Porsche, uma religião com liberdade de culto

22/07/2017

O maior encontro de fiéis da Porsche na Península Ibérica foi também uma oportunidade para descobrir as razões que levaram a marca criada por Ferdinand Porsche a tornar-se uma autêntica marca de culto

Os vienenses que em 1902 viam passar na Ringestrasse o imperial carro, conduzido por um impecável oficial do exército, transportando o herdeiro do trono do império austro-húngaro, o Arquiduque Francisco Fernando, dificilmente poderiam adivinhar que ali iam duas personagens centrais para a história da Europa no século que então se inaugurava.

Foi o assassínio do Arquiduque no dia 28 de junho de 1914, nas ruas de Sarajevo que despoletou o início da I Guerra Mundial e iniciou a lenda do carro amaldiçoado.

O seu chauffer, Ferdinand Porsche viria a ser uma das figuras mais marcantes da engenharia automóvel do séc. XX, criador, sob encomenda de Adolf Hitler, do Volkswagen (o carro do povo) e mais tarde fundador da marca com o seu próprio nome, que é hoje mais do que um ícone da indústria automóvel alemã, mas um autêntico culto que suscita a devoção de milhões de pessoas pelo mundo fora.

Foi precisamente para testemunhar este carácter quase religioso da Porsche que estive, a convite da marca alemã, no primeiro Iberian Porsche Meeting, juntando-me a uma caravana de mais de três centenas de modelos desportivos com um emblema com o segundo cavalinho mais famoso da história do automóvel.

Passe a ironia, nada como uma breve explicação wikipédica sobre a heráldica do símbolo da Porsche. O cavalinho provém do brasão de armas da cidade de Estugarda, berço da marca e o fundo é a reprodução do brasão da antiga República do Weimar. Quando se vai falar de religião é bom estar a par da iconografia. Um herege no meio dos crentes é coisa para não dar bom resultado, vamos ver…

Café com Mark Webber e o Sr. 911

“Este deve ser o maior engarrafamento de Porsches da história”. No seu australiano fluente, a que não será alheio o facto de ser australiano, Mark Webber, definia da forma mais gráfica possível a verdadeira “nuvem” de Porsches que se abateram sobre Cascais, numa normalmente pacata manhã de sábado.

Webber foi um dos convidados de honra do Iberian Porsche Meeting. Ex-piloto de F1, onde foi sombra, ou pior, ficou na sombra de Vettel durante os anos de ouro da Red Bull de Adrian Newey, Webber foi um dos pilotos da equipa Porsche no Mundial de Resistência, tendo depois da sua reforma, passado ao jubilável estatuto de embaixador da marca.

Ler + Mark Webber no Iberian Porsche Meeting

Ainda é cedo e aterrou em Lisboa há pouco mais de uma hora, mas não se furta às questões colocadas pelos jornalistas numa breve sessão com a imprensa: “Nunca corri em Portugal, mas já estive em sessões de treinos no Estoril e em Portimão, a desenvolver o Porsche 919 Hybrid”.

Webber fala ainda apaixonadamente da última vitória da marca nas 24 Horas de Le Mans, com uma recuperação quase milagrosa: “Numa corrida de Endurance nunca está nada ganho, nem nunca nada está perdido. Essa é a grande lição dos últimos dois anos, tanto para a Porsche como para a Toyota, que já encontrou a velocidade certa, mas não a fiabilidade.”

Sobre o futuro da marca na competição automóvel, com rumores sobre o eventual abandono do Mundial de Resistência e das 24 Horas de Le Mans no final da época, Webber furtou-se às questões com política cortesia: “Penso que a Porsche encara a presença em qualquer disciplina do desporto automóvel como um desafio tecnológico e não como uma mera operação de marketing. Onde houver desafios tecnológicos que permitam aos engenheiros da marca irem mais longe é aí onde a Porsche estará”. Apetecia-me perguntar, então porque é que não estão na F1, mas “c`est pas le moment”.

