Facel-Vega: Classe à francesa, três aspectos fundamentais

09/04/2023

Fundada em 1939, a Facel (Forges et Ateliers de Constructions d’Eure-et-Loir) S.A. começou por fabricar componentes para aviões e, mais tarde, carroçarias de pequena série para a Simca, Ford, Panhard e Delahaye. Em 1948, já com Jean Daninos na direcção da empresa, a divisão de automóveis de luxo foi fundada. É precisamente esta vertente da Facel, a produção de automóveis com marca própria e de luxo, que vamos abordar.

A aventura duraria 10 anos, de 1954, ano de apresentação do coupé Vega, com motor V8 DeSoto, até 1964, com o Facel 6, um derivado do Facellia com motor BMC de 6 cilindros. Seriam produzidas menos de 2900 unidades, repartidas por vários modelos e das quais menos de metade viriam equipadas com motores V8. Apenas 18 chegariam a Portugal.

No meu entender, há três aspectos fundamentais que definiram a marca e a sorte desta… para o melhor e para o pior!

#1 – Jean Daninos

Começou a sua carreira na Citroen como assistente do Director de Estudos de Carroçarias em 1928. Em 1930 passa a ocupar o cargo de Chefe de Serviços de Carroçarias de Luxo. Sempre ligado à construção e estudo destas, Daninos iria progredir até chegar a Assistente Técnico do Director de Fabrico de Montagens Mecânicas e Carroçarias, cargo que ocuparia até 1934.

Em 1932, Daninos constrói um cabriolet, com base no Citroen 5CV, que baptizou “Speedster” e pediu autorização da marca para participar num concurso de elegância. A resposta foi um rotundo e simples “Non”. O motivo para tal, dado anos mais tarde, foi que a marca não tinha nenhum cabriolet na sua gama de produtos.

Com a chegada do Traction Avant, Daninos reivindicou o estudo e desenvolvimento das versões Coupé e Cabriolet, com o acordo de Raoul Cuinet, o responsável geral das carroçarias Citroen. Tem um papel fulcral no desenvolvimento destas versões para o 7CV e o 11CV, tendo criado ainda o “Faux Cabriolet”, com base no 11CV, ainda hoje considerado como a versão mais elegante do Traction, que só desapareceria do catálogo da marca em 1938.

A sua última contribuição seria com o mítico 22, a derradeira versão do Traction equipado com um propulsor V8 de origem Ford. Nunca tendo chegado a ser produzido, o número de unidades produzidas varia, segundo a fonte: há quem garanta que só foram produzidas três unidades, um coupé, um cabrio e uma limousine. Por outro lado, há quem diga que o número real é de 14, a maior parte unidades de testes e desenvolvimento. A produção deste modelo foi cancelada aquando da aquisição da marca pela Michelin. Parte destas unidades terão sido convertidas em 11CV, enquanto que outras terão sido simplesmente destruídas. A aquisição da Michelin ditou também o fim da colaboração de Daninos. Deixou a marca em Outubro de 1934 para começar uma nova carreira, desta vez na aviação.

Durante o período da 2ª Guerra Mundial, Daninos muda-se para os EUA, ainda ligado à indústria aeronáutica. É aqui que toma contacto com os motores de automóveis americanos, que mais tarde farão parte das suas criações. Depois da Guerra, é convidado a presidir o grupo Facel-Métallon, em França, na altura um importante grupo na área da construção metalo-mecânica. Operava em três áreas distintas: a) Construção automóvel, para outros construtores, conforme já mencionado, b) Aviação, com a construção em França, pela Hispano-Suiza, outra empresa do grupo, de câmaras de combustão para reactores, sob licença Rolls-Royce e c) Equipamentos diversos em aço inox, desde pára-choques a bancos para cozinhas.

A produção automóvel cedo tomou o protagonismo e alguns modelos de outros fabricantes, como o Simca 8 (e 9) Sport e o Ford Comète passaram a ser integralmente produzidos pela Facel. O primeiro contacto com o mercado de luxo foi com o Bentley Cresta, logo seguido pelo Cresta II. Começava-se a vislumbrar o que viria a acontecer alguns anos mais tarde… tendo em conta o que sabemos hoje, não fazia parte dos planos iniciais de Daninos fundar a sua própria marca, mas sim a produção de uma viatura excepcional e assim potenciar a sua empresa. No final dos anos de 1940, uma das companhias do grupo Facel, precisamente a Hispano-Suiza, propõe a Jean Daninos um estudo com vista ao ressurgimento desta no mercado automóvel. Uma berlina de grande classe, com tracção dianteira e motor V8 próprio. Marc Birkgit, o fundador e ainda dono da empresa achou que o clima económico que se vivia na altura não era favorável para um automóvel com estas características e não deu seguimento ao processo, no entanto já tinha sido construída uma unidade de testes.

