Para todos os amantes de desportos motorizados e, potencialmente, até para o automobilismo em si, existe um antes e um depois do fim de semana de Imola em 1994. Palco do Grande Prémio de São Marino, o circuito Enzo e Dino Ferrari testemunhou aquele que é ainda hoje conhecido como o ‘fim de semana mais negro’ da história do desporto automóvel e é difícil encontrar outro semelhante com tanto ponto trágico.

A temporada de 1994 assumia-se para a Fórmula 1 como uma época de transição. A Federação Internacional do Automóvel (FIA) havia proibido muitas das ajudas eletrónicas que vigoravam até 1993 e que a Williams dominava de forma exímia, como a suspensão ativa ou o controlo de tração. Com Alain Prost a vencer o seu quarto título mundial, o piloto francês entendia que era chegado o momento de ‘arrumar’ o capacete, surgindo no seu lugar aquele que tinha sido em anos anteriores o seu grande rival, Ayrton Senna.

O piloto brasileiro tinha a seu lado o jovem Damon Hill e tudo para poder brilhar na temporada. Contudo, confirmando todos os bons indicadores que já haviam sido dados, Michael Schumacher assumia a posição de chefe-de-fila na Benetton, equipa em que em 1994 desenvolvera um modelo bastante eficiente, ainda para mais na mesma época em que os reabastecimentos passaram a ser uma parte ativa do espetáculo da Fórmula 1.

As duas primeiras corridas mostraram precisamente isso: o alemão da Benetton estava forte, vencendo em Interlagos (Brasil) e Aida (Japão/GP do Pacífico), enquanto Senna ficara a zeros, abandonando em ambas as provas, queixando-se do comportamento do carro, longe daquilo que idealizara. O início da temporada europeia era vista por Senna como o momento em que ‘tudo começava’ para si.

Sexta-feira: ‘Rubinho’ escapa ao pior

Mas São Marino deu razão à ‘Lei de Murphy’: tudo o que pode correr mal, efetivamente corre. Na sexta-feira, dia dos primeiros treinos livres e qualificação, Rubens Barrichello, um jovem que se havia estreado em 1993 com a Jordan, não evitou um forte acidente na chicane de acesso à meta. Impelido pelo corretor alto da Variante Baixa no circuito, o Jordan-Hart voou rumo à rede e barreira de proteção, com Barrichello a sofrer unicamente uma fratura no nariz e uma luxação nas costelas. Os monolugares de Fórmula 1, que tanto haviam evoluído nos anos anteriores em termos de segurança, davam alguma garantia aos pilotos de que seria difícil morrer ao volante de um carro de Fórmula 1.

Uma sensação de segurança que havia sido fortalecida por vários anos sem quaisquer fatalidades na Fórmula 1 desde que Elio de Angelis perdera a sua vida nuns testes privados com a Lotus em 1986.

Senna foi um dos primeiros a demonstrar preocupação com o estado de saúde de Barrichello, confirmando igualmente a sua faceta de piloto feroz e tenaz em pista, mas de homem atento e cuidadoso fora dela. Fora assim também quando ajudou Eric Comas em 1992, aquando do seu despiste nos treinos em Spa-Francorchamps, parando na pista para intervir nos esforços da equipa de comissários que estavam a tentar retirar o piloto do Ligier destroçado.

Sábado: Roland Ratzenberger

Mas, o primeiro sinal de que este fim de semana não teria o mesmo sentimento que os outros surgiu no sábado, 30 de abril. O austríaco, cujo sonho era pilotar na Fórmula 1, havia feito tudo para lá chegar, empenhando-se a fundo para conseguir um contrato de cinco corridas apenas com a jovem equipa Simtek, uma formação novata que frequentava de forma assídua os lugares do fundo da tabela. A seu lado estava David Brabham, filho do campeão Jack.

A primeira experiência na F1 em 1994 foi desapontante: Ratzenberger falhou a qualificação para o GP do Brasil, mas, tirando partido da sua experiência no circuito de TI-Aida, no Japão, conseguiu qualificar-se e terminar a corrida num honroso 11º lugar.

Imola seria a sua terceira corrida. Na segunda sessão de qualificação, Roland estava a tentar garantir a sua participação na corrida de domingo. Numa das suas tentativas, sofreu uma ligeira saída de pista, no processo danificando a asa dianteira do Simtek, mas foi na reta que levava à Curva Villeneuve que a asa cedeu, deixando o piloto sem controlo do seu monolugar desgovernado rumo ao muro. O embate fez-se a 314.9 km/h e a desaceleração abrupta, juntamente com a própria brutalidade do acidente, causaram uma fratura craniana fatal. Um evento tanto mais chocante que se tornou imediatamente óbvio que a condição do austríaco era grave na transmissão televisiva para milhões de lares em todo o mundo. A informação da sua morte chegaria escasso tempo depois, pese embora os esforços da equipa de médicos no local e pelo incansável Sid Watkins, um dos médicos de longa data da Fórmula 1 e que foi também um dos responsáveis pelo aumento da segurança nos circuitos.

Ratzenberger, muitas vezes apelidado pela sua alcunha ‘Rat’, participou também, entre outras competições, nas 24 Horas de Le Mans, entre 1990 e 1993, com a SARD Toyota, conseguindo terminar em quinto em 1993. Foi no Japão que teve o seu período de competição ao mais alto nível, participando no JTCC (Campeonato Japonês de Turismos) e Fórmula 3000.

Era o primeiro acidente mortal na Fórmula 1 desde 1986 (o já referido de Elio de Angelis) e o primeiro em eventos desde 1982, quando Riccardo Paletti perdeu a vida no Grande Prémio do Canadá, em Montreal. Numa ironia triste sobre Paletti, este havia convidado os seus pais para assistirem à corrida no circuito.

Regressando a Ratzenberger, a sua morte causou profunda consternação na modalidade e no próprio mundo do desporto, com diversos pilotos a mostrarem grande preocupação com a segurança dos monolugares. Um deles foi Senna, que assistiu fora do seu Williams, ao violento acidente. Consternado, o piloto brasileiro foi um dos que mais insistiu para a formação da Grand Prix Drivers’ Association (GPDA), associação de pilotos que lutava pela segurança e que teve em Senna, Gerhard Berger e Michael Schumacher os seus primeiros diretores.

*Artigo escrito originalmente a 30 de abril de 2019