Ponto de fuga

16/02/2017

Nos anos 80 tudo o que o jovem Eric Bana queria era ser mecânico. Com apenas 15 anos comprou um Ford XB Falcon Coupe de 1973 a um velho alcoólico. O homem foi mostrar a máquina a um café da terra, mas estava tão bêbado que o ainda adolescente Bana acabou a conduzi-lo até casa. Dias depois fecharam negócio. Em 1996, juntou um grupo de amigos e fizeram o Targa Rally Tâsmania, uma prova de endurece com mais de dois mil quilómetros. Foi o próprio quem preparou o carro. Acabaram em terceiro, entre os amadores. 

Nos anos seguintes Bana transformar-se-ia numa estrela, primeiro na Austrália, depois a nível planetário, e o carro ficou esquecido na garagem. Aproveitou a exposição e os dólares para competir em pistas um pouco por todo o mundo, mas decidiu regressar em 2007, à mesma prova, com o mesmo grupo de amigos e o mesmo carro. A única diferença é que agora a preparação ficou a cargo de um mecânico profissional. E levava uma equipa de filmagem atrás.

Tropeço no documentário (Love The Beast) na ABOLA TV – sim ABOLA TV passa documentários – e vou-me deixando ficar, apesar de não gostar particularmente dos seus papéis. Tenho especial empatia e respeito por canastrões – um canastrão é uma personagem de culto em potência – se bem que o meu tipo seja mais do género Kurt Russel. É vê-lo em Death Proof, de Tarantino, a atropelar mulheres num carro à prova de morte. Todos os carros deveriam ser à prova de morte. 

Nunca me passou pela cabeça ter um Ford XB Falcon Coupe, um Mustang ou atropelar mulheres, quando muito sonhava dar-lhes boleia, mas tinha um pé pesado, como quase todos os miúdos provincianos, aqui como na Austrália. E, tal como muitos jovens da minha geração, não só sonhei ser realizador, como cheguei a imaginar que se houvesse um rally pelas estradas da minha rua, também eu poderia ficar em terceiro (em primeiro!) de olhos fechados. 

Passo agora a passo por aquelas curvas de olhos bem abertos e arrepio-me só de pensar como nunca apareceu um gato no caminho. Apareceu, mas não era preto.

No documentário realizado por Eric Bana não há perseguições, nem atropelamentos. É um filme limpinho, bem comportado, até mete o Jay Leno e o Dr. Phil, o psicólogo das celebridades, mas há, desde desde o momento em que coloca os pés na Austrália e as mãos ao volante do seu velho Ford, uma angústia e inquietação silenciosa que parecem atraiçoá-lo. Mesmo estando a anos luz da dimensão de um Steven McQueen, Paul Newman e, é claro, James Dean – estará no patamar de Patrick Dempsey, protagonista da série Anatomia de Grey, outro amante e piloto de automóveis – também ele parece carregar uma certa dimensão trágica. Como se adivinhasse o final do filme, mas não fosse capaz de antecipar ou evitar o tamanho tragédia. 

Aproveitei para ir ver alguns road movies, entre eles Two-Lane Blacktop e Vanishing Point, ambos de 1971. Dois filmes de culto, com muitos tiros, perseguições. Profundamente existencialistas. 

Aquando da sua primeira viagem aos Estados Unidos, entre Novembro de 1959 e Maio de 1960, a convite da Fundação Ford, Italo Calvino escreveu estas palavras: ”Poderia ainda haver um pintor que representasse a paisagem viva da América de hoje? Imagino que iria imediatamente esbarrar contra uma dificuldade: teria de pintar automóveis. Porque os automóveis agora são uma parte necessária da paisagem: qualquer esboço da América sem o mar dos tejadilhos de chapa celestina ou cinzenta ou cor de rosa por entre as linhas brancas é coisa impensável. E ainda nenhum pintor conseguir enfiar nenhum automóvel num quadro sem tornar o carro desajeitado e banal”. Frases retiradas do livro Um Otimista na América – editado em Portugal pela Dom Quixote. 

O Cinema desde cedo percebeu que não há maior ponto de fuga do que o automóvel. Talvez por serem contemporâneos.