Os últimos três anos não têm sido fáceis para a indústria automóvel que, crise após crise, vai acumulando impactos da conjuntura internacional. A pandemia trouxe consigo uma travagem a fundo na economia, forçou ajustes na produção e, com isso, os fabricantes diminuíram, numa primeira fase, as encomendas de semicondutores amplamente utilizados nos veículos modernos.
“Para se ter uma ideia, [antes] um automóvel mais convencional teria qualquer coisa como 120 a 150 semicondutores e hoje facilmente ultrapassa os 300”, contextualiza Hugo Barbosa, diretor de comunicação da Renault Portugal. A prudência na redução das compras de chips foi o ponto de viragem para o que viriam a ser três anos marcados pela escassez de um componente essencial em várias indústrias, nomeadamente a das tecnologias de informação.
Ao mesmo tempo que o setor moderava a procura, sucessivos confinamentos e o impulso dado pela covid-19 à transição digital fizeram disparar o consumo de equipamentos tecnológicos, dos computadores às placas gráficas, do armazenamento às comunicações. “Quando a indústria automóvel quis voltar a um ritmo normal já não havia capacidade de produção disponível dos fabricantes de semicondutores”, aponta Sylvain Derivry, especialista no mercado e partner da Deloitte Portugal. A consequência passou por uma necessária adaptação das linhas de montagem, com a redução da produção, a implementação do lay-off e a alteração dos produtos finais.
Portugal sofre efeitos
As estratégias foram diferentes e, com frequência, ajustadas à medida do contexto. Algumas marcas optaram por cortar no equipamento a bordo dos veículos, como carregadores de telemóvel por indução, ecrãs tácteis ou de maior dimensão, mas houve até insígnias que voltaram a incluir vidros manuais na oferta. O mais importante era continuar a produzir para não agravar o impacto da crise. “A indústria decidiu reinventar-se. Quando nos faltavam componentes terminavam-se os automóveis porque concluiu-se que seria mais barato completá-los numa segunda fase do que parar completamente a produção”, explica Hugo Barbosa. A pressão dos consumidores e dos prazos de entrega não dava outra alternativa – recorde-se que a espera por um automóvel novo chegou a ultrapassar os 12 meses e mantém-se elevada, variando entre os quatro e nove meses conforme os fabricantes.
Em território nacional, os impactos também se fizeram sentir. Na Autoeuropa, em Palmela, a produção foi interrompida em vários momentos, situação que se repetiu na Stellantis, em Mangualde, de onde saem veículos Peugeot, Citroen e Opel. As maiores perturbações aconteceram sobretudo em 2021, com este ano a assistir a alguma estabilização. “A crise mundial de semicondutores afetou a atividade da fábrica da Stellantis em Mangualde, o que levou à aplicação do lay-off e à suspensão do arranque de um turno adicional previsto para maio”, esclarece Jorge Magalhães. O diretor de comunicação sublinha, porém, que “no segundo semestre de 2022 a produção não foi impactada por esta situação”.
Na Renault Cacia, no distrito de Aveiro, a produção é sobretudo de caixas de velocidades, bombas de óleo e outros componentes que não sofrem na mesma proporção os efeitos da escassez de semicondutores. Ainda assim, Hugo Barbosa reconhece o abrandamento nas linhas de montagem porque “não tínhamos para onde escoar a produção” – tudo o que é fabricado em Cacia tem como destino a exportação, empurrando a empresa para o top 15 das principais exportadoras nacionais. No mesmo grupo com mais vendas ao exterior está a alemã Bosch, que a partir de Braga desenvolve e produz soluções multimédia e sensores para automóveis. Fonte oficial não especifica o impacto da crise na atividade, embora garanta que esta é “uma situação a que nem mesmo a Bosch pode escapar” e que está a trabalhar para “manter o impacto o mais baixo possível”.
Navegação prudente
As perspetivas sobre a evolução da situação no próximo ano dividem-se entre o otimismo moderado e a cautela a que os últimos três anos obrigam. Do ponto de vista privilegiado de um analista como Sylvain Derivry, os dados parecem indicar o início do regresso à normalidade. “Acredito que podemos ser mais otimistas e começar a ver, a partir de meados de 2023, o fim desta crise”, antecipa, justificando com a combinação de dois fatores que considera importantes. Por um lado, o perito da Deloitte considera “expectável” um aumento geral da capacidade de produção de semicondutores a nível mundial e, por outro, prevê uma diminuição da procura associada à ameaça de recessão económica. Gabriel Coimbra, líder da IDC Portugal, traça um retrato semelhante para os próximos 12 meses e acrescenta que, no mercado global de semicondutores, deverá haver lugar a um crescimento total de 4,4% nas receitas e um aumento de 4,7% no segmento automóvel.