Depois de ganhar tudo o que havia para ganhar no Mundial de Resistência, talvez a Fórmula E (monolugares elétricos), seja o próximo desafio, até porque a marca alemã não esconde que pretende lançar-se em força na oferta de modelos híbridos e elétricos nos próximos anos.

O Porsche Mission E é a face mais visível dessa estratégia. Curiosamente, o fundador da marca, Ferdinand Porsche foi o inventor do primeiro automóvel híbrido do mundo, o Lohner-Porsche “Semper Vivus”, que era essencialmente um carro elétrico que usava um motor de combustão interna como gerador. O carro foi apresentado em 1899 e, para todos os efeitos, foi o primeiro a ostentar o nome Porsche, mas isso é história do Antigo Testamento, voltemos a Cascais.

Ao lado da antiga “estrela” de Fórmula 1 australiana está um senhor alemão com um ar tímido e discreto. Nuno Costa, responsável de marketing e comunicação da marca em Portugal e um dos impulsionadores deste evento, tenta desviar as atenções e perguntas dos jornalistas para este segundo convidado do Iberian Porsche Meeting: “Este senhor é o August Achletiner, diretor de Produto Porsche, internamente chamamos-lhe o Sr. 911”. Melhor cartão de visita não podia ser posto na mesa para aguçar a curiosidade de jornalistas mais desprevenidos, como eu. Este franzino e tímido engenheiro alemão que arranha um inglês de caixa manual meio encravada é tão somente o chefe de desenvolvimento do 911, o cálice sagrado da marca.

Deve ter dos empregos mais terríveis do mundo — aperfeiçoar a perfeição: “Temos de pensar estrategicamente. Sabemos quando é que o próximo modelo vai ser lançado e também o modelo a seguir. Temos de saber o que fazer no novo 911 para o tornar mais atrativo e dar aos clientes algo realmente novo, mas não temos de gastar todos os recursos e trunfos de uma vez. Isso significa que há sempre uma ideia nova ao virar da esquina.”

Um dos lemas do fundador da marca, Ferdinand Porsche era “Mudar é fácil, difícil é melhorar”.

É esta a receita intemporal do 911 que mais de 50 anos depois do seu lançamento, conserva a sua inconfundível silhueta: “É sempre possível melhorar. O 911 é o símbolo da constante busca da perfeição da Porsche. Cada geração, cada novo modelo procura um avanço, um caminho, uma ideia, um detalhe que faça a diferença. É esse o nosso trabalho, é esse o meu trabalho há 20 anos.”

Aqui já entramos no domínio da ourivesaria, mas ainda há tempo para um pequeno toque de humor germânico: “Motores de quatro cilindros no 911? Não enquanto for eu a mandar”. Os puristas da Porsche que rasgaram as vestes algumas vezes nos últimos anos, podem por enquanto ficar tranquilos, o 911 é sagrado e o sagrado não se profana, pelo menos para já. Afinal trata-se do modelo central na história da Porsche e o seu evangelho mais vendido, desde que foi apresentado no Salão de Frankfurt de 1963, como sucessor do original 356.

O responsável pelo design e conceito — um desportivo 2+2 com motor traseiro boxer, refrigerado a ar — foi “Ferry” Porsche, filho do fundador da marca, Ferdinand Porsche. O 911 é o modelo em produção contínua mais antigo do mundo e o epítome do automóvel desportivo.

A Cidadela da Porsche

Lá fora, ao longo da muralha da Cidadela de Cascais, é possível visitar um autêntico museu a céu aberto da história do 911. Dos mais antigos aos contemporâneos de todas as espécies e feitios. O eterno nine eleven é intemporal e confunde-se com a imagem da própria marca.

