo, mas não correu lá muito bem”, comecei eu, explicando o que tinha sucedido. O espanhol sorriu e acalmou-me. “!Chico, no pasa nada!”. Disse-me depois que nos testes também tinha dado um toque com o carro e que isso era normal – “faz parte“, reforçou durante uma volta à oval de Terramar, em Sitges. Mais tarde, o regresso à normalidade. “Diz que carro é que queres levar agora para irmos buscá-lo”, lançou outro responsável da marca antes de almoço, referindo-se às diferentes carroçarias disponíveis.

Se a confiança fica despedaçada após uma situação destas num evento internacional, em frente ao pessoal da marca, também há pequenos detalhes que servem como pensos rápidos. Após o almoço, o meu parceiro de apresentação disse-me para ser eu a levar o carro até ao hotel, num sinal de confiança restaurada. Pelo caminho viria a adormecer. Há lá melhor voto de tranquilidade!

Ao longo dos muitos anos cá e lá, à roda dos automóveis, acabou por ser a única situação do género e a única mazela séria que causei a um dos carros de parque de imprensa. Mas, também devemos aprender com os erros e saber rir dos mesmos… Mesmo que, no momento, um buraco para me esconder tivesse sido ótimo.