Renault 4L imperial na Córsega

10/10/2017

O peso dos anos – 32 – não a incomoda; as estradas corsas muito menos. A Renault 4L da intrépida dupla António Pinto dos Santos/Nuno Rodrigues da Silva chegou a (bom) Porto Vecchio após cinco dias a dar a volta à Córsega.

Objetivo de novo atingido, 18 anos volvidos sobre a participação na prova do Mundial de Ralis. «Na altura, achei tão duro como esta; aliás considerei-a uma prova banal», confessou o piloto de Coimbra, estabelecendo lógica comparação entre as duas presenças na ilha da Beleza. Mas, entre os 215 participantes nesta 17.ª edição do Tour de Corse Historique nenhum era comparável à multifacetada e destemida 4L.

No parque fechado, a densidade por metro quadrado de emblemáticos Porsche, Lancia, Ford e Alpine, entre eles o ganhador do TAP Rali de Portugal de 1972 pelas mãos de Jean-Claude Andruet, que desta vez conduziu o único Simca SG produzido – não atemorizou a Dona 4L. À chegada, entre 73 resistentes classificados, ocupava o lugar 64, com a folha limpa: não sofrera qualquer penalização! «Foi mais uma participação bem acarinhada pela organização, público e comunicação social», sublinhou, sorridente o piloto-engenheiro.

Para trás, ficara um pequeno susto, na etapa para Porto: o apoio do amortecedor traseiro esquerdo cedeu. «Quando travava, o carro torcia, mas com grande esforço conseguimos terminar a etapa e logo a mais extensa», recordou Pinto dos Santos.

Assistência de fábrica

Sempre expedito e a vislumbrar solução para todo e qualquer problema, tratou de imediato de resolver a crise: «Fui falar com o navegador do Gérard Larousse, mas tratava-se de um jornalista convidado e encaminhou-me para ele». O cartão amarelo mostrado ao piloto da 4L – «devias ter vindo logo falar comigo» – não impediu solução do percalço.

Gérard Larousse, que conduzia, tal como Vic Elford, um dos raros Porsche 911 SC RS – apenas foram construídas 21 unidades e as duas que alinharam pertencem ao museu da marca em Estugarda – cumpriu a palavra dada: duas horas depois um Porsche Panamera branco da estrutura oficial da marca alemã, transportando um arsenal de peças, parou junto à Renault 4L.

O parafuso milagroso constava do vasto lote e o dedicado Américo Paiva não tardou a colocar a «catréle portugaise» nas devidas condições. Um tratamento de exceção que provocou geral estupefação e provou a enorme popularidade da equipa. «A 4L caiu no goto do público e recordo eu em 1999 tivemos enorme dificuldade no derradeiro controlo, em Ajaccio, tal o entusiasmo do público. No ambiente do WRC, toda a gente pergunta pela 4L», recorda o experiente Nuno Rodrigues da Silva. Para o navegador, «só muda o ritmo de cantar as notas, pois a atitude é a mesma: tentar fazer sempre o melhor possível com aquilo que se tem».

Em termos materiais, a equipa vive (quase) da carolice: alguns apoios cobrem os custos de uma participação que oscilam, como foi o caso, entre os seis e os sete mil euros. Só um terço foi para o transporte do furgão e do atrelado onde viaja a Dona 4L estrada fora até ao ferry-boat e regresso.

A travessia e dormida em cabina de Américo Paiva (mecânico) e Francisco Vasconcelos (logística e coordenação da equipa) orçaram em meio milhar de euros. O resto é apoio moral de meia dúzia de amigos fervorosos e da família: autocolantes alusivos à participação são distribuídos um pouco por toda a parte; não faltam bandeiras nacionais nos troços e até t-shirts e camisas dão o toque profissional à estrutura. É uma equipa … à Mundial! Como tal, é só gastar: a Renault 4L chega a dar 140 km/hora, em 4.ª e a descer – nada de conclusões precipitadas … — mas os 34 cavalitos do motor de 1108 cc «bebem» uns 10 litros aos 100.

O mundo é pequeno

E com o calor que se fazia sentir, a sede foi muita. Resultado: o depósito ficou como algumas das barragens alentejanas: sem pinga do precioso líquido em plena ligação para o final da etapa. De novo entrou em cena o piloto-engenheiro, que rapidamente congeminou uma «cena»: Na estrada, fez sinal desesperado, dando a sensação de se tratar de um problema de saúde, ao primeiro carro que surgiu e logo parou. Conversação entabulada com a condutora e, coincidência das coincidências: Pinto dos Santos conversara dias antes, por mero acaso, com o ex-marido, um português que, entretanto, dera outro rumo à vida, farto de viver na ilha de Napoleão. «A senhora ficou incrédula quando a tratei pelo nome», referiu o piloto. Depósito atestado e mala cheia de estórias, bons momentos, popularidade e poucos problemas. «Em 11 provas do Mundial e em três ralis históricos, nunca desistimos», realçou com orgulho o piloto de Coimbra.

Mesmo sem a poção mágica do druida Panoramix, a Renault 4L não cedeu na ilha onde, a exemplo de Astérix, protagonizou mais uma bela aventura.