Um smartphone vale mais que um automóvel?

16/12/2016

Confesso uma das minhas fraquezas de sempre: sou um viciado em gadgets. Talvez por isso, lembro-me muito bem do dia em que recebi o meu primeiro iPhone, um modelo 3G. Em 2008, era o único smartphone que existia, mas deu desde logo para perceber que tinha nas mãos algo que iria mudar o mundo, o nosso mundo. E, como todas as coisas que estão destinadas a dar certo, foi intuitiva a aprendizagem, mesmo tendo em conta que tinha passado de um telefone com 20 teclas para outro que só tinha uma.

Mas o que fez realmente alterar a minha percepção desta nova era tecnológica foi o facto de que aquele não era um gadget como outro qualquer. Este mudava regularmente, com atualizações que por vezes o transfiguravam, que acrescentavam qualquer coisa. Essa sensação de saber que havia alguém a pensar em mim lá do outro lado e que me oferecia melhorias contínuas, diretamente e onde quer que eu estivesse, foi totalmente nova. As atualizações do iOS e a profusão de novas apps passaram a marcar a agenda dos “gadget-addicted”, mas fizeram mais do que isso: alteraram para sempre a nossa perceção de valor face aos produtos que têm o software como principal motor.

Por isso mesmo, dou por mim a pensar muitas vezes se será boa ideia que a indústria automóvel passe a ideia de que os carros vão passar a ser todos uns “smartphones com rodas”. Bem sei que é irresistível o apelo às gerações “Y” e “Z”. Sim, é verdade que são eles, pela lei natural da vida, que irão comprar carros no futuro, mas não estará a indústria a entrar num jogo que está ainda longe de dominar?

O soundbyte do momento para qualquer CEO do sector automóvel é a conectividade, a ligação do carro com a “internet das coisas”, num mundo em que as “auto-estradas da informação” serão mais importantes que as de asfalto. Ouço alguns discursos de gente muito respeitável do setor que bem poderiam terminar com um “beam me up, Scotty!” porque me fazem lembrar mais o teleporte do Star Trek do que um carro com quatro obsoletas rodas e, imagine-se só, um motor.

O problema é que a denominada “experiência do consumidor” se transformou, muito por conta precisamente dos smartphones. E os construtores foram apanhados em cheio nesta mudança radical do modelo de negócio.

Quando compramos um automóvel podemos ter sistemas de infotainment de maior ou menor sofisticação – consoante o dinheiro que tivermos para desembolsar – mas mantém-se o padrão das opções de navegação e de algumas funções extra de conectividade. Algumas marcas já oferecem atualizações do GPS ao longo do período da garantia, mas o modelo continua a ser relativamente estático e, geralmente, sujeito a pagamento. É aquilo a que a Google, quando pretende impingir o seu Android Auto, chama “a natureza relativamente burra do infotainment dos automóveis”.

O setor automóvel tenta agora desesperadamente piscar o olho a esta geração de novos comunicadores, mas parece-me que está a entrar numa guerra complexa e sem garantias: os smartphones introduziram uma noção de conectividade individual e verdadeiramente portátil e essa é porventura a sua maior magia. Para que precisamos disso num carro quando o temos em todo o lado? Por outro lado, e mais importante que tudo, os serviços via smartphone que usam a localização são de fácil download e geralmente gratuitos, pelo que a monetização pela cobrança pura e simples vai esbarrar em hábitos de consumo que entretanto se enraizaram profundamente na cultura das gerações atuais. A estratégia dos construtores de automóveis contrasta, assim, com o modus operandi das empresas nativas da internet, que procuram a rentabilidade através da massificação do tráfego de utilizadores. E temos ainda os ciclos de produto: as tecnológicas trabalham a um ano ou dois, no máximo, enquanto os ciclos de desenvolvimento da indústria automóvel se mantêm tipicamente nos 5 a 7 anos…

O mindset dos construtores continua a ser o de deterem a posse e o design da tecnologia, mas o paradigma está a alterar-se profundamente, fruto da conectividade individual em que vivemos hoje em dia, pelo que apostar tudo nessa conectividade através do carro parece ir contra a realidade quotidiana de todos nós. Os sistemas Android Auto e Apple Car Play, que espelham os smartphones a bordo, estão, de resto, a ser vistos mais como ameaça do que como complemento para fortalecer a oferta a bordo. Compreende-se que a indústria automóvel olhe com desconfiança para estes players: o brand value, a percepção de valor e o negócio mais chorudo do futuro correm o risco de escapar (ainda mais) para a Google e para a Apple.

Mas a verdade é que são as pessoas que estão conectadas e não os carros. Esta é a assinatura e o ADN das novas gerações de condutores. Por isso, todos os esforços dos fabricantes para controlarem os sistemas de conectividade, por oposição ao smartphone, têm muito poucas hipóteses de serem bem-sucedidos a longo prazo.

Por muito que custe aos construtores, a criação de um interface aberto que permita replicar o nosso smartphone parece ser a solução mais óbvia. O primeiro a reconhecer a necessidade e a desenvolver esta plataforma livre, integrando-a decentemente com o veículo, poderá vencer a guerra da diferenciação entre a concorrência. Decididamente, o conceito de “docking station com rodas” é mais realista que o de “smartphone com rodas”.

__________________________________________________________________

faraday-1

Faraday e outras “f-word” do automóvel – É muito “hype” falar de eléctricos e de autónomos, ao mesmo tempo que se renega essa cultura boçal dos automóveis com motor de combustão interna, o horror dos tempos modernos. Por isso, muito à la Sillicon Valley, vão aparecendo novas marcas que prometem o mundo e conquistam a atenção dos media. O buzz é mais rápido que a aceleração dos 0 aos 100 prometida por estes novos empreendedores. O caso da Faraday é sintomático: surgiu no CES 2016 com um modelo desportivo e promete repetir a proeza na edição 2017, já nos primeiros dias de Janeiro. Mas parece que falta o dinheiro e o futuro também, como se pode ler neste artigo da MIT Technology Review. Faraday Future, o nome da companhia, parece cada vez mais irónico.

_____________________________________________________________________

*Luís Pimenta acompanha o setor automóvel há mais de 25 anos. Editou e dirigiu vários órgãos de comunicação social especializados e generalistas e dedica-se hoje à consultoria e produção de conteúdos e de plataformas de comunicação online.