Rui Esteves, coordenador da Direção de Estatísticas e Estudos Técnicos da Fidelidade, é um dos oradores da Road Safety, em Faro, que irão debater a mobilidade suave e a sinistralidade grave. Dois temas que colocam desafios tanto no presente como nas próximas décadas. E foi a olhar para um futuro cada vez mais próximo que o especialista percorreu a estrada da condução autónoma, relembrando que a inteligência artificial só faz sentido quando os humanos conseguem corrigir as falhas das máquinas e assumir a decisão final. Carros autónomos e dispositivos inteligentes são as duas frentes do combate à sinistralidade. A tendência é, portanto, para os acidentes diminuírem, mas outros perigos, como os riscos cibernéticos, irão ganhar dimensão.
Estou convicto de que tem de haver uma análise intensa sobre qual o grau de confiança nos resultados da inteligência artificial. Lembro-me de uma expressão – acho que de um responsável da IBM – que substituía o conceito de inteligência artificial por inteligência humana artificialmente assistida. No final da linha, continuamos a ter inteligência humana a recorrer a um conjunto de análises produzido por máquinas para tomar decisões rápidas e eficientes.
Há quem julgue que as máquinas podem tomar decisões isoladas.
O que, em parte, até concordo, desde que estejam reunidas algumas condições. Uma delas é, perante um erro, existir uma proteção que anule ou minimize as consequências de uma má decisão. Acima de tudo, tem de haver uma análise profunda sobre o grau de assertividade dos algoritmos e, principalmente, sobre os benefícios quando acertam e as consequências quando falham. O trabalho que tem de ser feito é sobretudo desenvolver um processo para avaliar os impactos dos falsos positivos e dos verdadeiros negativos nos resultados do algoritmo. Isto é, aquilo que estamos a considerar como verdade, mas que, na realidade, não é e, por outro lado, o que fazer quando os algoritmos estão a dizer que não é verdade, mas que na realidade é. Tudo isso pode ser mitigado se os resultados puderem ser analisados numa segunda triagem por alguém que vai tomar a decisão.
Consegue ilustrar isso com um exemplo?
Fala-se muito, por exemplo, de inteligência artificial para promover diagnósticos relativamente a doenças. Penso que nenhum médico iria tomar uma decisão com base unicamente no que diz um modelo. O que é expectável é que haja sempre alguém que olhe para os resultados com extrema atenção e tome uma decisão considerando aquele caso individual. Caso conclua haver probabilidade de as respostas do modelo não estarem certas, acredito que haverá sempre um segundo olhar para verificar esses resultados e tomar a decisão de diagnosticar ou não uma doença.
A condução autónoma tem desafios que, além de natureza analítica, são éticos: o clássico dilema de chocar contra um adulto ou uma criança. Estas questões estão no plano teórico ou há pessoas a trabalhar nestes aspetos?
Há grupos de trabalho que se debruçam sobre estas questões, criando condições para que a máquina possa mimetizar as decisões humanas. Sendo que algumas delas não são inequívocas. Duas pessoas perante a mesma situação tomariam uma decisão diferente. Isso será sempre um problema, mas imagino que o primeiro objetivo seja o de evitar ao máximo a colisão seja com quem for. Mas, em algum momento, é possível que essa situação se coloque verdadeiramente e não sei como é que a máquina vai decidir.
É ainda uma incógnita.
É e quando falamos de condução autónoma, há vários patamares de auxílio, que têm vindo a ser implementados, atuando em substituição das pessoas, conseguindo com isso prevenir alguns acidentes. Sobretudo naqueles casos em que as pessoas não estão concentradas na condução. Muitos acidentes acontecem por falha humana e os sistemas de apoio à condução desempenham um papel importante na redução do número de sinistros. Estamos aqui a falar de duas vertentes distintas, mas complementares – uma destina-se a melhorar o desempenho de quem conduz e a outra está focada em tornar os carros mais inteligentes e capazes de reagir isoladamente. A condução autónoma procura otimizar os algoritmos para garantir que os carros sejam mais capazes de reduzir o número de sinistros. Há também a aplicação da inteligência artificial para monitorar o comportamento dos condutores, detetando cansaço no rosto, condução distraída ou agressiva. E ainda emitir alertas ou ensinar as pessoas a serem mais responsáveis e a aumentarem a concentração na estrada.
