A declaração é forte, sabemo-lo. Talvez demasiado ambiciosa. Ou mesmo uma estupidez completa. Mas repare que, em primeiro lugar, não definimos a maior extravagância que alguma vez saiu das oficinas da Morgan como um automóvel, e sim como meio de transporte, porque não é bem o primeiro (na verdade está homologado como um triciclo em Portugal, mas exige carta de automóveis para poder ser conduzido), e também porque é muito mais do que este. Confuso? Nós também, ainda atordoados com as mensagens sensoriais que o 3-Wheeler enviou para o nosso cérebro.
É curioso como um conceito tão arcaico, cujo primeiro ciclo data de 1909 a 1936, pode trazer tanta felicidade ao rosto de um homem. Não há aqui nada de surpreendentemente moderno, já que, embora obviamente a tecnologia seja outra, o conceito de motor de dois cilindros e três rodas mantém-se inalterado, tal como a estrutura tubular em madeira, agora revestida a alumínio desde que a Morgan recuperou o modelo em 2012. Mas a diversão extrema, a sensação de pioneirismo vintage e o trautear do motor produzido pela S&S para a Harley Davidson, gerido eletronicamente, mas bruto e chauvinista, anunciando sem pudor a sua presença, transformam tudo o que poderia ser um defeito em enormes qualidades. É um retrocesso que se quer concretizar sempre – uma viagem a uma era que aparentemente não volta, mas que a bordo do 3-Wheeler nos surge instantaneamente.
Fulgurante
Não é só a ausência da direção assistida, ou dos travões sem servo-freio. Para ‘acordar’ o V2 de 2.0 litros, por exemplo, é necessário levantar uma pequena cápsula que se encontra a meio do tabliê para então depois carregar no botão que comanda a ignição. Há um vínculo precioso à aeronáutica e às motos que não se perde, como se vê pelo desenho da carroçaria, com o 3-Wheeler a apresentar-se como um conceito híbrido que se situa entre ambos, e entre um automóvel, sem nunca sê-lo. E é precisamente nessa diferenciação e impossibilidade de ser categorizado que assenta o seu encanto.
Existem depois as particularidades históricas, que também ajudam ao misticismo evidente, como o facto de a pedaleira ser a única coisa que pode ser ajustada nesta reinterpretação do pioneiro modelo que saiu da cartola de Henry Morgan – um sagaz britânico que rapidamente se apercebeu que as motos pagavam menos impostos do que os carros, e que por isso seria inteligente apostar na construção de um veículo de três rodas com capacidade para transportar dois ocupantes.Se nessa época o 3-Wheeler contava com um motor de 7cv, a sua versão contemporânea debita hoje uns ‘simpáticos’ 82 cv. Pouco expressivos, dirão alguns, mas que se assumem fulgurantes quando associados à leveza (525 kg) e carências estruturais deste Morgan, sem tecto, capota ou pilar B, mas livre de constrangimentos.
Mesmo para os que não se consideram religiosos, conduzi-lo é, e será sempre, um enorme ato de fé. Qualquer encontro com outro veículo resultará em danos materiais e muito provavelmente em noites penosas, repletas de nódoas negras. Mas, mais uma vez, é também este o seu charme: o 3-Wheeler é um curandeiro mórbido, que tanto pode ser classificado como um salvador da juventude esquecida ou como um destruidor de famílias, pois é garantido que, ao adquiri-lo, irá passar mais tempo fora de casa sem poder (ou querer, assumimos) levar toda a gente consigo.
Garantidos estão também 185 km/h de velocidade máxima, que num veículo com esta tipologia parecem ser o dobro, enquanto a aceleração até aos 100 km/h é cumprida em rápidos seis segundos graças ao brilhante escalonamento da caixa manual de cinco velocidades partilhada com o Mazda MX-5.
A visibilidade para a frente é por vezes limitada, consequência do duplo vidro que faz a função de para-brisas. Tal obriga-nos a conduzir à antiga, com a cabeça ligeiramente inclinada para fora, e com o vento a bater-nos ainda mais na cara. Dele ou não, a verdade é que o sorriso constante é gratuito e indisfarçável.
André Bettencourt Rodrigues / Autosport
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