Não será por acaso que é comum dizer-se que “há mais astronautas que pilotos de Fórmula 1”. Com apenas vinte lugares disponíveis na grelha de partida, a entrada no restrito mundo dos pilotos de Fórmula 1 tornou-se um exclusivo de valor inestimável.

Qualquer jovem piloto sonha um dia alcançar o escalão máximo do desporto automóvel. A caminhada até à Fórmula 1 é sinuosa, muitas vezes injusta, e só muito poucos conseguem cumprir com sucesso a grande marcha. Um bolso sem fundo de um parente ou o patrocínio de um governo de um país em ascensão não chega nos dias de hoje para assegurar um poiso entre os – teoricamente – vinte melhores do mundo.

Na temporada de 2017, Lance Stroll e Antonio Giovinazzi, este pela razão excecional que foi a lesão de início de época Pascal Wehrlein, foram os únicos pilotos a juntar-se à elite. Durante o defeso, quando Valtteri Bottas se transferiu para a Mercedes, o construtor germânico ofereceu à Williams um bom desconto nas suas unidades motoras, em troca de um volante para o seu protegido Wehrlein, mas a equipa britânica recusou.

A Williams preferiu colmatar a vaga com Felipe Massa que aos 35 anos tinha já anunciado com fanfarra e lágrimas o seu adeus ao ‘Grande Circo’. A equipa fundada por Frank Williams e gerida pela filha Claire justificou a contratação do brasileiro, por este ser “uma mais valia para ajudar ao desenvolvimento do novo carro durante este período de mudança de regulamentações técnicas”. A experiência de Massa, a contrastar com a falta dela do seu companheiro de equipa, usurpou a oportunidade de um reconhecido talentoso jovem piloto ocupar um dos lugares numa das mais tradicionais equipas do paddock. A isto, ainda se aliou o facto do principal patrocinador da equipa, a marca de bebidas alcoólicas Martini, precisar de um piloto com mais de 25 anos para o cargo de embaixador.

Numa disciplina em que a experiência vale milhões, no sentido lato da palavra, Massa é o terceiro piloto mais experiente da atual Fórmula 1, tendo apenas menos corridas disputadas que Fernando Alonso e Kimi Räikkönen. Com os melhores pilotos a perpetuarem-se nos lugares de topo e a escassez de lugares na segunda parte do pelotão, a renovação faz-se a conta gotas para desespero de todos que aguardam a sua vez na fila de espera.

Em lista de espera

Nas últimas temporadas a Red Bull tem sido a maior produtora de talentos, isto mesmo tendo em consideração que Max Verstappen nunca fez parte do programa de jovens pilotos da marca de bebidas energéticas e foi desviado da Mercedes-Benz na Fórmula 3, seduzido por um bilhete de entrada direta no Fórmula 1, oferta que os homens de Estugarda não conseguiram igualar. Daniel Ricciardo, Daniil Kvyat e Carlos Sainz Jr vieram todos da ‘cantera’ da Red Bull que aparenta estar em ‘banho-maria’ por estes dias. Pierre Gasly foi colocado a marinar esta temporada no campeonato japonês Super Fórmula, até que finalmente, no Grande Prémio da Malásia foi chamado ao segundo volante da Toro Rosso, usurpando o lugar que pertencia a Kvyat, que mesmo depois da saída de Sainz para a Renault, viu ser chamado para o seu lugar Brendon Hartley, Campeão do Mundo de Resistência com a Porsche, vencedor de Le Mans, mas que é tudo menos um jovem a despontar para a F1. Entretanto, ambos já foram confirmados para 2018 na equipa de Faenza.

No entanto, segundo o Dr Helmut Marko, o triturador de carreiras e mentor do Red Bull Junior Team, o que falta é mesmo talento de verdade nos escalões inferiores. Com a excepção de Gasly, “não há mais ninguém de momento. Se olharmos para as outras categorias, sem ser o (Charles) Leclerc, não há mais ninguém. O (Lando) Norris é muito bom, mas também ele comete muitos erros”, disse o conselheiro número um de Dietrich Mateschitz numa entrevista recente. “O que está realmente errado é o número de categorias”, diz o influente austríaco. “Com menos campeonatos teríamos grelhas de partida com 30 carros, e o nível iria subir e muito e nós poderíamos ver quem é realmente bom.”
A descrença é tanta que Marko aceitou que a Toro Rosso vendesse as primeiras sessões de treinos-livres dos grande prémios de Singapura, Malásia, EUA e México ao jovem indonésio Sean Gelael que começou nos ralis e que ainda não conseguiu resultados de vulto fora do continente asiático.

Sem espaço para chamar à titularidade jovens promessas, o negócio das sessões das FP1 vai-se afirmando, dando a possibilidade a pilotos como o mexicano Alfonso Celis, que milita na World Series Formula V8 3.5, o russo Sergey Sirotkin, ou o próprio Giovinazzi, que curiosamente a carreira nos monolugares foi financiada por Ricardo Gelael, pai de Sean e representante na Indonésia da cadeia de fast-food norte-americana KFC, testarem os monolugares da última geração em fim-de-semana de corrida.

