‘Le Mans 66 – O Duelo’: Uma história americana

14/11/2019

Recriar grandes histórias automóveis no grande ecrã nunca foi tarefa fácil. Alguns realizadores conseguiram captar a energia da competição automóvel, mas o seu encanto nunca passou para lá dos entusiastas. Pense-se em filmes como ‘Grand Prix’ de 1966 ou ‘Le Mans’, de 1971, com Steve McQueen ao volante, e percebe-se que o seu apelo fica restrito aos muitos fanáticos do automobilismo. Este era o grande desafio de passar para o cinema a história de como a Ford bateu a Ferrari no seu próprio jogo, isto é, no grande palco das 24 Horas de Le Mans.

Perante esta constatação, o realizador James Mangold abraçou o desafio e tratou de adaptar uma história baseada no mundo automóvel à sétima arte de maneira a que se tornasse apelativa para uma audiência mais ampla do que apenas a dos entusiastas da competição automóvel.

Para tal, recorre a atores de primeira linha, como Matt Damon, Christian Bale, Joe Bernthal ou Remo Girone (o motivo vilão Tano Cariddi da série italiana ‘O Polvo’), para fazer uma história longe das pistas e traçada sobretudo pelas teias pessoais. Este é um dos truques para fazer deste Le Mans 66 uma película bastante agradável e interessante de seguir: os relacionamentos humanos (e hierárquicos) para estabelecer uma narrativa.

Naturalmente, ao fazê-lo, Mangold tomou a decisão de seguir por um caminho que poderá não agradar, pois, aos entusiastas da competição e aos sabedores da história de Ford contra a Ferrari. Há liberdades criativas que devem ser tidas em conta e que são usadas como forma de contar uma história. Ou seja, a História usada como meio para contar uma estória. Não fará diferença para a grande maioria, mas para outros serão evidentes essas mesmas liberdades.

Mas, já regressaremos a essas. Em primeiro lugar, os muitos pontos positivos desta trama que nos faz recuar até à década de 1960, quando a competição automóvel trazia consigo o espectro da morte para os pilotos em cada prova em que tomavam parte. Os atores têm uma prestação muito bem conseguida – Damon como Carrol Shelby, o homem visionário que ajudou a desenvolver os Ford GT40 de Le Mans, e Bale como Ken Miles, um veterano da Segunda Guerra Mundial que rumou aos Estados Unidos para uma carreira como piloto em provas secundárias até chamar a atenção dos grandes tubarões. Mesmo os papéis secundários são bem preenchidos, repletos de bons apontamentos, como o de Henry Ford II (Tracy Letts), cuja vontade de honrar o legado do seu avô e a afronta de Enzo Ferrari ‘atiram’ para o mundo das pistas.

Depois, toda a fotografia e construção cénica é exemplar, com as cenas de ação em pista a fazerem o espectador retroceder para uma era em que os pilotos estavam bem mais expostos ao perigo, mercê de carros ainda longe dos padrões de segurança atuais. O sucesso da sua composição leva-nos para o meio da pista, cheirando o combustível doutros tempos e a borracha queimada dos competidores em pista.

Mas ‘Le Mans 66’ não quer ser um filme de carros, fechado sobre si mesmo, enclausurado na mesma filosofia, por exemplo, do filme protagonizado por Steve McQueen na década de 1970. Tem uma história e uma vida própria. Para o bom e o menos bom.

Aqui, voltemos aos pontos que poderão ser apontados como mais polarizadores. Sendo contado pelo lado americano, isso não quer dizer que a descrição da Ford é benevolente. Aliás, trata de evidenciar a divisão entre os departamentos repletos de executivos na Ford Motor Company e o seu braço de competição, tratando mesmo de criar os seus antagonistas no seio da própria marca. Mas, ao mesmo tempo, também cria uma noção de exacerbação dos estereótipos italianos da desorganização e da quase comicidade situacionista, por exemplo durante a corrida final, a edição de 1966 das 24 Horas de Le Mans.

De resto, outra liberdade criativa reside na maneira como é retratada a negociação entre a Ford e a Ferrari, que é resumida a um dia – aparentemente – no filme, mas que foi um processo de quase um mês na realidade. O acordo, quase firmado, caiu nos instantes finais, a 20 de maio de 1963, quando Enzo Ferrari, o fogoso e impulsivo fundador da Ferrari, encontrou na proposta de acordo de compra uma cláusula que dava à Ford a possibilidade de gerir o departamento de competição da Scuderia Ferrari, com um orçamento bastante mais limitado, o que fez o Velho Comendador abandonar a sala depois de uma série de insultos que Franco Gozzi, secretário pessoal de Enzo Ferrari, também confirmou como dirigidos aos responsáveis da Ford. Nem a Fiat ‘correu’ a comprar a marca italiana no mesmo dia. Na verdade, o acordo entre Fiat e Ferrari apenas se firmou em 1969, deixando a Enzo Ferrari o comando das atividades desportivas.

No entanto, essa é a troca pelo potencial alargamento de espectadores. Um filme que traz Le Mans e a sua mitologia para mais perto de um público generalista e que é bem-sucedido neste seu objetivo. Os entusiastas mais empedernidos terão de se contentar com os documentários mais realistas sobre o tema, mas também poderão passar umas boas duas horas de diversão e descobrirem a história de Ken Miles.

O Motor24 esteve na antestreia deste filme a convite da Goodyear, marca que, de resto, está bastante ligada aos eventos nele descritos.