Viajei para Madrid com muitas dúvidas e poucas certezas sobre este projeto do Team Astara e sobre o desporto motorizado em geral.
O Dakar dispensa apresentações, como um dos maiores desafios a pilotos, equipas e máquinas, desde que se realizou pela primeira vez, em 1979. As primeiras edições foram gloriosas aventuras, com discreta cobertura nos media, mas que constituíram os alicerces de uma marca global, que já nem precisa de passar em África para atrair participantes, investimento e impacto mediático.
A questão que se levanta é se, num momento em que discutimos as medidas urgentes de combate às alterações climáticas, o desporto motorizado ainda tem um papel significativo a desempenhar. Esta era a questão mais premente para mim relativa a este projeto da Astara.
Um projeto carbono zero?
Astara Team é uma equipa que vai disputar o Dakar Rally 2023, que se realiza, desde 2020, na Arábia Saudita. Tem três automóveis e três duplas de pilotos: Laia Sanz e Maurizio Gerini, Carlos Checa e Marc Solà e Óscar Fuertes e Diego Vallejo. Todos muito experientes e bem sucedidos.
“Estou muito entusiasmada por fazer parte deste projeto, com um veículo muito mais sustentável e uma equipa que se revela não só preocupada em diminuir e compensar a sua pegada carbónica, mas também empenhada na diversidade… Acredito que o Maurizio e eu teremos uma ótima prestação… tal como os restantes elementos da Astara Team!”, Laia Sanz, piloto Team Astara.
O que distingue a Astara Team das outras equipas é o compromisso de medir e auditar de forma exaustiva a pegada de carbono de todo o projeto, reduzindo ao máximo as emissões onde é possível e compensando as emissões inevitáveis com a aquisição de créditos de carbono, após o balanço final.
Isto significa que são contabilizadas todas as emissões de CO2 inerentes aos processos de preparação, treinos, transportes e à prova propriamente dita, num excel complexo e muito longo. No final, determinada a pegada de carbono total, faz-se o chamado off-set ou compensação, adquirindo créditos de carbono, para conseguir um resultado de zero.
Combustível sintético é mesmo neutro em carbono?
A primeira grande diferença que podemos apontar para os combustíveis convencionais é que o combustível sintético não usa produtos de origem fóssil na sua produção. Não é necessário explorar o subsolo e ter toda a cadeia de transporte, refinação e distribuição.
Neste caso concreto, o Team Astara usa no seu buggy um combustível que tem por base gás de síntese, que também designamos em português por gás pobre, devido ao seu reduzido teor calorífico. Há várias formas de o produzir, sendo que a gaseificação de biomassa ou de resíduos tem sido apontada como a forma mais sustentável. O gás de síntese pode depois ser utilizado na produção de amoníaco ou de metanol, sendo este último o caminho mais provável para a produção de um combustível com as características necessárias para o desporto motorizado.
O processo de transformação química até à obtenção deste combustível é complexo e dispendioso, terminando na obtenção de um hidrocarboneto líquido de elevada pureza e densidade energética. A Astara revela que um litro deste e-fuel contém 10,52 kWh e tem uma eficiência energética superior em 12% face à gasolina. Este último número parece extraordinário, mas um motor térmico a gasolina tem uma eficiência energética inferior a 25%.
Todavia, a afirmação mais relevante neste processo é a de que a queima deste combustível é neutra em carbono, porque as emissões daí resultantes são idênticas às que foram capturadas no processo de fabrico. Este envolve a utilização de energia elétrica de fonte renovável, de água e de CO2 contido no ar, não libertando CO2 adicional.
No ano passado, o Team Astara conseguiu utilizar no seu mix de combustível, 70% de e-fuel, sendo que este ano, esse valor passará para 90%, o que reduzirá ainda mais as emissões de CO2.
O buggy Astara 01
O Astara 01 tem dois depósitos de 180 litros cada para o seu combustível, 90% do qual será de origem sintética, como anteriormente descrito.
