Advertência Nº1: O narrador deste texto não é especialista em motos ou jornalista. Trata-se apenas de um vadio que entrega a sua fé à religião das estradas desertas.

Por Miguel Afonso Carranca

Faro: Toneladas de metal, plástico e borracha compostos em veículos de duas rodas da mais alta tecnologia. Milhares de homens, a maioria entre os 40 e os 60, e algumas mulheres. Ruído constante do rugir dos motores e ambiente de festa. Os locais e os turistas passeiam entre as motas e tiram fotos às mais extravagantes.

Trabalhos manuais: O GPS é em papel. O roadbook é um caderno A5 com instruções de viagem e curiosidades sobre os locais. Na mota está um dispositivo não digital que consiste numa caixa de metal com roldanas por dentro e um vidro à frente. Rasgam-se as folhas do caderno e, com fita cola (ou adesivo para curativos, se só se encontrar a farmácia aberta), junta-se tudo num grande rolo à Luiz Vaz, que depois deve ser preso e enrolado às roldanas. Se tudo correr bem, no fim do processo, quando se girarem os manípulos, pode-se percorrer o mapa num ecrã de luz reflectida.

Partida: As partidas começam às 5 da manhã. Em frente ao porto há uma azáfama de produção de grande evento. Os participantes cruzam a linha de partida e tiram selfies. Grupo a grupo, as motas vão deixando Faro para trás, o som dos motores segue em direcção ao Norte. À medida a que o sol se ergue, a linha de coletes fluorescentes vai avançando por Portugal a dentro.

Estrada: Em menos de nada, Faro tornou-se passado e o presente são as estradinhas sumarentas e calmas do Algarve. Uma geografia mansa e generosa em que o tempo parece perder peso.

Pequeno-almoço reforçado: 8h45 da manhã, tasquinha algures. Um grupo de homens em fatos de motociclismo toma um pequeno almoço composto por café, presunto, cerveja e medronho. Lá fora, sentado no rail metálico à beira da estrada, o louco da aldeia gira o pescoço para ver passar as motas.

As rodas: A BMW G 310 GS tem menos de metade da cilindrada das outras motas no Lés a Lés. Pode não ser tão rápida e tão rica, mas é uma óptima namoradinha. Gosta de curvas, é divertida, e consegue fazer tudo o que as grandes fazem – só prefere ir ao seu ritmo.

Advertência Nº2: Pá, tu não me ultrapasses nas curvas. Podes, está bem. Podes ser o campeão do mundo e ter visão raio-x e ultravioleta, mas a mim não me interessa. Não me quero aleijar só porque um gajo qualquer sofre de excessos de confiança.

Alentejo: Numa estrada assim, numa terra assim, ter uma mota ao dispor é uma benção divina.

Advertência Nº3: O facto de muitos participantes seguirem uma certa estrada não garante que estejam no caminho certo.

Nota estética: A imagem é difícil de categorizar por causa do contraste: Por um lado, a paisagem – a extensão do Alentejo que faz dilatar as pupilas; por outro a linha interminável de motas de alta cilindrada, conduzidas por gente em coletes fluorescentes. Esteticamente, há algo que não encaixa a 100 por cento.

A BMW G 310 GS tem menos de metade da cilindrada das outras motas no Lés a Lés. Pode não ser tão rápida e tão rica, mas é uma óptima namoradinha.

Buzinar, Acenar: Nas aldeias e lugares, as pessoas vêm à rua para ver passar as motas. Os que estão parados acenam e gritam e os que passam buzinam e acenam-lhes de volta. Grupos de putos põem-se em posição e montam linhas de “high fives”, e os motards desaceleram e cumprimentam as crianças. Porque é que buzinar e acenar deixa os humanos tão contentes? A actividade, analisada friamente e à distância, parece ser vazia de sentido, mas, na prática, quando se está embrenhado na acção, satisfaz gente de todos os géneros, idades e estratos sociais.

(Nota: Através de uma imersão empírica na experiência de buzinar e acenar, o narrador chegou à conclusão que, por mais estranho que seja o método, a felicidade que este produz classifica-se como verdadeira.)

No Alentejo é assim: Olhos satisfeitos e corpo cansado na chegada a Portalegre. A última paragem é num miradouro por cima da cidade. Desmonta-se a mota, e , havendo sorte, aparece um tipo do motoclube de Portalegre que diz “Anda comigo.” Surgem minis frescas e chouriço que é dividido à mão. “Aqui, no Alentejo, é assim.” O sol põe-se. Para um lado do miradouro vê-se a planura do Sul, para o outro, o norte montanhoso.

Cidade: Depois de um dia inteiro a conduzir, os participantes esperam numa fila para subir ao palanque de chegada onde a aventura é oficializada ao som de hits latinos, e onde duas raparigas loiras com corpos de ginásio vão cumprimentando e fazendo curtas entrevistas aos motards.

Mais um dia no escritório: O percurso para o 2º dia leva, em poucos minutos, a estradinhas perfeitas. Algures entre o Alentejo e a Beira Baixa, tiras escondidas de alcatrão que parecem feitas no cinema, estreitas, sinuosas, desertas.