Alerta, contudo, que as estimativas dizem respeito a “receitas e não em número” de unidades produzidas, embora tenha confiança numa “maior disponibilidade de componentes” que voltará a equilibrar o mercado. “A longo-prazo os semicondutores são um componente crítico para a nossa economia que é cada vez mais tecnológica”, aponta.
Do lado da indústria automóvel, precaução é a palavra-chave no que toca a previsões. A Renault Cacia recorda que além da escassez de chips, do impacto da guerra na Ucrânia no fornecimento de cablagens e, sobretudo, no aumento dos custos das matérias-primas, o setor está “a meio de uma necessária transição para a mobilidade elétrica com custos colossais” que não podem ficar de fora desta equação. Hugo Barbosa diz, ainda assim, que se tem verificado “uma evolução positiva nos últimos meses” e que “as coisas podem melhorar em 2023”, mas defende ser “prematuro falar no fim da crise”.
Já a Stellantis não espera ver “uma estabilização até ao final deste ano”, refere Jorge Magalhães, que sublinha a fragilidade nas cadeias de aprovisionamento em que “qualquer incidente pode afetar mais as produções”. A expectativa é de que a situação se mantenha “muito complicada até ao final de 2023”. A Associação de Fabricantes da Indústria Automóvel (AFIA), que representa construtores e fornecedores, considera que no próximo ano a escassez de semicondutores não estará resolvida e que, se tudo correr bem, só no final deste ano as empresas portuguesas podem “regressar aos números de 2019”.
Reindustrializar a Europa
Dar a volta à falta de microchips implica uma estratégia bem definida, mas de complexa execução. Para esta missão, as marcas estão a apostar na produção própria destes componentes para reduzir a sua dependência dos fornecedores – a Renault está a construir uma unidade de semicondutores no Norte de França e a Bosch vai expandir duas fábricas na Alemanha. “A Bosch é um dos poucos fornecedores da indústria automóvel do mundo que também produz semicondutores”, realça fonte oficial.
Ao nível político, a Comissão Europeia está a trabalhar no European Chips Act, um quadro de apoio com 43 mil milhões de euros para “garantir a competitividade futura e manter a sua liderança tecnológica e segurança no fornecimento”, lê-se no portal oficial do organismo comunitário. O principal objetivo é duplicar a quota de mercado na produção de semicondutores de cerca de 10% para 20% até 2030, apoiando o setor e seguindo os passos dos Estados Unidos que lançaram apoios na ordem dos 52 mil milhões.
Neste esforço de reindustrialização da Europa, que se intensificou com o embate da pandemia e com as disrupções nas cadeias de abastecimento, Portugal pode vir a ter um papel importante se forem endereçados alguns desafios estruturais. “Portugal tem condições excelentes para a reindustrialização, mas tenho dúvidas que este processo se faça no âmbito da indústria automóvel”, diz Jorge Couto, que justifica com o que considera ser uma desvantagem logística do território nacional. A distância dos centros de produção europeus é agravada pela insuficiência da linha férrea, fatores que pesam nas margens de lucro e podem, acredita, afastar o setor. Destaca, porém, que “há condições [nacionais] em termos de capacidade de investigação e desenvolvimento, da qualidade das empresas, dos gestores e das suas competências técnicas”. A AFIA garante que 98% dos automóveis feitos na Europa “têm pelo menos um componente feito em Portugal” e que a “preocupação é saber se vamos manter esta presença nos construtores nos próximos anos”.
A estratégia europeia para reduzir a dependência face aos mercados norte-americano e asiático é, assinala Gabriel Coimbra, um plano “a médio longo prazo” que não irá “resolver o problema imediato da falta de componentes”. No entanto, e apesar de concordar com o líder da IDC, Sylvain Derivry alerta que a duplicação da quota de mercado europeia terá de acompanhar o crescimento do mercado de semicondutores, “que deverá duplicar no horizonte 2030”, pelo que “vamos ter de quadruplicar a nossa produção para representar 20% do total mundial”. Certo é que, afirma o analista, os efeitos só serão sentidos “lá para 2026 ou 2027”. Até lá, a indústria automóvel terá de apertar o cinto para uma viagem atribulada com a escassez de semicondutores.
Francisco de Almeida Fernandes / Dinheiro Vivo