O “retro jet” da TAP: um voo de reputação

28/05/2017

Estará por dias a apresentação em Lisboa do primeiro retro jet da história da TAP, um Airbus A330-300 que vai sair dos hangares com as cores que os “Transportes Aéreos Portugueses” ostentavam entre 1954 e 1979. É um marco incontornável e não haverá um apaixonado ou spotter português que não queira fotografar este wide body do Século XXI com decoração “à la jet age”. A companhia nacional adere assim à tendência das pinturas heritage, um dos fenómenos mais interessantes da aviação moderna, daqueles que nos demonstra que, no fundo, no fundo, puxar pelos galões é sempre bom para o negócio.

O novo avião da TAP, que chegou a Lisboa há poucas semanas, faz parte de um lote de quatro A330-300 com o qual a companhia reforça a sua frota de longo curso. Trata-se de uma versão alongada dos A330-200 actuais e que se destaca por oferecer maior lotação. A TAP não divulgou ainda como será a configuração das cabines dos seus “A333”, mas a generalidade das companhias tem aproveitado os cerca de 4 metros extra para reforçar a oferta de lugares “premium”, outra tendência de mercado na qual as transportadoras encontram espaço para os passageiros e para a rentabilidade.

O A330-300, de matrícula CS-TOV, está prestes a ser colocado em operação com as cores que não se viam desde o final da década de 70. A reconstituição é rigorosa, como documenta a ilustração de Anthony Ribeiro que tem circulado nos fóruns especializados e que confirmei ser muito fiel ao projecto final. Será um exercício de memória único ver este avião com o traço tão deliciosamente datado que antes brilhava em aeronaves míticas como o Boeing 747 (sim, a TAP chegou a ter quatro “jumbos” na sua frota) ou o Caravelle. Assim como será uma homenagem a um dos períodos mais notáveis da companhia, com rotas tão emblemáticas como o “voo da amizade”, que no início dos anos 60 ligava Lisboa ao Rio de Janeiro com tarifas a menos de metade do preço normal para a época (também podiam reeditar esta ideia, digo eu…), ou o Lisboa-Goa, uma épica viagem de 19 horas e cinco escalas. A pintura que vamos ver de novo foi, de resto, a que durou mais tempo até hoje na história da companhia – mais de 26 anos – e foi com ela que a TAP acompanhou a maior transição do transporte aéreo mundial, ao entrar na tal “jet age” que afirmou decisivamente o voo como uma rotina dos viajantes também em Portugal. Que transportou a TAP definitivamente das “rotas do Império” para as ligações ao resto do mundo.

Esta onda revivalista tem sido adoptada por várias das grandes companhias aéreas um pouco por todo o globo. A Lufthansa, por exemplo, surpreendeu em 2005 com um A321 pintado com as cores do pós-guerra e que era, aliás, presença regular na ligação entre Lisboa e Frankfurt. A companhia alemã repetiu a proeza e desta vez em grande, num dos seus novíssimos 747-8, agora com a decoração dos anos 60-80. KLM, Air France, Finnair, Iberia e até as norte-americanas American Airlines e United são outros dos casos mais marcantes.

Para as companhias aéreas, a receita é ganhadora: a pintura de um avião é um trabalho inevitável e o custo associado a uma decoração “retro” não tem acréscimos de custos por aí além face a outra qualquer. O resultado é que pode ser bem diferente, em especial na notoriedade de marca: na era das redes sociais, a multiplicação de impactos corresponde a retorno gratuito e massificador. E qualificado também, já que a imagens fazem sucesso nos fóruns especializados em aviação e turismo, onde proliferam os influenciadores (o cálice sagrado de qualquer marketeer, como se sabe) e o tão valioso endorsement. Os geeks da aviação, spotters e afins, têm até lugares próprios para poderem seguir estas aeronaves, de que é exemplo o FlightRadar24 (claro!) – que pode ser acedido aqui.

Os suspeitos do costume – ou talvez não

“Here’s looking at you kid” – duvido que nos atafulhados aeroportos do século XXI ainda haja despedidas como a de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman na placa de Casablanca, antes daquele embarque a preto e branco no Lockheed Electra da Air France que a haveria de levar até Lisboa. E aposto todas as minhas fichas (pode ser em milhas, vá) que, ainda antes de Rick proclamar o “beginning of a beautiful friendship” com Louis, já Ilsa estaria confortada na sua espaçosa poltrona e entregue ao consolo de que haveria sempre Paris. Do mal o menos.

