Entre dois ‘mundos’ distintos (mas que podem vir a convergir no futuro), a Citroën acelera na eletrificação na Europa e na expansão em mercados emergentes com um plano ambicioso de três automóveis concebidos localmente. Conciliar essas duas tendências é o grande objetivo da marca para os próximos anos, estando Vincent Cobée, CEO da marca, bem ciente da tarefa que tem pela frente para assegurar que a Citroën continuará a ser defensora da liberdade para todos.
Entre os desafios da eletrificação em mercados familiares, como os da Europa, e o plano de expansão para novos países, como a Índia, a Citroën demonstra a importância de ter duas estratégias em simultâneo naquele que é um esforço assumido para se consolidar como uma protagonista da mobilidade na nova era da indústria automóvel. Integrada no grupo Stellantis, que resultou da fusão entre os grupos PSA e FCA no ano passado, a Citroën está a apostar fortemente na criação de mais valor fora da Europa, apontando aos mercados emergentes da América do Sul e Índia com um novo automóvel de segmento B de forma a consolidar o seu crescimento global.
Desenvolvido especificamente para mercados que não o europeu, este C3 é o primeiro resultado do programa ‘C Cubed’, que irá contemplar ainda mais dois modelos desenvolvidos e lançados em mercados internacionais específicos, respondendo a critérios locais. Apesar de ter a mesma denominação do utilitário à venda na Europa, o seu desenvolvimento e produção teve apenas em linha de conta os mercados e as necessidades dos clientes indianos e sul-americanos. Esta é, de acordo com Vincent Cobée, CEO da Citroën, uma ‘missão’ muito concreta por parte da marca, ao mesmo tempo que procura que as vendas fora da Europa passem a representar 30% do volume total, apostando pois numa ambição dupla de crescimento – entre a “certeza” dos produtos eletrificados que se tornarão determinantes no continente europeu (e até na China) e a “humildade” de reconhecer que essa pode não ser a resposta para todas as contingências de mobilidade noutras regiões.
“Do ponto de vista da marca – e estou muito entusiasmado por estar à frente da Citroën neste momento –, nós queremos fazer as coisas certas. Queremos manter e preservar o automóvel como uma fonte de progresso para todos. Queremos que o automóvel seja um facilitador de mobilidade individual e amplificador da qualidade de vida, do bem-estar. Trata-se de conforto, mas vai para além do conforto: aborda a experiência do cliente sem preocupações, a gestão do ruído, a transparência de preços e da manutenção. É toda uma dimensão de bem-estar. Mas também queremos ser humanistas ou ter fibra social”, começa por afirmar o responsável da marca gaulesa, lembrando que a eletrificação pode ter efeitos contrários aos pretendidos.
“Na Europa, vemos a eletrificação como o tópico diário de conversação, nas discussões mediáticas ou políticas. A eletrificação corre o risco de ser dispendiosa e, consequentemente, exclusiva. A visão da Citroën é que a liberdade de mobilidade deve ser para todos. A visão da Citroën é de que vamos combater o aumento de preços e, consequentemente, vamos contra a tendência do aumento do peso. Vamos ter uma visão muito equilibrada no aumento da autonomia, porque isso incrementa o custo e o peso. E se precisarem de ser convencidos do quão fortemente pensamos nisto, basta olharem para o Ami. Pegámos na tendência da eletrificação e demos-lhe a volta: reduzimos o peso, o preço e a idade de utilização [NDR: o Ami é um quadriciclo elétrico apto para condutores a partir dos 16 anos) para preservar a mobilidade individual de uma forma limpa. Esta é uma opinião particular da marca, que é válida seja em Itália, seja na Índia”.
“Com a entrada em vigor da norma Euro 7, penso que a rentabilidade dos automóveis de motor de combustão será pior do que a dos veículos eletrificados”.
“Do ponto em que começamos e em que se encontra o mercado, a posição em que se encontra a transição energética varia de um país para o outro. Mas, [para a Citroën] é a mesma visão humanista e inovadora orientada pelo bem-estar, ligeiramente irreverente dependendo da forma como se olha, uma marca que se atreve a procurar novas soluções mesmo que não sejam as mais comuns da indústria”, considera Cobée, que passou uma grande parte da sua carreira na Aliança Renault-Nissan-Mitsubishi, tendo também sido responsável pela reimplantação da Datsun na Índia na década de 2010.
