Peugeot 905: Um leão na resistência

10/04/2020

Petrolhead. Como definir o que é? Talvez: aquele que vibra e sonha com tudo (ou quase tudo, vamos ser francos) o que tem quatro rodas.
Tenho a certeza que se à maior parte dos que nos lêem fosse questionado como preencheria a sua garagem de sonho, só a partir das duas dezenas é que a enumeração de eleitos começaria a abrandar.

Mas ainda assim, há sempre aquela mão cheia de automóveis que, por alguma razão, nos tocam mais. Variam, conforme gerações, vivências, experiências.

Hoje escrevo-vos sobre um dos meus. Como me marcou tanto? Um poster. Tão simples mas ao mesmo tempo tão impactante. Recuemos até 1993. Sem internet para alimentar imaginações, trabalhava com o que tinha para preencher as paredes do quarto como fonte de inspiração juvenil.

No stand da Peugeot no último Salão Automóvel de Lisboa conseguira um pequeno catálogo da gama que quando desdobrado se transformava num gigante poster de um Peugeot 905. E imediatamente toda a imagem da simples e humilde Peugeot para mim mudara. Como? Como a “vulgar” Peugeot criara um carro de corrida daqueles? Somado a isto, a pequena legenda na base do poster: “1º, 2º, 3º. 24 Horas de Le Mans.”

Claro, depois disto, olhava para o outro lado do poster doutro modo. Sim, estavam lá enfadonhos Peugeot 504 e 605, mas também um 306 S16, um 106 XSI, ou aquele incrível 205 GTI. E que sigla fantástica é esta? MI16? 160 cavalos num Peugeot 405? Que Peugeot é esta, que faz automóveis destes e ganha as 24 Horas de Le Mans?

Claro que tive de esperar alguns anos para saber exactamente o que estava por baixo daquela esguia e deslumbrante carroçaria branca, genialmente pintada com as cores da Peugeot Talbot Sport. Mas a espera só alimentou o mito, e a descoberta não o destruiu.
O projecto 905 começa com o fim do Grupo B e a necessidade da Peugeot encontrar um novo palco desportivo. Decide focar-se no Word Sports-Prototype Championship (WSC), onde competia o popular Grupo C.

O facto de haver poucas restrições em termos de regulamento para além do peso mínimo de 900 Kg, e de serem limitadas as quantidades máximas de combustível – colocando virtualmente em pé de igualdade motores sobrealimentados e atmosféricos – tornava o campeonato WSC extremamente apelativo, sobretudo numa altura em que a F1 era dominada por motores turbo extremamente complexos e dispendiosos.

No fim da década de 80 o WSC vivia grande popularidade, apoiado em grandes patrocínios e muitos e reconhecíveis construtores – Toyota, Mercedes-Benz, Nissan, Porsche, Jaguar, Lancia, entre outros – e ultrapassava inclusivamente a rainha F1, que via a sua sobrevivência em risco, com cada vez mais equipas com dificuldades em suportar os custos elevadíssimos da era Turbo. Na tentativa de mitigar este problema, na temporada de 1989 passam a ser admitidos apenas motores atmosféricos com 3,5 litros de capacidade, para baixar custos e atrair grandes construtores para a F1. Contudo, inicialmente apenas Ferrari, Renault e Honda se mantiveram firmes, sendo o resto da grelha composta por pequenas equipas privadas com motores Judd e Cosworth, algo que não agradava a Bernie Ecclestone, que entretanto é apontado como promotor do WSC.

Não será por isso com certeza uma coincidência que para a época de 1990 a regra de motores de 3,5 litros é também imposta ao WSC, com o pretexto que construtores reduziam custos ao conseguirem competir em duas categorias diferentes com o mesmo motor. Protestos das equipas atrasaram a entrada em vigor do regulamento, mas em 1991 era imposta a regra que muitos apontam como motivo para o fim do WSC em 1992, beneficiando Bernie Ecclestone e a sua F1.

Teorias da conspiração à parte, a verdade é que esta fase de declínio do WSC viu nascer automóveis fascinantes como o Mercedes C291, Jaguar XJR-14 e o Peugeot 905.

Sob a direcção de Jean Todt, a Peugeot Talbot Sport apresenta o 905 ainda no decorrer de 1990, com um motor V10 a 80º de 3,5 litros e 650 cavalos (denominação interna SA35-A1) e parte estrutural do 905 em conjunto com o chassis em fibra de carbono concebido pela Dassault. No início da temporada de 1991 já apresentava alguma evolução e mostrou-se mais rápido – mas não o suficiente para enfrentar o incrível Jaguar XJR-14 – mas pouco fiável.

A meio da época é apresentada a evolução 905B. O motor SA35-A1 passa a debitar mais 20 cavalos. A aerodinâmica foi profundamente revista, apenas transitando do modelo inicial a zona do cockpit e apresentando um gigantesco aileron traseiro com 2 perfis e um aileron frontal que podia ser colocado para as provas que exigissem mais apoio aerodinâmico. O 905B permitiu à Peugeot alcançar melhores resultados, inclusive primeiro e segundo lugares nas provas do México e Magny-Cours.

Com a saída da Jaguar do WSC no final de 1991, a Peugeot tinha a vida facilitada para a temporada de 1992. E se é um facto que os Jaguar XJR-14 continuaram a competir, agora como Mazdas e com motores V10 Judd, a verdade é que sem evoluções não estavam à altura da nova versão do Peugeot, o 905 Evo 1B, tendo este conquistado o Campeonato WSC de 1992, incluindo neste a não menos importante vitória em Le Mans que a Peugeot tanto desejava.

Para 1993 a Peugeot cria algo radical. Desde as alterações de regulamento e da consequente aproximação à F1, a ênfase do WSC era cada vez mais a performance e não a endurance. A Peugeot decide construir o 905 Evo 2 o mais próximo possível a um monolugar de F1. Isso é bastante claro quando analisamos a frente, com um “nariz” estilo F1 e suspensão frontal quase totalmente exposta. A aposta era clara: downforce máxima. Atrás, o spoiler era semelhante em design ao do Evo 1 mas ainda maior, e estavam de volta as coberturas das rodas traseiras, que tinham sido vistas nas primeiras versões do 905 em 1990.

A Peugeot chegou a levar um 905 Evo 2 para a sexta e última prova da época de 1992 em Magny-Cours (a temporada consistia em dez provas mas a crescente desinteresse no WSC recessão económica mundial desse ano reduziu esse número para seis), mas que apenas foi utilizado na sessão de treinos. Seria a última prova do WSC e a última aparição do 905 Evo 2.

Em 1993 as 24 horas de Le Mans ocorrem como prova independente organizado pelo ACO e a Peugeot vence novamente, não com o Evo 2 mas com o mais testado e fiável 905 Evo1 Bis.

Com o fim do WSC a Peugeot abandona o projecto 905 e concentra os seus esforços na F1. Tal como Ecclestone pretendia, alguns dirão.

A evolução do Peugeot 905 resultou em algo excepcional, e sem dúvida contribuiu para o que se viriam a ser os atuais campeonatos de resistência e as máquinas excepcionais que neles competem, mas para mim, nada se compara à beleza e elegância daquele esguio Peugeot que tanto alimentou a minha imaginação.

E apenas uma nota final ao departamento de marketing da Peugeot, pelo excelente trabalho, pois acabei por comprar um Peugeot 205 GTI. Pronto, 25 anos depois, mas comprei. O marketing funcionou!

Telmo Gomes/Jornal dos Clássicos

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