Le Mans 1953: A máxima da sobriedade

12/05/2023

Raramente passamos uma edição das 24 Horas de Le Mans que não nos deixe alguma ocorrência de maior ou menor relevância para o desfecho final, como a vitória dos irmãos Whittington em 1979 contra as equipas de fábrica ou a paragem do Toyota líder da prova em 2016 à entrada para a última volta, entregando a vitória à Porsche.

Certamente não faltarão episódios de pronto avivar de memória com ocorrência na prova rainha do desporto motorizado, de prevalência entre o caricato e o desastroso, mas o que seguidamente se relata vai bem para além do que seria imaginável pela sua singularidade, mesmo para a década em questão. Nas 24 Horas de Le Mans de 1953, a 21ª edição da prova, e tal como o título deixa escapar, a palavra sobriedade juntou-me ao linguo habitual do evento.

Previamente à infame rivalidade Ford-Ferrari em Le Mans, o antagonismo da marca do cavallino rampante era com a Jaguar, ou melhor, da Jaguar com qualquer outra marca, ou não fosse tal o domínio e a importância de Le Mans para a marca Britânica. Na liderança da equipa oficial da Jaguar durante esta campanha esteve “Lofty” England, largamente conhecido tanto pelas suas capacidades de gestão como pelas suas citações relativas à falta de valor dado à vida dos pilotos em comparação com a importância da marca.

Na prova de 1953, aos comandos dos fabulosos Jaguar C-Type equipados com travões de disco (os primeiros em Le Mans), a equipa apresentava uma formação plenamente britânica similar à do ano anterior, com Stirling Moss e Peter Walker aos comandos do C-Type Nº 17, Tony Rolt e Duncan Hamilton no Nº 18 e Peter Whitehead e Ian Stewart no Nº 19, sendo a dupla em foco a do Nº 18.

Com carreiras relativamente interessantes no desporto automóvel, e ambos veteranos de guerra galardoados, o foco deve ser dado a Hamilton, constantemente envolto em situações peculiares. Relate-se que em 1949, enquanto se deslocava para uma prova de velocidade com dois dos seus automóveis, Hamilton reparou num Bugatti que o seguia de perto a grande velocidade. Ao afastar-se para lhe permitir a ultrapassagem, o Bugatti permaneceu atrás da transportadora de Hamilton, apenas o ultrapassando na descida seguinte. Curioso para ver de quem se tratava, Hamilton decide desviar o olhar para ver quem o ultrapassava, apenas para reparar que o veículo não tinha condutor. Foi apenas nessa altura que Hamilton se apercebeu que o Bugatti que o ultrapassava era o mesmo que trazia a reboque. Escusa-se a referência à destruição do automóvel.

Uma outra caricata aventura de Hamilton relata o acidente que o mesmo protagonizou no Grande Prémio de Portugal de 1953, no Circuito Internacional do Porto, apenas uma semana antes de Le Mans. Ao liderar a prova, Hamilton teve um acidente após a primeira curva embatendo num poste de electricidade (provocando um apagão na zona metropolitana do Porto), acabando projectado para fora do habitáculo do automóvel e escapando por pouco a um possível atropelo por parte de um dos Ferrari que o seguia.

Contudo, e apesar de em anos posteriores a história ter sido desmentida por Rolt e England por motivos evidentes, o relato de Hamilton dos acontecimentos nas 24 Horas de Le Mans de 1953 tornou o acontecimento num verdadeiro mito urbano.

Nos treinos de quinta-feira a Jaguar demonstra o seu ritmo no Circuit de La Sarthe alcançando tempos abaixo do recorde de volta com os três C-Type da equipa de fábrica. Ainda assim, Moss requer à equipa alterações no eixo traseiro, ocorrendo a preparação dessa configuração no C-Type de testes transportado para a prova. O problema que gera a brilhante história de Rolt e Hamilton estaria na designação deste C-Type de testes, que surgia com o número 18, igual ao da dupla antemencionada.