Paralelamente, Jean Daninos considerava outras vias: a compra da marca Delage e um projecto conjunto com a sociedade Pont-à-Mousson, construtor de motores e caixas de velocidades.

A ideia seria a construção de um automóvel de elevadas prestações e de grande classe, à semelhança dos construtores franceses dos anos de 1920. A compra da marca Delage sairia gorada, depois de várias tentativas de negociação, pelo preço pretendido pelo proprietário, o que segundo Daninos poderia pôr em causa todo o projecto. No entanto, o nome “Vega” já estava registado desde 1951 e um protótipo tinha começado a fase de ensaios. No entanto, este “Delage-Vega” não veria a luz do dia. Depois do fracasso da tentativa de compra, Daninos decide avançar com a sua marca. Sempre previdente, Daninos tinha adquirido o nome Facel, pouco depois de ter registado o nome “Vega”. Esta nova viatura teria o refinamento de um Bentley, a performance de um Hispano-Suiza e a classe de um Delage… tinha chegado a hora de uma nova marca de automóveis.

#2 – O HK500

Com a produção já relativamente bem encaminhada, em Maio de 1958 é lançado o HK500, a derradeira versão da linhagem FV que depois do FVS veria a nomenclatura alterada. Este seria o modelo a consolidar a Facel-Vega como construtor de automóveis de elevadas prestações e prestígio. Foram construídas 490 unidades.

O nome HK significa Horsepower per Kilo, sendo o número que vem a seguir o resultado (5.00). Este novo modelo tem, portanto, uma relação peso/potência de cinco kg por cavalo, algo inaudito para a época. Com o peso homologado de 1660 Kg e a potencia anunciada de 335, para caixa automática, obtemos de facto uma relação de 4,95 Kg/cv. O primeiro motor foi o 5.9 V8, fornecido pela Chrysler, com especificação DeSoto e desenvolvia 360 cv SAE. Em 1960 seria substituído pelo bloco de 6.3 litros, que dependendo das especificações desenvolvia entre 305 e 350 cv. Curiosamente a Chrysler não divulga, à época, qual a versão que fornecia à marca gaulesa. Um jornalista americano, Wayne Thoms, questiona directamente a Chrysler Corporation sobre o assunto e a resposta é:
– Para a versão com caixa manual, a Facel recebe a versão Plymouth Golden Commando Special Police, com dois carburadores quádruplos e com uma potência de 335 cv SAE. A Facel anunciava a potência, algo irrealista, de 390 cv. Apesar de ser menos potente que o motor 5.9, este tinha um binário superior.
– Para a versão com caixa automática, o motor tinha a especificação DeSoto Fireflite, só com um carburador e com 330 cv.

Não obstante este pequeno fait-divers, o HK500 era extremamente dotado para a época.

Segundo os testes da imprensa, era mais rápido do que o Ferrari 250 GT, o Mercedes-Benz 300 SL e o Aston-Martin DB4, tendo também uma velocidade máxima superior. Enquanto os três modelos citados acima faziam entre 225 e 230 km/h, Paul Frère, em Outubro de 1960 conseguiu atingir 23 7km/h, um recorde homologado pelo Royal Automobile Club de Belgique. O facto de a unidade de teste não estar exactamente standard parece não ter contado para muito. Segundo relatos da época, a utilização de um fundo plano e de faróis carenados não tiveram grande influência.

Refira-se também que era normal, na época, existirem como opção várias relações de diferencial. Obviamente, as mais curtas favorecem as acelerações enquanto as mais longas a velocidade de ponta. É impossível saber hoje se estas comparações seriam entre automóveis com estas relações equiparáveis.

Apesar da Facel-Vega não estar envolvida em competição, o HK500 era o preferido de alguns pilotos: Stirling Moss utilizava um para as deslocações entre os circuitos, assim como Maurice Trintignant. A única critica de Stirling Moss era que, para manter a temperatura estável no habitáculo, tinha que fazer ligeiros ajustes nos comandos da climatização, de tempos a tempos. Rob Walker, o proprietário da escuderia com o mesmo nome, também possuía um. Ao que parece, certo dia deixou Maurice Trintignant experimentá-lo no circuito de Nurburgring. Resultado? 17 raios de jante partidos em 22 kms.

Outros proprietários dignos de registo foram Ava Gardner e Ringo Starr dos Beatles.

Martin Buckley testou um em 1990, para a revista “Classic and Sportscar”. Apesar de algumas queixas relativas à suspensão e à direcção, a sua conclusão foi: “Depois de algum tempo ao volante, qualquer consideração parece irrelevante pois o fascínio e o glamour mais do que preenchem o vazio deixado pela direcção de carácter duvidoso e pelo comportamento francamente mau. A princípio estava preparado para não gostar do HK500, mas no final adorei-o.”