Contando com a presença de seis gerações de desportivos (356, 911, 912, 914, Transaxle, Boxster/Cayan, Panamera e Supercars), e cerca de 700 participantes este é o maior evento de sempre da marca na Península Ibérica. Pedro Marreiros, diretor-geral da Prime Promotions, empresa responsável pela organização, explica o desafio: “Quisemos incluir toda a família de desportivos Porsche num cartaz de atividades mais vasto e dinâmico. Depois da concentração e desfile aqui em Cascais, vamos percorrer mais de 400 quilómetros, até Évora, onde se realiza uma Power Stage e depois a Portimão. O Autódromo do Algarve será então palco de diversas atividades em pista, desde um Slalom, até quatro corridas.”

Mark Webber prova um pastelinho de nata para ganhar forças para a sessão de selfies matinais, já que os participantes não querem desperdiçar a oportunidade de ter no seu facebook uma foto com um piloto de Fórmula 1 e da Porsche. Não é todos os dias. Fico a pensar que os pilotos famosos já devem ter saudades da era dos autógrafos, sempre eram menos para dar do que as selfies de sorriso permanente que têm de tirar.

Vou andando para a parada Porsche para me encontrar com o Adelino Dinis, do Jornal dos Clássicos. É um old chap, trabalhei com ele no velhinho Jornal dos Clássicos há 20 anos e é provavelmente o jornalista que mais sabe sobre automóveis clássicos em Portugal. Uma autêntica enciclopédia automóvel, mas sem aquele irritante autismo snob das enciclopédias falantes.

Com o Adelino é sempre possível conversar e aprender. É sempre bom para um “iniciado” no culto Porsche, como eu, estar acompanhado por alguém que conhece os segredos desta religião numa missa estradal deste tipo. Em troca do seu saber teológico, vou de Boxster S de 2017 escoltá-lo, ele que leva um belíssimo 911 de 1966, um dos modelos mais antigos presente. O verde escuro é uma cor rigorosamente elegante neste 911 de coleção.

O Adelino aponta-me para dois 911 clássicoS estacionados ao lado do verdinho—Cada um destes vale para aí um milhão de euros

Já sabia que o investimento em Porsches clássicos (dependendo do modelo) é hoje em dia um negócio altamente especulativo, já que valorizam mais do que obras de arte dos grandes mestres. Entre ter um Francis Bacon na parede da sala ou um Porsche 911 clássico na garagem, acho que preferia … ter os dois, com a vantagem que o Porsche dá para levar a passear.

Só para termos uma ordem de grandeza, o Porsche de estrada leiloado pelo valor mais alto foi um 550 Spyder que pertenceu ao humorista americano Jerry Seinfeld que foi licitado por $5 335 000 (dólares) pela Gooding&Company em Amelia Island, Florida.

Neste Iberian Porsche Meeting não está nenhum modelo de igual valor, mas não faltam preciosidades e raridades. “Temos modelos raros como o 918 Spyder ou o GT3 RS e esta adesão é a prova que a paixão pela marca continua bem viva na Península Ibérica e em perfeita sintonia com contínuo crescimento dos nossos resultados.”, explica Nuno Costa. Nunca se venderam tantos Porsche em Portugal e a marca caminha para bater novamente o seu recorde de vendas no nosso país. Se somarmos o valor de cada um dos carros inscritos no Iberian Porsche Meeting, quase daria para contratar o Cristiano Ronaldo, afinal são 356 inscritos, que vão partir do centro de Cascais até Évora, e depois rumo a Sul, a Portimão.

Eu levo um deles — o Porsche 718 Boxster S de 350 cavalitos — o Adelino leva o 911 de 1966. Ambos emprestados, que isto do jornalismo só dá para ser artista convidado num encontro Porsche.

356, número mágico

A organização do Iberian Porsche Meeting, com a chancela da Prime Promotions, do piloto Pedro Marreiros, em conjunto com a Porsche Ibérica, conseguiram que nada menos que 356 modelos da Porsche respondessem à chamada. Esse era o número desejado, esse foi o número alcançado. Nem todos seguiram estrada fora, limitando-se a participar no desfile em Cascais.

