Crítico do esforço “brutal” que a Europa está a exigir ao setor automóvel, Carlos Tavares, CEO da Stellantis, alerta para o potencial de se criarem focos de tensão social na transição para o automóvel elétrico se não se acautelar a acessibilidade da classe média à “mobilidade limpa e segura”. Produzir baterias de menor custo é um meio para tal, podendo a Península Ibérica vir a receber uma gigafábrica (com Portugal à ‘espreita’).

A posição crítica de Carlos Tavares perante as regulamentações europeias que promovem a eletrificação no Velho Continente é já bem conhecida. O CEO e responsável máximo do Grupo Stellantis, um dos maiores do mundo e que detém marcas como a Peugeot, Citroën, Fiat, Opel, Chrysler ou Alfa Romeo, entre outras, esteve presente no anúncio de produção dos comerciais elétricos do grupo em Mangualde, no qual estiveram também o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa, e recordou que há o risco de surgirem tensões sociais com a passagem para a eletrificação, dado o aumento de custos no acesso à mobilidade, mesmo para a classe média.

Em conversa com um número reduzido de jornalistas portugueses, Tavares referiu que o “ponto essencial é como é que se tornam os carros elétricos acessíveis à classe média? Enquanto esse problema não for resolvido, tudo o que representar uma obrigação regulamentar em passar para o veículo elétrico vai criar tensão social, porque aqueles que são mais vulneráveis não vão poder pagar um elétrico por 30 ou 40 mil euros”.

 

Uma das formas de abordar o problema passará pela criação de elétricos mais acessíveis aos consumidores de países tendencialmente menos abastados, como os do Sul da Europa, admitindo que a possibilidade de criar uma nova gigafábrica na Península Ibérica está em estudo. Portugal pode vir a ser opção, cumprindo alguns requisitos importantes, mas garante que não existem decisões, nem sequer projetos apresentados ao Governo luso.

“Neste momento não [existe proposta oficial], mas a porta está aberta”, refere, adiantando que a única certeza é que a Stellantis tem um plano de construção de três gigafábricas na Europa atualmente, em França, Alemanha e Itália. “Essas três fábricas vão ser utilizadas para uma tecnologia de células de bateria que se chama Níquel Manganês Cobalto (NMC), uma tecnologia que é extremamente eficiente, mas que é também bastante cara. Ou seja, há a oportunidade e estamos a estudar essa questão de criar, pelo menos, mais uma gigafábrica que seja dedicada a uma tecnologia ligeiramente menos eficiente, mas que é muitíssimo mais barata, de Lítio Ferro Fosfato (LFP), que vai ser necessária para tornar os carros elétricos mais acessíveis à classe média”, acrescenta.

“Estamos agora a estudar a possibilidade de criar na Península Ibérica uma gigafábrica de células de baterias para essa tecnologia LFP. Ainda nada está decidido, mas obviamente que há na Península Ibérica um mercado muito grande para veículos elétricos acessíveis, mas também no Sul da Europa essa necessidade é muito óbvia”, revela esperando-se uma decisão até ao final do ano.

Apesar da ligação a Portugal, Tavares defende que as decisões têm de ser tomadas com base na meritocracia e na racionalidade económica, indicando que as autoridades de Portugal, Espanha e de outros países do Sul da Europa terão interesse neste projeto, “porque estamos numa lógica muito simples, que é de produzir os carros perto dos pontos de consumo, que é uma lógica económica e ambiental. Os carros mais compactos que têm de ser acessíveis são mais necessários no Sul da Europa e portanto seria natural que essa fábrica estivesse no Sul da Europa – pode ser na Península Ibérica, em Itália ou na Grécia”.

Como vantagens de Portugal numa eventual candidatura, aponta a relevância das energias renováveis no ‘mix’ de produção energética do país, o custo laboral mais baixo face ao Norte da Europa (apesar de reconhecer a concorrência crescente do Norte de África, muito em concreto de Marrocos, que “tem dado grandes lições à Europa”) e a capacidade intelectual e tecnológica que existe em Portugal. Já a localização “descentrada” e a questão do custo laboral face a África são apontados como inconvenientes.

“A Alemanha manda na Europa”

Nas últimas semanas, a proposta de proibição de venda de automóveis novos com motor de combustão a partir de 2035 na Europa voltou a estar na ordem do dia, com países como a Alemanha e a Itália a pedirem a inclusão dos combustíveis sintéticos (‘e-fuels’) no pacote proposto pela Comissão Europeia. O acordo que veio a ser obtido permite motores de combustão com ‘e-fuels’, mas Carlos Tavares assegura que esta alteração apenas vem trazer confusão aos consumidores europeus e deixa à vista que “quem manda na Europa são os alemães”.

“É a primeira conclusão geopolítica que se deve tirar: é que na Europa quem manda são os alemães. A segunda conclusão é que vai criar confusão numa situação que já é caótica. Se deixarmos nascer a hipótese de que os combustíveis sintéticos poderão manter os veículos térmicos vai-se criar confusão, vai criar um abrandamento da dinâmica sobre o veículo elétrico, porque os consumidores vão hesitar. Tudo isso está a criar confusão, que se vem juntar a uma situação que em si já é caótica, porque é uma transformação muito brutal, muito profunda num espaço de tempo muito curto”, advoga Carlos Tavares, explicando ainda que há questões por resolver em termos de neutralidade carbónica dos ‘e-fuels” e de custo, na medida em que o preço do litro situa-se atualmente entre os seis e os oito euros. Ou seja, outro problema no acesso à mobilidade.

“Se não existirem outras ruturas tecnológicas, esse combustível só vai ser usado por pessoas com poder económico muito elevado. Trata-se de uma questão de liberdade de mobilidade que só está acessível aos mais ricos, o que no contexto atual da sociedade da Europa não não é o que se está à procura. O que se está à procura é de uma mobilidade limpa, segura e acessível para a classe média, é isso que temos de resolver”.

De qualquer forma, com “três pilares emocionais bem definidos: Chrysler nos Estados Unidos, Fiat em Itália e Peugeot em França”, a Stellantis tem o seu caminho bem definido, segundo Tavares. “A nossa trajetória do ponto de vista elétrico está traçada, temos 23 veículos elétricos à venda, no final deste ano teremos 32 e para o ano 47, o que é metade da frota total das 14 marcas do grupo. O nosso ritmo está traçado, estamos a executar o plano e provavelmente dentro de pouco tempo iremos anunciar que todos os nossos motores atuais são ‘e-fuel friendly’, ou seja, se quiserem utilizá-los podem, mas se forem a seis euros por litro poderão não esta interessados”.