Going through changes: O país altera-se debaixo das rodas. As planícies longas agitam-se, o mar de terra torna-se revolto e levanta ondas de verde e pedra.

Fogo: Primeiro surgem os eucaliptais a cerrar a paisagem, a sorver o espaço que até aqui era das oliveiras e dos sobreiros. Meia dúzia de quilómetros depois, começa a revelar-se o país ardido.

Nota estética Nº2: A linha de motas desce a estrada íngreme e retorcida que leva ao fundo da barragem de Santa Luzia. Agora resulta. Vistos de longe, a moverem-se na linha surreal de um caminho desenhado por Escher, são como uma procissão de uma religião pós-apocalíptica.

O país altera-se debaixo das rodas. As planícies longas agitam-se, o mar de terra torna-se revolto e levanta ondas de verde e pedra

Advertência Nº4 (Estrada para o Piódão): Man, baza! Eu já te avisei que não te quero ao meu lado nas curvas. Vai armar em campeão para outro lado.

Desertos futuros: Porque a vemos sempre a regenerar, pensamos que a capacidade de recuperação da natureza é infindável. Mas, aqui, nalgumas destas montanhas e vales, não se vêm nenhuns sinais de renascimento. Talvez tenhamos ultrapassado o limite. Demasiados anos de eucaliptos e acácias a sugar a terra, demasiados verões de incêndios. O silêncio mantém-me e nenhum verde brota do chão. Talvez tarde demais.

Água: A longa caravana continua a cruzar o país em direcção ao Norte. São muitas curvas, são muitas horas, e o fim da etapa continua longe, algures lá para cima. Perto de Mangualde, a ameaça que as nuvens veem fazendo finalmente concretiza-se. Não são chuviscos, são das gotas grossas que, em centenas de metros, encharcam o motard até ao tutano.

Advertência Nº5: Se, por distracção ou qualquer outra razão, o condutor não traz roupa de chuva, deve, se preza o seu corpinho, dar uso à estratégia. Pára-se debaixo do alpendre de uma casa fechada e espera-se. Outros motards, mais preparados, hão de parar também, para vestir os equipamentos impermeáveis. Conversa-se e ouvem-se histórias das quedas que já aconteceram durante o percurso por causa dos campeões que ultrapassam em curvas. A certa altura, os que pararam vão partir, e sentir-se-á uma grande vontade de seguir com eles, de ter companhia, de não ficar sozinho, à chuva, debaixo do alpendre. É importante resistir a esse instinto de segurança social. Mais gente parará. Inclusive a malta que vem em Casal Boss, Famel e Zundapp. Pode-se-lhes perguntar, como se fosse piada, se trazem equipamentos para a chuva a mais, e à resposta negativa, deve-se manter o espírito e o tom descontraído. Estes também vão partir. Mas há que esperar. A decisão de movimento só deve vir quando a chuva parar totalmente. O tempo passa, a paciência rebela-se. E eis que surge uma aberta…

Estratégia não chega: aberta, há que avançar com toda a decisão, rapidamente mas com atenção ao piso molhado e às centenas de motas. Há, também, que rezar que a linha da estrada siga para a direita, onde o céu está limpo e calmo, e não para a esquerda, onde as nuvens negras de tempestade antecipam a noite. Se, apesar da reza, é para debaixo das nuvens que o caminho leva, é então boa altura para maldizer a própria sorte, ceder ao arrependimento e gritar sequências de asneiras dentro do capacete.

Gatos pingados: Já se sente a água da chuva a tocar na pele, através de todas as camadas de roupa, quando surge uma árvore frondosa que pode servir de abrigo. Outros participantes juntam-se à espera. Parados, equipados profissionalmente mas separados das sua motas, as pessoas de capacete parecem tristes astronautas perdidos.

And the beat goes on: Segue-se. A chuva continua. Vê-se gente a cair. É o momento das desistências. Perdidos. Os grupos de motards tentam a esquerda e a direita, mas ninguém parece estar seguro. Dois homens adultos dizem que perderam o seu líder e que vão seguir pela via rápida. Mas o sol desponta e Portugal continua a desdobrar-se em novas surpresas, em novas visões. A solução é acelerar e tentar expor o corpo molhado à luz solar, antes que a noite chegue. A terra é linda, mesmo que o corpo tirite de frio.

Lamego: Há tuna, há banda, há vinho, há comida. No grande pavilhão sente-se uma atmosfera entre o baile pimba e o evento empresarial.

Nova volta, nova viagem: Um dia que começa a descer vertiginosamente para o rio Douro é um dia bom. As rodas rolam numa terra que insiste em desafiar as leis da gravidade: Aldeias suspensas, estradas na vertical…

Nota quase final: E a grande caravana segue em direcção ao norte.

Nota final: Mesmo que o vadio não goste de andar em grupo, mesmo que os grandes eventos não sejam do seu agrado, mesmo que isto e aquilo e ainda mais alguma coisa que se possa opinar em relação a esta específica aventura: através de imersão empírica na experiência, o narrador chegou à conclusão que, mesmo que o método seja estranho, a beleza das estradas é verdadeira.