O setor dos transportes públicos foi o mais afetado pelo aparecimento da covid-19. No entanto, o impacto da pandemia na mobilidade varia de região para região, explicou Neil Sipe, professor honorário de Planeamento na Universidade de Queensland. Para este investigador, que se considera um otimista cauteloso, este era o choque que o sistema precisava.

“O futuro da nova mobilidade tecnológica depois da covid-19” foi o tema que Neil Sipe, professor honorário de Planeamento na Universidade de Queensland (Austrália) trouxe a esta edição da Portugal Mobi Summit.

“Com a covid-19 o impacto foi drástico em todas as formas de mobilidade. E quem sofreu mais foi o setor dos transportes públicos”, referiu este investigador.

Outra das certezas é que “o impacto da covid-19 nos transportes varia de geograficamente.” Uma afirmação que tem por base o Apple Mobility Trends, que dá informação diária desde fevereiro sobre a utilização de transportes públicos, de veículos próprios e até das deslocações a pé, usando como referência o dia 13 de janeiro de 2020.

“Na maior cidade da Austrália, Sidney, o uso de carros particulares subiu 7%, o uso de transportes públicos desceu 37% e o registo de deslocações a pé sofreu uma queda de 30%. Já em Londres, a utilização de veículo próprio desceu 4%, os transportes públicos registaram uma queda de 28% e andar a pé caiu 30%. Em Paris, houve uma queda de 18% no uso de carro próprio e uma subida de 12% nos transportes públicos. Registou-se ainda uma quebra de 40% quanto a andar a pé na capital francesa”, enumerou Sipe.

Mas como é que a nova mobilidade foi afetada pela covid-19? Neil Sipe responde. “O uso de ride sharing foi significativamente afetado. Mas, por exemplo, no caso da Uber, algumas das perdas foram compensadas com as entregas da Uber Eats. A Uber Eats, pela primeira vez nos Estados Unidos, teve resultados superiores à Uber.”

O uso de bicicletas e trotinetas elétricas também foi afetado, mas não tanto como o ride sharing. Ainda não se sabe o impacto nos veículos autónomos e na mobilidade enquanto serviço (MaaS), mas, no curto prazo, estas não serão o foco da atenção.

O impacto nos transportes públicos

As empresas de transportes tradicionais enfrentam a tarefa mais difícil. Têm de mostrar que são seguras – apesar de não existirem muitos casos documentados de contágios, o que interessa é a perceção das pessoas.

“Isso passará por uma maior limpeza dos transportes públicos. Em Hong Kong estão a usar robôs de limpeza para acelerar o processo”, exemplificou o orador da Portugal Mobi Summit.

Estas empresas têm também de garantir o distanciamento social. Mas com a quebra das receitas é difícil para as empresas aumentar a oferta. Algumas terão mesmo de reduzir drasticamente os seus serviços. “Não estou muito otimista em relação aos transportes públicos. As empresas estão a recuperar, mas não será fácil”, vaticinou.

Quanto a empresas como a Uber, poderá haver uma parceria com as empresas de transportes públicos. “É algo que já existia, mas que agora deverá aumentar. Algumas rotas menos procuradas de transportes públicos podem ser mais bem servidas, em termos económicos e de eficiência, por empresas de ride sharing”, prosseguiu Neil Sipe.

Mais cidades, menos governo

Na opinião deste investigador, tudo isto passa mais pelas cidades do que pelos governos. Como tem sido feito em cidades como Paris, Milão e Bogotá. “Montreal, por exemplo, está a converter 50 quilómetros de estrada para bicicletas. Esta retirada de espaço aos carros para o dar às bicicletas é uma aposta”, referiu o professor na sua intervenção. “O problema é que os governos dizem que os carros próprios são o meio mais seguro para se viajar. A França e a China, por exemplo, introduziram incentivos para a compra de carros.”

Os governos têm também de desenvolver estratégias para tornar mais atrativo o teletrabalho. “Isto passa por uma melhor velocidade de internet, pela criação de mais, e mais acolhedores, subúrbios, para que as pessoas não vivam isoladas”, afirmou Neil Sipe. Outra tendência é que as pessoas querem viver perto do seu local de trabalho para poderem ir a pé, tal como está a acontecer em Nova Iorque.

Mas para este investigador uma ideia é clara: “O futuro da mobilidade será liderado pelas cidades e não pelos governos. As cidades são as verdadeiras inovadoras, mas isso não é de agora. A solução para sobreviver será pela inovação, como os robôs de limpeza em Hong Kong.”

Um choque que era necessário

Na fase de perguntas e respostas, Charles Landry, o co-curador da Portugal Mobi Summit, chamou a atenção para as “cidades dos 15 minutos”, centros urbanos onde tudo está a 15 minutos de uma pessoa, questionando se esse será o futuro. “Claro que sim. A cidade dos 15 minutos é o que as pessoas querem. Nova Iorque é um exemplo, mas está a acontecer também em Brisbane. As pessoas estão a trabalhar em casa e querem continuar em casa”, sublinhou Neil Sipe.

Outra das questões em cima da mesa é se os centros das cidades podem ficar enfraquecidos com a tal aposta nos subúrbios. O professor honorário da Universidade de Queensland acredita que isso irá acontecer “em termos comerciais, como os restaurantes, por exemplo.” “A longo prazo depende dos governos, se mandam ou não as pessoas regressarem aos seus locais de trabalho a tempo inteiro. Esta é uma oportunidade que devíamos aproveitar”, reforçou Sipe.

Motivo de preocupação são as empresas de transportes públicos, que deveriam aumentar a sua oferta, mas estão enfraquecidas. Será que o investimento público é a solução? “Nos Estados Unidos as coisas estão bastante tremidas, porque o uso de transportes públicos é feito pelo setor mais baixo da sociedade. Na Europa, a coisa é diferente. Existe a tradição do uso dos transportes públicos e suponho que os governos vão apostar neste setor na medida do necessário”, referiu o investigador, dizendo ainda que na China, e na Ásia em geral, há menos aversão ao uso dos transportes públicos.

“Eu sou um otimista cauteloso. Esta realidade criou o choque que o sistema precisava há muito, como começar a trabalhar em casa. Mas isto não tem só a ver com a Covid, mas também com outros aspetos, como as alterações climáticas”, rematou Neil Sipe.

Texto: Ana Meireles | Foto: Ricardo Gonçalves/Global Imagens