O veículo tem apenas tração traseira e o seu motor é um V8 de sete litros, utilizado no Chevrolet Corvette. Tem 325 kW de potência, equivalendo a 550 cv e um binário de 720 Nm às 2900 rotações. A caixa Sadev de seis velocidades é sequencial.
A equipa completa
“Prometi a mim mesmo que, se não conseguíssemos encontrar uma solução mais sustentável, deixaria de fazer carros de corrida. Tenho filhos pequenos e acredito realmente que temos que fazer algo. Tenho pressionado os organizadores a obrigarem à utilização de bio-combustíveis, mas eles não se comprometem.” – Mark Corbett, CEO Century Racing.
Laia Sanz, em particular, é provavelmente a melhor piloto de motos de todo o terreno de sempre, com 14 títulos mundiais e dez títulos europeus de Trial.
Foi por 11 vezes a concorrente mais bem classificada no Dakar e venceu por seis vezes o campeonato do mundo de Enduro. Participa desde 2021 no campeonato Extreme E, com veículos elétricos de bateria, fazendo equipa com Carlos Sainz.
No primeiro ano ficaram em 5º, este ano estão em 3º, quando falta uma prova para terminar a competição.
Mas a equipa é composta por mais de 30 pessoas e tem o apoio técnico da empresa sul-africana Century Racing, grande especialista em veículos de rally-raid.
A equipa tem ainda uma componente feminina importante, com a engenheira Jessica Nebra e a mecânica Iona Hérnandez em posições de destaque e peças-chave no sucesso desta iniciativa.
Neste evento, tive a oportunidade de andar ao lado de Laia Sanz, num percurso muito enlameado, mas onde a piloto mostrou o seu talento no controlo do Astara 01.
Os méritos do projeto
O projeto do Dakar da Astara é muito interessante, inovador e toda a empresa parece estar entusiasmada com ele. O mote da empresa é “For the love of movement” e esta paixão é bem notória em todos os elementos da organização Astara, desde o seu diretor-geral, Jorge Navea, aos mecânicos que nos ajudam a apertar o cinto para a co-drive. E é inegável o mérito que tem, sobretudo na consciência de que todos precisamos de fazer o que for possível para reduzir o impacto negativo das nossas atividades.
Para além da preocupação com a sustentabilidade ambiental, há uma uma componente social, na promoção da igualdade de género, o que é ainda mais relevante, já que o Dakar se disputa num país onde as mulheres continuam a ser limitadas nos seus direitos.
“Astara Team acompanha o que é a estratégia global da empresa. Para nós está claro que a componente ambiental e social é um objetivo a médio e longo prazo. Nesse sentido, apostamos no veículo elétrico e noutras formas que possam ser sustentáveis em termos ambientais. E pensamos que no caso no Dakar, o e-fuel é a solução mais viável para ser competitivo e neutro em carbono.” – Jorge Navea, CEO Global Astara
Mas a principal virtude da iniciativa é mostrar que o desporto automóvel pode mudar, encontrando soluções mais sustentáveis. E mudar já. Onde não é possível a eletrificação, como é o caso deste tipo de provas, com etapas muito longas, os combustíveis sintéticos são, por agora, a única alternativa. E eles não só existem como são perfeitamente compatíveis com os motores em tilização. A questão é saber porque é que não é implementada a sua utilização de uma forma generalizada. Como a Astara Team prova, não é assim tão difícil.
E é mesmo necessário porque, apesar da urgência em mitigar o impacto ambiental das nossas atividades, o desporto motorizado continua a ter o seu papel positivo, no desenvolvimento de novas tecnologias, no impacto social que pode ter em zonas mais desfavorecidas, mas também no impacto económico que tem para muitas empresas e famílias, que dependem dessa atividade. Mas num mundo em mudança, todos temos que mudar com ele. E depressa. O desporto motorizado não pode nem vai ser a excepção. E projetos como o Team Astara só vêm mostrar que muito mais pode ser feito.
O Dakar Rally 2023 tem início no dia 31 de dezembro, na costa do Mar Negro e terminará a 15 de janeiro em Ar-Dammam, nas margens do Golfo Pérsico.