O futuro do automóvel? “Follow the Money!”

26/03/2017

O dinheiro é como o algodão. Nunca engana. Quer dizer, quase nunca. Há quem o tape, quem o disfarce ou quem o lave, mas aqui estamos a falar de outros asseios. O tema agora são os investimentos: o seu trilho é a marca mais segura quando queremos olhar para o futuro de um determinado sector. E no caso da indústria automóvel chega a ser impressionante a forma como as apostas mais chorudas estão a fazer história mesmo antes de ela acontecer. Coloquemos de parte os motores, a aerodinâmica e outras coisas boas dos carros, porque aquilo que está a mexer neste mundo são mesmo os processadores, os sensores e, pasme-se, os data centers. Dúvidas? É fazer as contas…

Um dos exemplos mais evidentes é a compra da Mobileye pela Intel, a mais recente operação de M&A anunciada ao mundo. A Intel pagou nada menos do que cerca de 15 mil milhões de dólares pela empresa israelita, numa operação que fica bem colocada em perspectiva quando a comparamos com o valor que o grupo PSA ofereceu pela Opel e que se ficou, como é sabido, por uns meros 1,9 mil milhões. É certo que a GM pagou para sair da Europa e dos problemas, sendo um caso muito especial, mas não deixa de ser um confronto desconcertante quando percebemos que uma empresa especializada em sensores para assistência à condução é transacionada por um montante de mercado 8 vezes maior que uma marca europeia de grande volume.

Esta aquisição tenta resolver um problema da Intel. A mítica fabricante de processadores já perdeu vários comboios nos últimos anos, com algumas aquisições que se vieram a revelar tiros de pólvora seca (lembro-me, assim de repente, da McAfee). Demasiado centrada nos “chips” para PC, a gigante norte-americana é uma ilustre ausente, por exemplo, no sector dos smartphones, dominados pela arquitetura de processadores ARM. E tão pouco valerá a pena correr atrás do prejuízo – deste, pelo menos: segundo o instituto Gartner, a indústria de semicondutores está a enfrentar uma estagnação das áreas de negócio tradicionais, com a inevitável redução da curva de crescimento dos smartphones e, claro, a contínua quebra de vendas dos PC clássicos.

Na explicação do negócio com a Mobileye, o CEO da Intel, Brian Krzanich deu todas as pistas para quem ainda não percebeu o que está a acontecer: “Os carros autónomos serão uma realidade em 2023 ou 2014 e a Intel quer ser a primeira a influenciar essa tendência”. Numa carta dirigida aos funcionários da companhia, Krzanich é ainda mais claro: “Muitos de vós perguntam porque razão pensamos que os carros autónomos serão tão importantes para o futuro da Intel. A resposta é: dados (…) Os automóveis e a indústria automóvel são cada vez mais movidos pelos dados e pela computação. A expressão ‘sob o capot’ terá cada vez mais a ver com computação e não cavalos de potência”.

Nem mais. Os carros são o novo Eldorado da indústria dos semicondutores.

A visão que está subjacente a este negócio é a de um universo de veículos conectados, comunicando entre si num espaço de condução autónoma e de mobilidade partilhada. Não é, por isso, de estranhar que o Gartner considere que a indústria de semicondutores aplicada ao automóvel cresça 7% ao ano até 2020, atingindo um volume superior a 42 mil milhões de dólares. O Goldman Sachs, que tem dedicado uma atenção muito grandeàs mudanças sem precedentes na mobilidade,vai mais longe, estimando que a indústria de veículos autónomos e de sistemas ADAS (advanced driver assistance systems – ou seja, sistemas semi-autónomos, tais como os conhecidos cruise control activos) registem crescimentos exponenciais. O banco de investimento norte-americano prevê uma progressão dos 3 mil milhões de dólares registados em 2015 para 96 mil milhões em 2025 e uns estratosféricos 290 mil milhões em 2035.

As previsões da própria Intel, são sintomáticas. Basta consultá-las na sua web: os seus responsáveis esperam que os carros autónomos gerem para a empresa um volume de negócios de 100 mil milhões de dólares em 2030, dos quais 70 mil milhões em sistemas de bordo e os restantes 30 mil milhões em data centers.

Talvez por isso a Intel tenha pago tanto pela Mobileye. Na verdade, os 15 mil milhões correspondem a um valor 34% superior ao preço das acções da companhia israelita no dia anterior ao anúncio da operação. Mesmo assim, a “estravagância” de Brian Krzanich fica reduzida a uma pálida expressão se a comparamos com a maior operação de todos os tempos na indústria dos semicondutores, quando a Qualcomm e a NXP protagonizaram uma fusão no valor de 47 mil milhões, destinada a aumentar a exposição à indústria automóvel. E já agora, para quem não sabe: a Qualcomm é a autora dos processadores Snapdragon, praticamente o padrão nos smartphones e que lhe rende um negócio sem paralelo em patentes. A união com a NXP destina-se precisamente a transferir este modelo de desenvolvimento para os “chips” de carros autónomos.

Mais exemplos? É o que não falta: o SoftBank pagou 32 mil milhões pela ARM, enquanto a Samsung, na sua ronda de compras, deitou a mão à Harman Kardon por 8 mil milhões. Em ambos os casos foi publicamente assumida a estratégia de fortalecimento das competências perante as oportunidades no sector automóvel.

Fica cada vez mais claro que a guerra de mercado dos próximos tempos vai evoluir entre players totalmente novos: a Intel-Mobileye, a Qualcomm-NXP e, claro, a líder actual, a Nvidia, que trabalha diretamente com mais de 80 fabricantes, entre marcas e fornecedores de primeira linha.

No meio disto tudo, onde ficam os construtores de automóveis?

O Grupo Volkswagentem estado especialmente activo – a parceria com a Nvidia é das mais produtivas em condução autónoma –tal como a Nissan. E até a General Motors parece igualmente querer ganhar velocidade, somando mais de 15 aquisições de empresas tecnológicas desde 2011. Sem excepção, todos os grupos mundiais estão atentos ao negócio e alocam cada vez mais investimento em R&D para os sistemas de condução autónoma ou semi-autónoma.

Mas aquilo que parece cada vez mais claro é que o protagonismo do desenvolvimento deixou de ser um exclusivo da indústria tal como a conhecemos. A produção de um carro autónomo ou apenas com sistemas ADAS implica um esforço colaborativo, uma vez que envolve componentes como algoritmos, mapas digitais e sensores de extraordinária exigência do ponto de vista da electrónica.

Tal como diz Brian Krzanich, vamos começar a falar mais em potência de computação do que potência de motores, num mundo automóvel em que o Silicon Valley será uma referência mais forte do que o Nordschleife do Nürburgring. O que nem nos devia surpreender: afinal, a Apple e a Google começaram em garagens onde não havia espaço para carros.

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Luís Pimenta acompanha o setor automóvel há mais de 25 anos. Editou e dirigiu vários órgãos de comunicação social especializados e generalistas e dedica-se hoje à consultoria e produção de conteúdos e de plataformas de comunicação online.