A transformação da indústria automóvel é muito mais profunda do que apenas a da transição das motorizações a combustão para as elétricas. Tirando partido das potencialidades da digitalização e da conectividade, os construtores de automóveis adaptam os seus modelos de negócio ao universo das vendas online mas, neste cenário, o papel dos concessionários manter-se-á fundamental para gerar uma relação de contacto com os clientes.

É uma nova era em absoluto para o automóvel, mas que vai além da simples transformação dos motores de combustão para motores elétricos. As vendas online serão uma realidade, acelerada em primeiro lugar pelo surgimento de outros construtores que se tornaram disruptivos, mas também pela pandemia de Covid-19, que obrigou a um maior ‘isolamento’ digital.

Massimo Senatore, Diretor-Geral da BMW Portugal, Ricardo Lopes, Diretor da Renault Portugal, Pedro Saraiva, CEO da Kinto Mobility Portugal, e Paulo Pragana, Diretor de Desenvolvimento de Negócio e da Rede da Volvo, abordaram a transição cada vez mais evidente para os elétricos, mas concedem que, para atrair cada vez mais pessoas para o mundo da eletrificação, existem ainda alguns desafios a superar, sobretudo em termos de rede de carregamento, que consideram insuficiente na atualidade.

Do lado da Renault, Ricardo Lopes considera que já foi feito um grande caminho pelos construtores, sobretudo no caso da marca francesa, mas que a velocidade de transição poderá ser dificultada por fatores como o preço e a ausência de uma rede de carregamento dinâmica e funcional.

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“Na Renault, há mais de dez anos que estabelecemos a visão para a transição elétrica. Mas é interessante olhar para trás e ver aquilo que imaginávamos aquilo que iam ser os dez anos seguintes. Temos um desafio – marcas e players do mercado – para desfazer alguns mitos que ainda existem”, começa por dizer o responsável da Renault, reconhecendo que “um elétrico hoje ainda não é opção para todos os clientes”.

“Os veículos elétricos começaram por ser opções para as empresas, como forma de comunicação, em que demonstravam a sua visão ‘eco-friendly’, mas isso mudou rapidamente. Fruto de um TCO que começa a ser bastante competitivo, e da vertente fiscal, que os favorece, começa a ser uma opção racional. Mesmo os clientes particulares, que antes não ponderavam um elétrico, agora começam a ponderá-lo”, afirma ainda. Por outro lado, assevera que o principal entrave à adoção dos elétricos já não é a autonomia, mas sim a rede de carregamento, que considera insuficiente.

A mesma ideia é partilhada por Paulo Pragana, da Volvo, para quem a eletrificação apenas poderá acelerar com o crescimento da rede de carregamento pelo país. “Não nos podemos esquecer que temos um ‘stock’ de parque circulante e esse é o grande problema. Com os incentivos que temos, se calhar nem numa geração ou duas chegamos ao objetivo do ‘Fit for 55’. Todas as marcas têm a sua estratégia e a Volvo tem uma muito clara”, refere, apontando os três pilares da estratégia da marca sueca.

“Temos um ecossistema de eletrificação dividido em três pilares: o residencial, para os clientes, o dos ‘retailers’, que precisam de soluções de carregamento, comunicação e de um técnico informático que coloque as wallboxes em comunicação e os serviços associados, como o pagamento e até fazer negócio, e depois a vertente pública, que é a que menos controlamos. E a nossa infraestrutura de carregamento é claramente insuficiente. A maioria dos carregadores (70%) está em três países – Países Baixos, França e Alemanha – e o resto espalhado pelos outros países da Europa. Qual é a grande preocupação dos clientes que compram um elétrico? É a ansiedade, já não é a autonomia, porque os carros já têm 400 ou 500 km de autonomia. A preocupação é a ansiedade de saberem onde é que carregam”, refere, dizendo que também têm de ser renovados em termos de capacidade de carregamento, uma vez que os postos públicos abaixo dos 22 kW, que são a larga maioria, devem ser atualizados.

O novo papel dos concessionários

Na renovação tecnológica proporcionada pela Internet, os quatro responsáveis das marcas concedem que os concessionários continuarão a ter um papel decisivo, mesmo que as suas funções possam ser diversificadas face ao modelo atual de venda e após-venda.

Para Massimo Senatore, da BMW, continuam a poder ter um papel de ligação com o cliente e, sobretudo, de permitir dar validade à filosofia da marca bávara. “O test-drive é muito importante. Para a BMW, que tem mais de 100 anos de existência, a vertente da condução é muito importante. É uma grande mais-valia, não é só um termo, mas uma verdade”, começa por dizer o responsável italiano, que olha para os concessionários como parceiros.

“É verdade que a digitalização e as vendas online são importantes, mas no futuro os nossos parceiros ficam como um pilar para o futuro. Ainda estamos a pensar como vai ser o futuro: vai ser físico, vai ser ‘figital’”, assegura, lembrando que “não se pode fazer um test-drive online”. Neste sentido, a BMW está até a desenvolver um novo projeto-piloto ‘Test and Drive’, no qual o cliente pode agendar online um test-drive em casa, apenas válido para os automóveis híbridos e elétricos. “A experimentação do carro vai reduzir de forma brutal o número de clientes que fica com dúvidas quanto aos elétricos”.

No mesmo sentido, Ricardo Lopes não vê a operação da Renault sem a rede de concessionários do grupo. “Não vamos fazer essa venda direta online ao cliente final. Naquela que é a nossa aprendizagem do que é a expectativa do cliente final, o test-drive é sempre fundamental para desmitificar algumas questões. Mesmo o cliente mais informado não abdica do seu contacto com o concessionário. Recorde-se que estamos a falar do segundo bem mais dispendioso que uma família pode adquirir e do envolvimento que isso significa”.

Embora o C40 Recharge da Volvo vá ser apenas possível de encomendar online, Paulo Pragana não antecipa também o fim dos concessionários, mesmo que antecipe mudanças fundamentais nas suas funções. “A Volvo vê esta questão como uma adaptação necessária. Olhamos para as necessidades hoje dos nossos clientes e temos de nos adaptar ao que querem. Estão mais sensíveis à digitalização, mesmo mais sensíveis à questão da posse. Nós, da forma tradicional como fazemos o negócio, que é um ótimo negócio, temos de nos adaptar para aquilo que são as vendas online. Ou ‘Site-to-Store’, em que começa no site mas acaba na concessão, um modelo intermédio. O que queremos e temos a ambição de concluir é a ideia de Global Online Sales, uma experiência totalmente online. Obviamente que é disruptivo. Isso não quer dizer que vamos deixar de contar com os nossos concessionários”.

Pedro Saraiva, CEO da Kinto Mobility Portugal (empresa que resulta da conversão da Finlog da área de gestão de frotas para uma companhia de mobilidade ligada à Toyota), também tem uma visão para os concessionários como “distribuidores de pontos de carregamento no futuro” ou como integrantes da área da mobilidade inteligente. “Por exemplo, em carsharing, distribuição de produtos de aluguer de curto prazo, tudo isso vai ser relevante . A noção de parceiro vai ser importante. (..) Os concessionários vão ser centros de mobilidade, não vão ser apenas centros de venda e após-venda”.

No sentido de fomentar uma mobilidade mais eficaz, o responsável da Kinto, é apologista de que se deverá reutilizar as viaturas. “Acreditamos que o futuro da utilização do automóvel não vai ter uma vida, mas duas ou eventualmente três, o que é ótimo na ótica da economia circular, com poupança de minério, poupança energética na produção do automóvel. Vejo muitas vantagens e o que estamos a fazer é acelerar esse efeito”.