Ainda assim, quem no sábado de manhã rumasse a sul ficaria impressionado por ver passar por si mais 212 Porsche que cumpriram integralmente o programa.

O primeiro desafio foi uma etapa de regularidade com road book, cumprido entre Lisboa e Évora. Nada de muito exigente do ponto de vista da navegação e oportunidade de ir pelo caminho recordar um pouco do tal número mítico para a Porsche — o 356.

O número assinala aquele que foi o 356º projeto de design do escritório Porsche. No curriculo da empresa sedeada em Estugarda estavam desde carros de competição (os lendários Auto Union de Nuvolari e Caracciola), a tanques de guerra, passando pelo projeto do Volkswagen, encomendado por Hitler, para motorizar a Alemanha, sob o lema “um carro para cada alemão”. Depois da II Guerra Mundial, Ferdinand Porsche foi detido em conjunto com o seu advogado e financiador Anton Piech e o seu filho “Ferry” Porsche, por causa do seu envolvimento no esforço de guerra nazi.

Ferry acabou por ser libertado seis meses depois e conseguiu um contrato com Piero Dusio para desenvolver um carro de Grande Prémio — o Type 360 Cisitalia, que usava um revolucionário sistema de tração integral desenvolvido por Ferdinand Porsche. Foi com o dinheiro ganho com essa associação que “Ferry” conseguiu libertar o seu pai do cácere em Dijon para iniciarem então o projeto do 356, para o qual convidaram o reputado designer austríaco Erwin Komenda.

O primeiro protótipo recorria a inúmeras peças do VW e curiosamente montava motor central, para melhor distribuição do peso. Só mais tarde, nas versões de produção montadas numa velha serração em Gmund, Áustria, o 356 passaria a adoptar a sua lendária configuração — motor traseiro arrefecido a ar, tração traseira, dois lugares e baixo peso, o que lhe dava características únicas para desempenho desportivo. A produção começou em 1948 em Gmund e foi deslocada para Zuffenhausen, na Alemanha, dois anos mais tarde.

O sucesso deste modelo, produzido em diversas versões e evoluções, que foram abandonando as peças VW para incorporar peças da própria Porsche, foi determinante para dar à empresa saúde financeira para se abalançar para novos projetos. Até 1965 foram produzidos 76 mil exemplares do Porsche 356 e calcula-se que atualmente cerca de metade deles ainda circulem e façam as delícias dos seus proprietários.

Antes de passar o testemunho ao Porsche 911, cuja silhueta é inspirada neste seu antecessor histórico, o Porsche 356 deu ainda “berço” ao mítico Porsche 550 Spyder, um modelo orientado para a competição, que valeu inúmeros sucessos desportivos à marca ainda na década de 50 e que ficaria imortalizado por ser o carro ao volante do qual James Dean perdeu a vida no dia 30 de setembro de 1955, quando se dirigia a uma corrida em Salinas Road e o seu carro embateu no Ford Custom de Donald Turnupseed.

James Dean chamava ao seu carro “Little Bastard” e a trágica história é uma lenda carregada de superstição sobre a maldição do carro de Dean, que deu matéria para livros e ensaios nos EUA. Isto também faz parte do culto.

Porsche, uma religião aberta

Regressemos do Canal História ao Iberian Porsche Meeting. Estamos a aterrar no Aeródromo de Évora. O 911 clássico fez a auto-estrada a um ritmo pós-moderno e aguentou a pedalada com a elegância de um velho atleta.

Ao almoço, servido num hangar do Aeródromo, a conversa era de esperar. Quando se juntam mais de duas centenas de “Porschistas” ao almoço, só há duas coisas para falar — do calor e de Porsches. Para mim, este é sempre o momento mais difícil num encontro “religioso”, é quando a conversa começa a ficar criptada em números. As várias gerações do Porsche 911 têm números de série e de anos que me transcendem por completo.