Tal ditava uma violação das regras, algo que a Ferrari prontamente denotou ao Colégio de Comissários, o que acabaria por excluir Rolt e Hamilton da prova apesar das incessantes tentativas de Lofty England para explicar a situação enquanto um simples engano e não uma procura de beneficiar a equipa de qualquer forma. Apenas no Domingo, a algumas horas do início da prova, foi possível uma subversão da exclusão, ocorrendo o pronto pagamento de 25000 francos por parte de William Lyons, Presidente da Jaguar.

É por esta altura que a situação começa a tomar contornos de caricatura: nenhum dos pilotos se encontrava no circuito aquando da reversão da decisão, não sendo vistos desde a sexta-feira anterior, tal o seu cepticismo relativamente à possibilidade de inversão da decisão. Sem uma pronta explicação aparente, mas possivelmente por interpretarem a desqualificação como a oportunidade para as férias por terras gaulesas, a dupla foi encontrada por England num restaurante local de nome Bierre Gruber às dez da manhã do dia da prova rodeados de múltiplas jarras de café, numa tentativa de subverter os efeitos do exacerbado consumo de álcool dos dois dias anteriores.

Certamente será para lá de necessário referir que a combinação álcool-condução estará para lá do aconselhável, mas estávamos em 1953 e nas 24 horas de Le Mans. Como tal, Rolt e Hamilton foram rapidamente encaminhados para o Circuit de La Sartre, mesmo a tempo do início da prova, mas sem nunca cessar no consumo de cafeína.
Pela relutância de ambos em assumir o primeiro turno de condução, a decisão foi tomada com uma moeda ao ar, ao que Tony Rolt seria o responsável. Ao final da primeira volta, Rolt ocupava a sétima posição atrás dos Ferrari e do Jaguar de Sterling Moss, recuperando sucessivamente posições até alcançar o quarto posto pela terceira volta.

A Jaguar acabaria também por beneficiar de um trunfo ao tomar conhecimento do reabastecimento do sistema de travagem do Ferrari 340 MM Nº 14 de Farina e Hawthorn, o que levaria à sua desqualificação.
Pelo pôr-do-sol a liderança era já de Rolt e Hamilton, com este segundo a concretizar um sensacional primeiro turno de condução, auxiliado pelas falhas de ignição e de alimentação de combustível no motor do Jaguar de Moss. Desta forma, a prova passava a ser disputada entre o C-Type Nº18 de Rolt e Hamilton e o Ferrari 375 MM Berlinetta Nº 12 de Ascari e Villoresi. A liderança mudou de mãos constantemente, sendo o Ferrari mais listo nas rectas e o Jaguar possuidor de melhor manobrabilidade em curva.

Contudo, pelo segundo turno de condução de Hamilton, o Jaguar Nº 18 foi capaz de elevar o seu ritmo de prova para outro nível, acabando por alcançar uma volta de avanço sobre o Ferrari Nº 12, e tudo apesar das paragens mais prolongadas para que tanto Rolt como Hamilton pudessem continuar o seu processo de recuperação à base de cafeína. Reza ainda a história que, a cerca de 12 horas do término da prova, Hamilton requereu à equipa que o café, que segundo o mesmo lhe provocava tremores, fosse substituído pela única bebida que este considerava ser mais eficaz a resolver a situação: Brandy.

Cerca das nove da manhã, a sorte acaba por bafejar de novo o Jaguar Nº 18, com o Ferrari Nº12 a experienciar problemas com a embraiagem e o Nº 17 de Moss e Walker a várias voltas de distância (apesar de este primeiro impingir um ritmo avassalador na fase final da prova). A vitória do Nº 18 foi certa, mas não sem uma surpresa à chegada. O para-brisas apresentava danos consideráveis junto a Hamilton, ao que o mesmo explicou que a dada altura durante a prova, o mesmo tinha sido atingido por um pássaro, acabando por se estilhaçar, sobrando para a face e corpo de Hamilton o resultado da colisão. Possivelmente o estado em que o mesmo estava terá auxiliado à prosseguição em prova. Assim, e sem descanso de relevo aparente, a dupla Hamilton e Rolt celebraria a vitória para a Jaguar, certamente de uma forma muita similar ao que haviam feito 48 horas antes.