Transição também na rentabilidade
Aquilo que garante, porém, é que não haverá um cenário em que os automóveis com motor de combustão interna irão financiar o lançamento de veículos elétricos noutros países. “Primeiro, há duas ou três coisas que são claras. A Europa vai-se movimentar, bem ou mal, para a eletrificação total a um ritmo acelerado com base na proposta feita pela Comissão Europeia a 14 de julho deste ano. É também bastante evidente que os Estados Unidos vão seguir o mesmo caminho. O que é muito difícil prever – e devemos ser honestos – é qual será o efeito dominó nos mercados. Se olharmos para a situação europeia em termos de regulamentação, a norma Euro 7 [de emissões] irá obrigar a uma forma de eletrificação, mas alguns dos mercados em que falamos estão na norma Euro 2. O tempo que vai demorar para se converterem para a eletrificação será uma competição interessante entre procura, oferta e regulamentação”, assevera, lembrando ainda que também a Índia se apresta a apertar as malhas da poluição com novas normas para os próximos anos.
“Agora, se os motores de combustão vão financiar a eletrificação? Podem existir algumas opiniões como essa hoje, mas não será o caso dentro de poucos anos. Porque com a entrada em vigor da norma Euro 7, penso que a rentabilidade dos automóveis de motor de combustão será pior do que a dos veículos eletrificados, em parte devido à melhoria dos custos dos carros elétricos, mas em grande parte devido ao custo mais alto dos carros de combustão ao abrigo da norma Euro 7. Por isso, penso que o reequilíbrio vai acontecer dentro de três ou quatro anos, no máximo, e não vai ser o caso de um tipo a financiar o outro. E posso prometer que não será a Índia e a América do Sul a financiar os outros”.
Aluno da ‘escola de Carlos Tavares’, pela qual ‘primeiro é preciso aprender a andar e depois a correr’, Vincent Cobée faz uma distinção dos ritmos da Citroën: “Penso que na Índia e na América Latina, estamos a andar. Vamos andar o mais depressa que conseguirmos e um dia poderemos vir a correr. Na Europa, a história é diferente. Temos vindo a correr há algum tempo, temos de ‘sprintar’ e garantir que o fazemos na direção certa. Ou seja, assegurar a transição energética de uma forma que seja aceitável para os clientes e gerir a evolução do modelo de propriedade. Mas, temos de olhar para a situação de uma forma que não seja negar factos ou realidades. É por isso que o modelo de negócio tem de ser positivo, que a aceitação dos veículos eletrificados tem de ser elevada e não se pode forçar o sistema. Podemos gerir o sistema, mas não forçar o sistema”, afiança.
Sem EUA, mas firme na China
O facto de estar integrada na ‘constelação’ Stellantis poderia representar também uma possível entrada no mercado norte-americano, mas o responsável da Citroën descarta a ideia, admitindo que há outras marcas mais habituadas às necessidades locais.
“A parte boa da Stellantis é que houve uma afirmação muito clara de que cada marca teria uma estratégia clara e um plano de produto para permitir a sua transição relevante. Na Citroën, já temos esse plano e vamos tornar-nos mais eficientes e competitivos em mercados como a América Latina. Entrar em mercados como o dos Estados Unidos da América é uma necessidade pouco óbvia, pois uma grande parte das marcas da antiga Fiat Chrysler Automobiles está presente nos EUA e cobre uma ampla parte das necessidades. Além disso, o quadro regulatório dos EUA é muito diferente do europeu, pelo que os automóveis que concebemos na Europa, em termos de compactação de interior, exterior e de dinâmica de condução, não se adequariam mecanicamente às necessidades dos clientes americanos”, observa. Sobre a China, admite que houve recentemente um processo de reajustamento com os parceiros locais e garante que “há um futuro para a marca” naquele país, no qual se espera um crescimento nas vendas.
De resto, no seio da estratégia de mobilidade da Citroën, há ainda uma grande incógnita assumida por Cobée, que diz respeito aos novos modelos de propriedade ou de utilização do automóvel. Em resposta à ideia de novos métodos de posse, o responsável sabe que há que mudar a mentalidade nas grandes cidades, “porque os recursos, como o espaço disponível, são finitos”. Como alternativa, aponta novamente o exemplo do Ami na Europa, com o qual a marca “deu um passo muito claro ao mostrar o que é possível fazer com um veículo que ocupa bem menos espaço e é mais eficiente. Isso funciona, é um modelo viável. Se a ideia é entrar na propriedade partilhada, a Stellantis está a tentar investigar qual o modo mais adequado. Haverá serviços de ‘ride-hailing’. Vimos muitos deles a desenvolverem-se, embora em Londres a autoridade rodoviária local tenha tomado uma posição contra porque considerou que estavam a afetar a otimização dos transportes. Podemos mover-nos para o ‘carsharing’, que tem muitos benefícios, mas que tanto quanto eu saiba não é rentável ou, pelo menos, é-o apenas em cidades muito raras, como Madrid. Por isso, a solução ainda não foi encontrada. Concordo com o princípio, mas mostrem-me um modelo que funcione à escala. Pode acontecer, mas ainda não descobri um. Estamos a tentar tudo o que podemos, também com a Citroën, mas é difícil encontrar um modelo de negócio que seja rentável”.