Quando a conversa sobre Porsches resvala para os números, sinto-me como o Tom Cruise a entrar naquela festarola da seita “hedonista” no filme “De olhos bem fechados” de Kubrick. Tenho a sensação que vou ser desmascarado e que vão perceber rapidamente que não faço parte da seita, que sou um “penetra”. Felizmente tenho o Adelino comigo e por isso fico bem caladinho a atacar à colher uma sericaia e deixo-lhe a ele as desepesas da conversa.

Mas é interessante perceber que a maioria dos proprietários de Porsche são verdadeiros especialistas na marca e orgulhosos dos seus carros. Falam de jantes Fuchs como os católicos falam do Santo Lenho e de peças de mecânica como se fossem os salmos sagrados.

Ao olhar à volta pelo hangar também percebo que esta é uma religião aberta a todos. Um rápido e pouco científico relance pela sala permite-me ver que há aqui, entre os crentes, uma boa representatividade socio-demográfica e também gente vinda de todo o lado. Muito sotaque do norte, espanhóis e até um neozelandês.

A maioria dos proprietários de Porsche são verdadeiros especialistas na marca. Falam de jantes Fuchs como os católicos falam do Santo Lenho e de amortecedores como se fossem os salmos sagrados

Ter um Porsche pode sugerir um pequeno gosto pela ostentação, sobretudo para quem, como eu, não tem um, mas parece-me que se trata mais de uma aspiração concretizada, de uma verdadeira paixão do que mera e frívola vaidade. Há os mais aristocráticos que nasceram em “berço Porsche” e depois há cristãos novos, aqueles que sempre sonharam ter um Porsche e graças ao seu trabalho e esforço conseguiram cumprir o seu sonho.

No domínio da ostentação automóvel, a Porsche ocupa um lugar muito especial, porque oferece algo que muitas das outras marcas de luxo nem sempre conseguem — a experiência de condução. Conduzir um Porsche é o mais próximo de uma experiência religiosa que estive desde o 13 de maio. É isso que vamos ver depois de almoço, no Power Stage nas ruas de Évora.

Alentejo sem lei

A organização não quis fazer deste Iberian Porsche Meeting apenas uma passeata ao alentejo. Os clientes da marca gostam de ser colocados à prova e demonstrar a sua perícia e a eficácia dos seus carros. Para isso nada como uma Street Power Stage desenhada numa das artérias da cidade de Évora, com rotundas, chicanes, muito público e um cronómetro a contar o tempo. Mais de duas centenas de Porsche resfolgam com o calor alentejano, aguardando impacientes a sua vez de mostrarem o que valem. O primeiro percalço com o clássico 911 do Jornal dos Clássicos — não pega. É natural, sem combustível, nenhum Porsche se move, pelo menos para já.

A idade tem destas coisas, o indicador do depósito dava margem de 1/4, mas a verdade é que nem uma gota. A organização providencia um jerrican salvador e como Lázaro, o boxer do 911 de 1966 lá recupera a voz. O Adelino entra em estilo na prova, uma atravessadela na rotunda grande arranca aplausos: os clássicos merecem sempre venerável respeito e simpatia e ver um carro com 51 anos a “queimar pneus” dá sempre direito a bruá na bancada.

A seguir é a minha vez. Desligo a eletrónica toda e tento achar a melhor forma de atacar a trajetória das rotundas. O arranque cola-me as costas ao banco e depois é só ter cuidado com o acelerador e a direção que é demasiado direta para estes números. A primeira rotunda sai-me bem, com uma atravessadela à saída para as palminhas da plateia.

Entro rapidamente e galvanizado na primeira chicane e depois não percebo para que lado é para fazer a rotunda seguinte. Travo forte e aos aplausos sucede-se um silêncio e um ou outro assobio. Ainda bem, já vinha demasiado galvanizado com a resposta do Boxster e os aplausos do público. Nada como esfriar as emoções. Quero entregar o carro exatamente como o recebi e não tenho vocação artística para deixar uma nova instalação plantada numa das rotundas de Évora.