Voar era uma coisa diferente. Também se apanhava o avião para ir do ponto A ao ponto B, mas pelo meio não havia filas para check-in (hoje podemos fazê-lo em casa, é certo, mas experimentem despachar uma bagagem no maior embuste das viagens actuais, que se chama “baggage drop-off”). E não havia controlos de segurança com perigosos portáteis ou suspeitos carrinhos de bebé a dispararem alarmes e a consumirem tempo. É uma canseira ainda antes de partir. E a bordo? Bom, já seria uma sorte ter uma água para hidratar, nem que fosse a colaboracionista “Vichy Water” que Louis Renault deitou no lixo pouco depois daquela partida dramática de Ilsa.

Os tempos do glamour da “jet age” ou do romantismo dos pioneiros de “Casablanca” são hoje uma preciosa memória. E é precisamente neste contexto que as companhias aéreas apostam nas decorações retro. No entanto, mais do que a notoriedade “grátis” e “viral” nas redes, mais do que os impactos mediáticos, há um profundo sentido estratégico nestas iniciativas revivalistas.

As companhias mais tradicionais – que, nem de propósito, são conhecidas na indústria como as “legacy carriers” – enfrentam um desafio tremendo: a diferenciação.

A sua proposta de valor sofreu uma enorme erosão à medida que as companhias low-cost foram ocupando um lugar cada vez mais importante na rotina dos passageiros, respondendo com preços mais baixos ou redução nos serviços, de que o catering e as bagagens são apenas dois exemplos.

As transportadoras clássicas caíram na ratoeira. Contra-atacaram com armas e com estratégias que não eram as suas e para as quais não estavam estruturalmente preparadas, ou seja, os modelos de negócio das low-cost – o que redundou numa angustiante penalização dos seus valores diferenciadores. E ironia das ironias: as low-cost aproveitam cada vez mais esta menor diferenciação percebida para subirem os preços e liderarem o processo…

Depois de décadas a viver com companhias low-cost, o problema para as “legacy” só se agravou: a liberalização de rotas, a introdução massiva das compras online e o crescimento exponencial de opções acabou por ter um efeito geracional na forma de viajar. E este lado geracional não pode ser subestimado: como explicar a um millennial que a experiência, a história e a tradição de uma grande companhia podem fazer a diferença na sua forma de viajar? E, já agora, essa diferença tem sido bem comunicada?

Os “retro jets” fazem parte desta estratégia de diferenciação ao colocarem em evidência um factor primordial para qualquer negócio: Reputação. Num universo extraordinariamente concorrencial e em mutação total, nunca como agora foi tão necessário relevar os valores das companhias, nomeadamente a sua história, enquanto sinal da tal experiência e competência. A reputação é um activo intangível das empresas, mas que se torna bem tangível no dia em que se dá por falta dele. Na aviação, como noutros negócios (nomeadamente no automóvel), é a reputação que dá confiança ao consumidor e, por maioria de razão, permite alcançar margens mais confortáveis. Cruzei-me recentemente com um trabalho da Economist Intelligence Unit no qual é referido que 60% das organizações inquiridas por este centro de estudos consideram que a reputação é cada vez mais uma fonte de vantagem competitiva numa altura em que em que existe uma menor percepção da diferenciação de produtos e serviços.

Os “retro jets”, seja o da TAP ou outro qualquer, são, por tudo isto, uma parte do esforço estratégico das maiores companhias mundiais para recuperarem o carácter aspiracional do transporte aéreo, mesmo que este seja, como é, cada vez mais massificado. É mais do que um mero posicionamento de marca, trata-se de um “voo” no qual têm mesmo de embarcar, sob pena de perderem a sua identidade – “maybe not today, maybe not tomorrow, but soon for the rest of your life”. Bogart não diria melhor.

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Luís Pimenta editou e dirigiu vários órgãos de comunicação social especializados e generalistas e dedica-se hoje à consultoria e produção de conteúdos e de plataformas de comunicação online.

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