Com a expectativa de que a sinistralidade irá baixar significativamente com a condução autónoma, que futuro têm as seguradoras no ramo automóvel?
As seguradoras não veem como mau a tendência para a sinistralidade vir a diminuir. Obviamente que vão ter uma transformação no tipo de produtos, na forma com os contratos são distribuídos, mas isso já hoje em dia se sente. Todas estas novas formas de mobilidade criadas com as soluções de car sharing estão a retirar a ênfase no carro próprio, mas isso não significa que haja menos automóveis a circular. A tendência será para haver mais prestadores de serviços, substituindo o carro particular pelo carro de empresas.
Haverá tempo para reagir a essas mudanças?
Mesmo que, a partir de agora, todos os carros passassem a ser autónomos, continuaria a existir um número significativo de carros convencionais porque o nosso parque automóvel tem uma média de 11-12 anos. Ou seja, essa transformação nunca acontecerá de um momento para o outro. A expectativa é que, gradualmente, o ramo automóvel enquanto volume de negócios acabe por reduzir o seu peso. Provavelmente haverá uma alteração do tipo de coberturas que se vendem – hoje a principal é a responsabilidade civil, mas, se o risco de acidentes for reduzido, os preços vão baixar e os clientes passam a contratar também coberturas de danos próprios.
Uma coisa compensa a outra.
Exato. E, pensando a longo prazo, surgirão outras entidades que terão de ter a sua responsabilidade civil, nomeadamente as que vão conceber e gerir os modelos e a própria circulação automóvel. E vão surgir outras alternativas de serviços associadas aos riscos cibernéticos, inerentes às tecnologias, ou de saúde, ligados à longevidade. É natural que as seguradoras evoluam para se adaptarem às mudanças. Há 40 anos, por exemplo, o seguro automóvel não era obrigatório, os automóveis eram poucos, mas já havia seguradoras que, com o risco de circulação a assumir maior peso, cresceram no ramo automóvel. Houve uma altura, aliás, em que a sinistralidade era catastrófica, mas foi possível reduzir em muito o número de acidentes, apesar de hoje haver muitos mais carros a circular. E, como tal, as seguradoras estão cá para proteger e acompanhar os tipos de riscos que a sociedade, as empresas e as pessoas estão expostas.
Qual é a sua perspetiva sobre todos esses cenários de previsão do futuro, boa parte, muito detalhados.
A minha perspetiva pessoal é de que os cenários extremados não serão os mais confiáveis. A tecnologia avança muito depressa, mas nem sempre se transforma naquilo que nós antecipávamos. Haverá sempre mudanças inesperadas. Muitas vezes, quando se fazem previsões muito específicas, é-se ultrapassado pela realidade. Quando se é taxativo a prever que determinada situação vai evoluir de determinada maneira em 5-10 anos, o tiro geralmente acerta ao lado. Pegando no caso da telemática aplicada ao ramo automóvel – isto é, a capacidade de monitorar e fazer uma tarifação com base na condução específica de cada pessoa – há uma década, era o next big thing. Passado dois ou três anos, antecipou-se uma verdadeira explosão, que, afinal, ainda não aconteceu. E a forma tradicional de ter os seguros automóveis mantém-se como uma das componentes mais relevantes.
Mas eletrificação dos automóveis é uma previsão mais do que certa.
Aí o papel da regulamentação é determinante. Ao se imporem datas específicas para a obrigatoriedade dos carros elétricos –, acho difícil, por exemplo, fazer o mesmo para os autónomos – e se interditarem gradualmente a circulação dos carros próprios nas cidades, isso, obviamente, potencia a normalização dos carros partilhados e elétricos, que ganham peso e relevância na forma como se circula nos centros urbanos.
Kátia Catulo
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