Acho que não partilho totalmente da opinião de M. Buckley, pelo menos no que respeita à suspensão. Há algum tempo, tive o privilégio de experimentar um HK, que não me pareceu sofrer do mesmo mal, embora a direcção seja algo lenta e com muita contenção a passar informação ao condutor. No restante, concordo plenamente: é daquelas experiências que nos apanha completamente de surpresa e, quase sem darmos conta, estamos completamente convertidos.

De realçar que o estado de conservação de diferentes automóveis podem dar azo a estas diferenças de opinião.

#3 – O motor do Facellia

Em 1957, a Facel Vega decide entrar no segmento dos pequenos desportivos, até então dominado pela Alfa Romeo, Porsche e Mercedes-Benz, com o 190 SL. A ideia seria um modelo com produção mais elevada, talvez até massificada, e a escolha de motor recaiu num produto desenvolvido por um fornecedor já conhecido. De quatro cilindros e 1.6 litros de capacidade, este propulsor seria produzido pela Pont-à-Mousson, que de resto já fabricava as caixas de velocidades manuais para os outros modelos da Facel. Seria, portanto, o primeiro Facel 100% francês. Começaria a ser comercializado em Outubro de 1959. Mas este motor tornar-se-ia uma peça tragicamente importante na história da marca.

Desenvolvido a partir de um motor existente, de seis cilindros, a especificação deste 1.6 seria de: 4 cilindros em linha, capacidade de 1646 cc, dupla árvore de cames à cabeça, taxa de compressão de 9,5:1, alimentação por dois carburadores e 115cv de potência máxima às 6400 rpm.

Se no papel a especificação parecem muito bem, na prática as coisas não seriam bem assim. Este motor seria o descalabro total para a Facel. Desde o primeiro dia, problemas de fiabilidade assombraram o Facellia e só seriam resolvidos de vez com a sua substituição por uma unidade motriz de fabrico sueco, o Volvo B18.

O problema começou com a própria concepção. Como partiram de um seis cilindros, ao que parece mais do que testado e lhe subtraíram dois, amplificaram uma serie de características, que ao serem negligenciáveis originalmente passaram a primordiais com a configuração de quatro cilindros. O bloco perdeu rigidez, originando fugas e perdas de estanquicidade. O consumo de óleo foi considerado exorbitante, mesmo para os padrões da época, e completamente fora das normas da marca. Os materiais escolhidos para os pistões e camisas eram incompatíveis e para ajudar, o controlo de qualidade falhou completamente quando só descobriram tarde de mais que eram entregues pelos fornecedores fora das especificações pretendidas.

Outro problema conceptual era a falta de apoio nas árvores de cames, que só tinham dois rolamentos, ao contrário do que seria a norma, que eram quatro ou cinco. Apesar a experiência metalúrgica da Pont-à-Mousson, isto resultou em flexões excessivas, problemas no ponto do motor e avarias frequentes. Inicialmente, a Facel tentou resolver o problema com a substituição dos motores com defeitos. A cadência de fabrico de motores de substituição chegou a seis unidades novas por dia, sem contar com as reparações em motores danificados que chegavam diariamente às instalações.

Além dos já mencionados acima, a equipa da Facel ainda se deparou com mais questões: a concepção da distribuição, diâmetro das passagens de água entre o bloco e cabeça, presença de “pontos quentes” dentro do bloco, consequência do circuito de refrigeração deficientemente concebido, equilíbrio dinâmico da cambota, taxa de compressão muito elevada, atendendo à qualidade geral dos combustíveis na época. Como se não chegasse, a equipa técnica apercebeu-se, à posteriori, de detalhes como a supressão de reforços internos do bloco, feitos pelos fornecedores. Este detalhe só foi detectado quando a mesma viatura recebia motores novos em sucessão… os motores reparados já estavam comprometidos de antemão!

O piloto brasileiro, Nano da Silva Ramos conta que Jean Daninos ofereceu um Facellia à sua esposa. Nano resolveu fazer-lhe os primeiros quilómetros com a desculpa de que a rodagem era primordial nestes motores. Aos 1500 kms danificou um pistão. Pouco depois o motor partiu. Depois de substituído, voltou a partir. Nano resolveu então confiar o Facellia aos cuidados da sua esposa, que o utilizou durante dois anos sem qualquer problema. Nano ficou convencido que o problema seria dele… um autêntico “pé-de-chumbo”, como confidenciou mais tarde!

Em desespero, a Facel lança o Facel III, equipado com o motor Volvo B18, mas o mal estava feito. A produção cessaria em 1963 e, apesar das intenções de construir um automóvel mais massificado, foram produzidos somente 1100 unidades, mesmo assim o modelo com produção mais elevada da marca.

A Facel perdeu dinheiro em todos os automóveis que produziu. A concorrência cada vez mais aguerrida, no sector dos automóveis de luxo e o fracasso comercial do Facellia ditaram o fim da companhia, que encerraria definitivamente em Outubro de 1964.