O dia em que Carlos Vieira renasceu

02/11/2019

O episódio que mudou a vida de Carlos Vieira na Marinha Grande, em junho de 2018, é bem conhecido de todos os adeptos do automobilismo em Portugal. Um grave acidente no Rali Vidreiro atirou-o para uma cama de hospital e para um cenário de incerteza quanto à sua plena recuperação, não para o desporto, porque esse é secundário nestas circunstâncias, mas para a vida diária, para as coisas mais simples do quotidiano.

Carlos Vieira não se lembra, mas a rápida ação dos médicos da prova foi o primeiro passo de um longo, longo caminho. Um caminho que ainda não acabou, mas que teve um momento muito especial este sábado, no Autódromo Internacional do Algarve, na corrida do Campeonato de Portugal de Velocidade de Clássicos.

O quadro parecia ter sido pintado pelos deuses do automobilismo: uma pista fabulosa, daquelas que distinguem os homens dos meninos, um Ford Escort RS propositadamente evoluído e alargado para o Grupo 5, só “para me poder divertir com o Porsche do João Macedo Silva”, e um asfalto húmido que permitiu minimizar o poderio do famoso Porsche RSR laranja que domina as corridas de Clássicos em Portugal. Macedo Silva arrancou da pole position, mas um pião deixou o Escort RS na frente de todo o pelotão ainda na primeira volta… e já mais ninguém parou Carlos Vieira.

A partir de determinada altura, o antigo campeão nacional de Ralis corria contra si próprio, contra os seus limites, contra os fantasmas de um passado que quer deixar a muitas voltas de distância. Porque as voltas num circuito são como as voltas da vida: há altos e baixos, há dificuldade e superação, há lágrimas e risos. E, um ano e meio depois, Carlos Vieira voltou a sorrir no preciso momento em que aquela bandeira de xadrez voou à sua frente.

“Estou muito contente por ter voltado”, referiu com a simplicidade e a honestidade que lhe renderam uma multidão de adeptos nas corridas, fato completamente branco, olhos no infinito, uma coragem quase tão grande na pista como fora dela. As memórias sobre o momento que mudou tudo são sinapses apagadas para sempre: “Não me lembro de nada. O cérebro apagou completamente o que aconteceu a partir do arranque para aquele troço. Só me lembro de pormos os capacetes, a partir daí nada. O coma… só me lembro de acordar no hospital, com as lesões que tinha e com dores sobre-humanas. Uma coisa indescritível, algo que não desejo aos meus inimigos, apesar de não os ter. É realmente desumano o que passei e o que ainda estou a passar, porque recuperei muito neste ano e meio mas faço todos os dias fisioterapia e ainda tenho muitas dificuldades motoras. Sei que nada vai ser igual, mas consegui recuperar e estar onde gosto de estar. A vida profissional voltou a ser igual há já um ano. A parte física e de mobilidade, vou recuperando. Vamos ver até onde é que vai”, atirou antes de se afastar para saborear a vitória em privado. Uma vitória sobre o destino.