Um dia até a Rainha vai andar de carro chinês

13/01/2017

Para várias gerações de jovens que iam pela primeira vez a Londres, passear pela Carnaby Street era assim como um ritual iniciático na cultura anglo-saxónica. A rua é pequena, mas sempre teve uma espantosa capacidade para acolher todas as mudanças do mundo.

Nos anos 60 foi paragem para hippies, “hangout” preferido do movimento Mod e o lugar onde Mary Quant haveria de chocar o mundo com as suas criações, entre as quais a mini-saia. Podia destacar outras, mas só me lembro desta por agora. O mítico Marquee ficava ali perto, a meia dúzia de quarteirões, pelo que muitas bandas lhe ficaram associadas, como por exemplo os Rolling Stones, que celebraram o seu 50º aniversário precisamente na Carnaby Street, em 2012. Quando me estreei em Londres, já no final dos anos 80, Carnaby ainda expelia os resquícios de meia dúzia de punks perdidos no tempo, entre lojas de música e de souvenirs baratos. Estava uma sombra daquilo que tinha lido no tripadvisor da época e que na altura era a Time Out, claro. Mas a aura continuava lá. Ou então era a minha vontade de ver tudo como sempre tinha imaginado.

Outra das coisas que estava no meu imaginário eram os táxis ingleses. (Alfacinha como sou, os autocarros de dois pisos não eram nada de novo para mim.) Por isso, assim que pude, meti-me num destes táxis pretos, com um desenho anterior ao whisky mais velho do Hotel Savoy, e apreciei aquela forma de mobilidade totalmente distinta do que conhecia. Uma sala de estar com rodas, muitíssimo bem aquecida e embalada pelo matraquear do motor diesel Land Rover. That’s right old chap! a Land Rover! Foi uma viagem curta, de perna cruzada e pés abençoados pelo ventilador quente, culminada com aquele gesto muito british de pagar a corrida já do lado de fora pela janela do pendura (que no Reino Unido, como se sabe, fica no lado errado do carro). Keep the change!

Estive de novo em Londres há duas semanas. Já tinha regressado depois daquela primeira vez, mas nunca tinha voltado a Carnaby Street e encontrei-a profundamente mudada. Mais internacional e cosmopolita. Continua a ser a porta para o Soho, mantém-se como a barreira invisível que nos protege, apesar de tudo, da algazarra de luz de Picadilly Circus, mas as grandes cadeias internacionais tomaram conta do espaço. Os bares locais perderam a guerra para os inefáveis cafés franchisados, daqueles onde pedir um expresso é uma afronta à arte do barista, e é mais difícil encontrar uma loja de autor do que uma água a menos de 1,5 libras.

Os táxis é que continuam mais ou menos iguais. O desenho do final dos anos 50 mantém o essencial da silhueta e continua a haver turistas que os apanham como eu naquela primeira vez. Os londrinos, esses, preferem o Uber, aplicação responsável por uma boa poupança e também pelo enxame de Toyota Prius e Honda Insight que, graças ao seu estatuto verde, podem fintar a congestion charge que limita o centro de Londres. De acordo com o Guardian, a Uber tomou conta de Londres e todas as semanas são feitos mais de 30.000 downloads da aplicação nesta cidade. Confirmei que, lá como cá, poupamos no preço e na chatice de ouvir o motorista protestar sempre que a corrida é pequena.

Mas o problema é que em Londres os táxis fazem tanto parte da paisagem como o Big Ben ou o rio Tamisa. Deixar que eles acabem será o mesmo que transformar o Palácio de Buckingham num hostel ou o Hide Park numa feira alternativa. Tornou-se necessário fazer qualquer coisa para melhorar o serviço, os carros e, claro, manter o espírito do good ol’black cab.

E a mudança que aí vem é tão irónica que nem na camaleónica Carnaby Street caberia. Quem foi chamado para conceber e produzir os novos táxis? Os chineses.

A London Taxi Company, empresa que produz os atuais TX4 e que vai começar a fabricar já a partir de meados do ano o novo modelo TX5, pertence à Zhejiang Geely Holding Group, dona da marca Geely e da Volvo. Os chineses adquiriram a LTC em 2013 e desde essa altura já investiram o equivalente a 360 milhões de euros numa nova fábrica em Coventry. O LTC TX5 foi desenhado pelo centro de design da Geely, em Barcelona, liderado por Peter Horbury, atual vice-presidente da marca, depois de ter chefiado o design da Volvo e da Ford North America.

