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Ao volante dos Renault 4 clássicos: Muita simplicidade e encanto intemporal

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Poucos serão os jornalistas em atividade que poderão dizer que estiveram na apresentação internacional do Renault 4, em 1961. Porém, se o tempo não anda para trás, não há impeditivos para que os eventos não se repitam, de certa forma, sobretudo quando se atingem marcos históricos, como é o caso do 60º aniversário deste ícone da indústria automóvel.

O Renault 4 (sobretudo na configuração 4L) não é apenas mais um modelo na história da marca francesa. Assume, pelo contrário, um estatuto emblemático pelo facto de ser, ainda hoje, o automóvel mais vendido pela companhia do losango, com mais de oito milhões de unidades comercializadas entre 1961 e 1992. Algumas ainda hoje se encontram em circulação, mantidas e cuidadas pelos seus entusiastas e não só, já que muitas são ainda utilizadas como meios diários de deslocação.

A história do Renault 4 é mais ou menos conhecida, tendo nascido do desafio do Presidente da Renault da década de 1950, Pierre Dreyfus, para provocar uma disrupção nas normas da indústria automóvel. O Projeto 112 deu os seus primeiros passos em 1956 e, em 1961, foi apresentado oficialmente como Renault 4, embora seja comummente denominado de 4L, já que foi o modelo mais vendido da gama.

Apontado como um automóvel capaz de ser utilizado em tudo, desde férias em família a trabalho, o Renault 4 tornou-se num modelo intemporal que extravasa a simples duração de três décadas de produção, valendo-se da elevada funcionalidade, da excelente robustez e da fiabilidade, naquelas que foram – e continuam a ser – imagens de marca. Aliás, antes de nos fazermos à estrada em unidades fornecidas pela Renault Classic, gracejámos com um responsável da Renault sobre a possibilidade de ficarmos parados na estrada por avaria, ao que a resposta foi ‘não, não. Eles não avariam!”.

Exemplares cuidados

No evento de celebração dos 60 anos da Renault 4, fomos convidados a conduzir alguns dos exemplares pertencentes à extensa coleção de automóveis da Renault Classic, divisão que se dedica a cuidar de um acervo histórico de mais de 850 exemplares que contam o passado da marca, desde os seus primórdios aos dias de hoje. Sem museu, porque os responsáveis da marca salientam que estes modelos são para conduzir e não para estarem parados. Uma abordagem diferente do que é a memória coletiva do automóvel.

Todos os exemplares são cuidados para se manterem em funções, portanto, pelo que não causou surpresa a disponibilidade de alguns exemplares em excelente estado para aventuras de cerca de 50 quilómetros. Mas, acima de tudo, entrar nestes automóveis é fazer uma viagem no tempo imediata a outra era da indústria automóvel, quando a mecânica era mais simples e a digitalização era inexistente. Aqui não há espaço para sistemas de assistência à condução, sensores de estacionamento ou direção assistida, sequer. Tudo é mais arcaico, mas tem de ser visto à luz da sua época e não da atualidade.

O primeiro exemplar que pudemos ensaiar foi um Renault 4L GTL em cor azul, uma unidade de 1980, portando das mais recentes, ainda assim sem grandes mordomias. Equipado com um motor 1.1 atmosférico de 34 CV de potência, este 4L atingia uma velocidade máxima de 120 km/h, o que se pode admitir que é manifestamente pouco para os dias de hoje, mas ajuda a perceber um pouco mais como a evolução foi feita de forma consistente e eficaz. A posição de condução é singular, uma vez que não existe ajuste do banco, tendo o volante de grandes diâmetro um aro particularmente fino. O espaço é limitado, como seria de esperar quando visto de fora, pelo menos para os cânones de hoje, com portas finas e um mero cinto de segurança como único elemento de segurança. Outros tempos, garantidamente.

Mais estranha ainda a posição da alavanca da caixa manual de quatro velocidades: no tablier, ao lado do volante, sendo acionada de forma vertical para a frente e para trás. Depois da habituação necessária, surpreende pela forma escorreita com que engrena cada mudança. A direção carece de assistência e, como tal, em manobras exige um esforço mais veemente, mas em andamento revela uma agradável naturalidade.

Surpreende igualmente a energia do motor, sobretudo a baixos e médios regimes e em velocidades de cidade, permitindo ao 4L ganhar ânimo de forma suficiente para não empatar o trânsito dos vorazes condutores franceses empenhados na sua tarefa de chegarem ao destino do seu dia-a-dia. Já nós, confessamos, fomos só viajar ao passado.