O resto faço rápido e certinho, sem atravessadelas e sem amolgadelas. Mas não deixa de ser uma experiência muito divertida fazer uma Power Stage citadina como fosse um piloto à séria. Acho que conduzir um Porsche desperta em nós instintos de condução que nem sequer sabíamos ter e isso tem o seu lado empolgante, mas também pode ser arriscado para quem não liga o alarme de auto-preservação no cérebro ou o controlo de tração no painel do carro.

No final da Power Stage despeço-me do Adelino e do seu belo “verdinho” 911. Eles vão regressar a Lisboa, pela estada nacional ao som dos Beatles eu sigo a caravana para sul no Boxster S. O calor alentejano começa a abrandar. Tiro a capota e escolho “Rolling Stones” para rolar para sul ao som de “Time is on my side”.

A etapa pelo longo alentejo, de Évora ao autódromo de Portimão, num final de tarde de verão é sem dúvida o melhor dos cenários para desfrutar da condução de um Porsche tendo o céu azul de julho como capota.

À noite, no jantar de entrega de prémios, a Porsche tem reservada nova surpresa para os participantes. A exclusiva apresentação do novo Porsche GT2 RS, cuja estreia mundial tinha ocorrida apenas uma semana antes no Festival de Goodwood: “Neste momento existem apenas duas unidades deste carro e para nós é uma honra a casa-mãe ter depositado em nós a confiança para ter aqui este carro.”, explicou Nuno Costa. E, de facto, não se trata de um carro qualquer. Vai ser o sumo-sacerdote da “Ordem 911”, o seu modelo mais exclusivo e potente com uma potência anunciada de 700 Cv e um preço que deverá rondar os 360 mil euros.

 

Um dia nas corridas

A mística da Porsche deve muito à competição automóvel, da mesma forma que a competição automóvel deve muito à Porsche. O fundador da marca, Ferdinand Porsche foi ele próprio piloto amador e desenvolveu ao longo da sua carreira uma série de carros de competição, como os lendários Auto Union.

O primeiro Porsche, o 356, foi usado em provas de estrada por pilotos do mundo inteiro. Mais tarde, as vitórias na Carrera Panamericana e na Targa Fiorio criaram uma boa reputação dos Porsche, mas seria a aposta em Le Mans que daria à marca ensejo para escrever a sua mais gloriosa epopeia no desporto automóvel. Uma epopeia que se inicia em 1970 com o mítico 917, considerado uma das mais perfeitas máquinas de competição de todos os tempos. A Porsche venceu as edições de 1970 e 1971 das 24 Horas de Le Mans. Depois disso seguriam-se mais 15 vitórias como equipa oficial ou como fornecedor de motores, com destaque para a era dourada dos anos 80 do Porsche 956 e os tempos modernos, onde a marca alemã domina desde 2015 com o modelo híbrido 919.

Mas não foi só Le Mans e as corridas de Sport-Protótipos a consagrarem a Porsche. Como fornecedor de motores da equipa McLaren, a Porsche destacou-se no Mundial de F1 na década de 80 e o seu grande ícone, o Porsche 911 nas suas várias gerações e declinações é o carro de competição mais bem sucedido da história, com vitórias em provas de Sport, ralis e até em dois Dakar com René Metge em 1984 e 1986.

Em Portugal, a “bomba verde” de Américo Nunes faz parte da iconografia dos ralis nacionais, era um carro que arrasava toda a concorrência, permitindo que as más línguas dissessem que era o carro, não o piloto que ganhavam os ralis. A propósito da alegada menor rapidez de Américo Nunes, lembro-me de uma velha história do navegador Jorge Cirne, que fazia dupla num rali da Madeira com aquele piloto.

Cirne tinha tido uma noite mais “animada” nas vésperas da prova e aproveitava todas as paragens para dormir uma sestinha. Já um pouco irritado com aquela sonolência do seu navegador, Américo Nunes repetia para os mecânicos: “Este gajo passa o dia a dormir”. Não ficou sem resposta, Cirne, levanta o sobrolho e responde: “Isso é porque a tua condução me dá sono”. A “bomba verde” não está presente neste Iberian Porsche Meeting, mas há um clássico de ralis pintado com as cores da Choice que dá espetáculo no slalom do Autódromo Internacional do Algarve.