O desenho mantém o tal espírito dos Black Cabs de Londres, mas em tudo o resto há um mundo de diferenças: a motorização é híbrida plug-in e a construção recorre a materiais de última geração. Este projeto, prestes a chegar às ruas da cidade, acabou por impulsionar um outro, em parceira com a autarquia londrina, que está a promover a rede de carregadores rápidos, estimando-se que cheguem aos 150 em 2018, subindo para 300 até 2020.

Esta predileção dos investidores chineses pelos ativos da outrora orgulhosa indústria automóvel britânica nem sequer é nova. Qualquer amante dos carros sabe que Coventry é a “motor city” dos ingleses, como Detroit é a dos americanos. Foi lá que nasceu o primeiro carro inglês, foi lá que a British Motor Corporation produziu o Mini e também era desta cidade que saiam os Jaguar, entre outros. Hoje, a única fábrica de automóveis que por ali dá empregos é a da London Taxi Company. Agora, como tem sido noticiado, é da China que estão a chegar os maiores investimentos e o interesse pela região, fruto de uma estratégia que aponta desta vez para a indústria de componentes – de acordo com um relatório da Deloitte, mais de 80% das operações de M&A protagonizadas por companhias chinesas entre 2013 e 2015 aconteceram com empresas deste sector.

É um reflexo do mundo em mudança acelerada que não poupa ícones até agora protegidos pela redoma da tradição. O caso da London Taxi Company é emblemático desta negociação à escala do planeta, não olhando a geografias ou a linguagens. Os chineses da Geely, aliás, têm ideias bem ambiciosas para o seu Black Cab londrino e garantem que o TX5 será um “projeto de nível global”.

O que significa isto? Bom, para já, sabemos que haverá Black Cabs em Pequim, a primeira cidade fora do Reino Unido a receber o TX5.

No final disto tudo, não consigo imaginar taxista mais feliz do que aquele que pegar um passageiro às portas da Cidade Proibida para o levar até Carnaby Street.

Aquilo é que vai ser faturar.

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Mundo em mudança 1 – O ano de 2017 pode muito bem ficar para a história como aquele em que a indústria da chapa se funde decisivamente com a dos microprocessadores, como ficou evidente nos primeiros dias deste ano: o CES 2017, ou “Consumer Electronics Show”, teve a maior presença automóvel de sempre, de tal forma que em Las Vegas já circulava a piada de que este passou a ser o “Car Electronics Show”.

Mundo em mudança 2 – Uma das estreias mais surpreendentes do maior salão automóvel dos Estados Unidos foi um coupé desportivo de quatro portas coreano cujo desenvolvimento foi liderado por dois alemães, um deles vindo da BMW. Tivesse eu escrito isto numa notícia há 10 anos atrás e seria acusado de produzir “fake news”. Mas aqui não estamos perante um caso de “pós-verdade”. Nada disso: o Salão de Detroit assistiu ao lançamento do Kia Stinger, mais um produto sob a liderança de Peter Schreyer, cujo desenvolvimento dinâmico esteve a cargo de Albert Biermann, o responsável da divisão M da BMW que a marca de Seul contratou recentemente. A Road & Track decidiu colocar o mítico Bob Lutz (ex-BMW, Ford, Chrysler e GM) a comentar o carro. Vale a pena ver o vídeo, que é, em si mesmo, mais um testemunho da extraordinária mudança que vivemos hoje na indústria automóvel.

Mundo em mudança 3 – A Nvidia, que conhecemos melhor das placas gráficas dos nossos PC e da indústria de gaming, consolidou-se decididamente como um player fundamental da indústria automóvel. Aconteceu no CES 2017, logo no arranque do ano, quando o CEO da companhia, Jen-Hsun Huang, deu uma conferência que rivalizou em importância com a de Carlos Ghosn, o todo-poderoso patrão da Renault-Nissan (esse mesmo…). Acontece que a Nvidia transformou o seu core business, apresentando-se agora com uma empresa especializada em Inteligência Artificial. E é a única – repito: a única – companhia a apresentar uma plataforma de IA para carros autónomos: chama-se Nvidia Drive. Não admira que a empresa esteja já tão ligada à indústria automóvel. Dúvidas? É dar um saltinho rápido a este link da marca…

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Luís Pimenta acompanha o setor automóvel há mais de 25 anos. Editou e dirigiu vários órgãos de comunicação social especializados e generalistas e dedica-se hoje à consultoria e produção de conteúdos e de plataformas de comunicação online.