Mas, por outro lado, apenas em 50 quilómetros, percebemos que muita gente tem a sua história com a 4L. Houve quem nos estendesse o polegar, quem olhasse e risse, condutores que nos cederam a passagem quando não tinham obrigação e outros que, podendo, não quiseram ultrapassar. Talvez saudosismo, talvez algum agente da autoridade a observar como durante alguns quilómetros não fizemos a indicação de mudança de direção, uma vez que a haste para acionar o sinal está do lado direito do volante e não do esquerdo… embora lá estivesse uma haste de aspeto frágil que acionámos sempre como se fosse a do ‘pisca’.

Muita gente não escondeu a sua apreciação pela passagem das Renault 4 clássicas, deixando à vista que existe uma ligação muito forte com este modelo.

Já ao passar por um local de obras, nem o operador de uma escavadora na berma da estrada hesitou em lançar uma buzinadelas à passagem da 4L GTL azul celeste. Mais tarde, com a segunda unidade ensaiada, uma 4 Super Fasa ainda mais antiga, houve até senhoras que acenaram à nossa passagem…

Regressando à viagem, a condução é fluida o suficiente para nos deixarmos levar, não havendo propriamente o risco de sermos apanhados em infração de velocidade, até porque o velocímetro demonstrava uma estranha discrepância entre a velocidade lida e a real, medida pelo GPS da aplicação que a organização nos proporcionou para seguirmos a rota do programa. Bem menos interessante é a travagem. Pisando o pedal do travão, sobretudo nas descidas, a velocidade não decai assim tanto, sendo necessário pressionar com mais força para que, efetivamente, trave.

A suspensão, macia e totalmente orientada para o conforto, inclina-se nas curvas e dá a perceber que a ideia é – unicamente – ser pacato nas suas viagens do dia-a-dia. Insonorização também é coisa praticamente inexistente, ouvindo-se praticamente todos os ruídos no interior – os da mecânica e os do ambiente em redor.

Entra em cena o espanhol

Terminado o almoço, o regresso ao centro da Renault Classic, em Flins, é feito com outro dos exemplares disponíveis, neste caso um 4 Super FASA de origem espanhola. Numa época em que a produção automóvel estava bem menos centralizada do que nos dias de hoje – basta pensar que este Renault 4 foi produzido em 28 países, incluindo Portugal –, o Super FASA foi produzido pela FASA em Espanha a partir de 1968, sendo a versão topo de gama para o país vizinho. Dispõe de algumas especificidades, como o motor ‘Cléon-fonte’ de 852 cc de 32 CV, grelha alargada, indicadores de mudança de direção específicos, farolins cromados e para-choques também cromados.

No interior, dois bancos específicos, painéis das portas com apoio de braços e volante com centro em bege, a mesma cor do painel de instrumentos. Contava ainda com insígnias ‘Super’ na lateral dianteira e um logótipo ‘FASA España’ atrás.

Mais antigo do que o 4 GTL, este modelo oferece outra surpresa no capítulo da segurança: um cinto semelhante ao de um banco de avião, apertado sensivelmente a meio do peito e ajustado puxando uma das extremidades. Depois, a caixa de velocidades, também de quatro velocidades e também situada no tablier, tem uma outra peculiaridade: um padrão em que a primeira relação é engrenada para trás, no sentido do condutor. Ou seja, um ‘h’ invertido, o que adiciona um outro patamar de complexidade para quem não está habituado a este tradicionalismo. Houve drama e houve horror. Mas rapidamente se atinou com a exigência desta caixa tão característica.

O motor também é enérgico, valendo-se do baixo peso total, uma vez que acusa apenas 635 kg na balança, saindo-se bem em arranques, mas não se passou dos 70 km/h porque… também não houve estradas para isso.

A velocidade real lida por GPS é também pouco condizente com a que é apresentada no velocímetro, havendo uma discrepância relevante.

A exemplo do 4 GTL que ensaiámos em primeiro lugar, também o rolamento da carroçaria é evidente, primando o conforto, enquanto o ruído é outro acompanhante comum das viagens.

Prova de evolução

A experiência de condução dos Renault 4 históricos serve, sobretudo, para perceber como evoluiu a tecnologia e a eficácia da indústria automóvel. Estes modelos acabam por ter uma presença que exige um pouco mais de atenção na sua condução – sair de um cruzamento, por exemplo, requer que se avalie bem a distância para qualquer veículo que se aproxime de outro lado – mas são testemunhos da beleza da condução que hoje se vai perdendo, mas que perdura na memória de muitos.

Estas unidades, entregues sãs e salvas ao núcleo da Renault Classic após as suas viagens, demonstram também o cuidado que os responsáveis das marcas, neste caso da francesa, depositam no tratamento do seu passado. As saudações que recebemos no percurso provam que a 4L está viva, ficando agora à espera da nova etapa da sua vida, que já não terá o som e o cheiro da combustão, mas sim a vivacidade da eletrificação.

Fotos: DPPI/Renault