É aqui na reta da meta que começam as hostilidades do segundo dia do Iberian Porsche Meeting. Que melhor palco para uma marca com o ADN da competição gravado em cada palmo de carro que produz do que o Autódromo Internacional do Algarve? Aqui os participantes vão poder explorar livremente e em segurança todas as qualidades dinâmicas dos seus carros e descobrir, talvez, que os limites do carro ficam uns furos acima dos seus.

Que melhor palco para uma marca com o ADN da competição gravado em cada palmo de carro que produz do que o Autódromo Internacional do Algarve?

Eu cá não quero perder pitada e faço também o slalom com o 718 Boxster S, um carro ideal para isto, ágil, leve e mais compacto, é perfeito para os piões em torno dos pinos. E entrar na reta da meta do AIA ao volante de um Porsche descapotável é mesmo uma experiência única e inesquecível, a lembrar-me o Bjorn Waldegard a dar espetáculo no slalom do Autódromo do Estoril no final do Rali Vinho do Porto.

Da parte da tarde segue-se competição mais a sério com a corrida do Clube Porsche e uma prova reservada a carros de competição.

Um dia nas corridas em ambiente de festa que termina com uma foto de família na reta da meta, com todos os “Porschistas” e os seus carros felizes depois de celebrarem esta autêntica eucaristia da religião Porsche, conforme bem sintetiza Tomás Villén, diretor-geral da Porsche Ibérica: “Quando estou em Portugal tenho uma certeza, isto é pura paixão. Tivemos 356 inscritos, mas podiam ter sido 1000. E apenas não o foram por motivos relacionados com a logística do próprio evento. Com o tempo, os nossos clientes tornaram-se nossos amigos, com quem temos uma relação constante, ajundando-nos a melhorar os nossos automóveis. Adicionalmente, ter podido contar com a prsença de um campeão com o Mark Webber, de um fora de série como o Rober Gomez (engenheiro da equipa oficial Porsche em Le Mans) e do ‘Senhor 911’, August Achleitner, é como celebrar a Páscoa, o Natal e a passagem de ano, tudo ao mesmo tempo.” Estou quase convertido, entrego o Boxster S ao Nuno Costa, que me desenrasca outro carro para regressar a Lisboa. Desta vez um “modesto” 911 Targa 4 GTS, que é provavelmente o meu Porsche preferido da gama atual.

Despeço-me dos fiéis e vou então à procura de um sentido mais religioso desta fé — o excitante prazer de condução que um 911 oferece. É um prazer egoísta e solitário, que se deve fazer sozinho, atravessando a Serra de Monchique com incríveis sequências de curvas a apelar a todos os sentidos e ao poder do motor de 450 Cv, à aderência quase atómica proporcionada pela tração integral e sobretudo à precisão cirurgica de tudo quanto o carro faz; da direção à travagem, da suspensão à caixa automática.

Encher as encostas da serra de Monchique com aquele grito surdo do motor em aceleração ou a “embrulhar” nas desacelerações é uma experiência sensorial.

Um carro que se funde com o condutor e que mostra que a assinatura do fundador da marca está presente em todos os modelos. Um Porsche é um “driver`s car” é um prazer solitário que faz da paixão do homem pela velocidade uma experiência quase religiosa, que se pode desfrutar com os outros fiéis, num encontro como este, ou sozinho numa estrada de serra perdida no interior de Portugal ou pela costa alentejana em ritmo de passeio a desfrutar as carícias de um sol de fim de tarde e a beleza cénica da estrada.

Porsche, a religião certa para um bon vivant. Que o diga o Steve Mc`Queen.

Esta reportagem teve o apoio do Centro Porsche de Lisboa

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