Com um intuito de gerar mais oportunidades aos pilotos das categorias inferiores, as equipas de Fórmula 1 são hoje obrigadas a utilizar ‘rookies’ em dois dos quatro dias de testes que podem fazer durante a temporada. Não foi por acaso que no teste realizado em Hungaroring, no início do mês de agosto, apareceram de uma assentada nomes tão variados como Nobuharu Matsushita e Gustav Malja a conduzir pela Sauber, Luca Ghiotto pela Williams, Nicholas Latifi num monolugar da Renault, Santino Ferrucci com a Haas e Nikita Mazepin e Lucas Auer pela Force India.

A maior parte destes dias de testes aconteceu porque os próprios pilotos pagaram elevadas quantias para gozar desta oportunidade quase única. Porém, houve também quem preparasse o futuro, pois quase todos os envolvidos na Fórmula 1 têm programas, que diferem muito entre si, para jovens pilotos.

Antecâmara que precisa de o ser
Helmut Marko queixa-se da dispersão de campeonatos, mas a realidade não é tão áspera como este afirma. Quando chegou à presidência da FIA, Jean Todt arrumou as categorias de acesso à Fórmula 1 e hoje o número é imensamente inferior ao que era há uma década, sendo que apenas três, depois do fim da Fórmula Renault 3.5, entram para as contas de quem avalia currículos – a Fórmula 2, a GP3 Series e o europeu FIA de Fórmula 3. Em 2019 o espectro será ainda menos alargado com o fim da GP3 e do europeu da Fórmula 3, com ambas categorias a darem lugar ao recém-anunciado Campeonato Internacional FIA de Fórmula 3 no seu lugar.

Os fenómenos Verstappen e Stroll que transitaram do Europeu da Fórmula 3 diretamente para a Fórmula 1, e de Esteban Ocon e Wehrlein, que fizeram do DTM o trampolim para o topo, colocaram em causa a utilidade da Fórmula 2 nos dias de hoje.

Embora isso tenha acontecido este ano com Charles Leclerc, um título de Fórmula 2 não dá garantias de entrada direta na Fórmula 1, mas as estatísticas do campeonato são ainda assim bastante reconfortantes. Em doze temporadas da GP2 Series – desde este ano Campeonato FIA de Fórmula 2 – apenas dois campeões não chegaram à Fórmula 1: Davide Valsecchi (2013) e Fabio Leimer (2012). O italiano chegou a ser piloto de reserva da Lotus F1 Team, conduzindo os monolugares da equipa inglesa nos eventos para a imprensa. Hoje, Valsecchi está do outro lado, sendo um efusivo comentador das transmissões televisivas da Sky Sport em Itália, para além de fazer umas provas de montanha por puro divertimento no seu país.

Já o suíço foi piloto de reserva da Manor Marussia, com intenções de um dia ser promovido, o que nunca aconteceu. Leimer pode ser visto hoje a competir no Ferrari Challenge europeu: “É sempre bom quando um dos nossos campeões consegue um lugar na grelha de partida da Fórmula 1 no ano seguinte, mas olhemos para o que aconteceu ao Stoffel (Vandoorne) e Pierre (Gasly). Olhem para o que aconteceu ao Jolyon”, assevera Bruno Michel, o responsável máximo do campeonato que é a antecâmara da Fórmula 1. O dirigente francês que continua a acreditar que esta continua a ser a fórmula certa. “Eles não conseguiram entrar na grelha de partida numa época, mas conseguiram lá chegar eventualmente, e isso é o mais importante para mim.”

Bruno Michel deverá voltar a sorrir muito em breve. Leclerc segue isolado rumo ao título da Fórmula 2 e, graças à “mãozinha” da Ferrari, aquele a quem Kimi Räikkönen deixou rasgados elogios é esperado na Sauber no próximo ano.

Entretanto, para não se deixar desatualizar, a Fórmula 2 vai introduzir na próxima temporada um novo monolugar, novamente construído pela Dallara, e onde se destaca a presença visível do sistema de segurança Halo, a utilizar a partir do próximo ano na Fórmula 1. Outras novidades num carro que se espera que melhor prepare os “jovens lobos” para o “salto final”, destacam-se o motor V6 de 3.4 litros turbo da Mecachrome, uma asa traseira mais baixa e mais larga, uma asa da frente de maior dimensão e ainda um sistema DRS atualizado.

Contudo, por responder está a questão, será o novo carro argumento suficiente para tornar atrativa uma categoria que amarga para ter uma grelha de partida estável? Como diz, Adrian Campos, ex-piloto e chefe de equipa, neste momento, “não há 20 pilotos com budget para correr de Fórmula 2…”

Por existirem sérias dúvidas quanto a isso e para reforçar a importância da última categoria de formação, FIA reformulou o sistema de pontos necessários à efetivação da super-licença, o que praticamente obrigará todos os pilotos a passarem pela Fórmula 2 antes de entrarem na Fórmula 1.

Dinheiro vs Talento
A escassez de volantes na Fórmula 1 propala a discussão sobre o real valor daqueles que lá estão e principalmente daqueles que estão a chegar. Nos dias que correm, com facilidade qualquer piloto é rotulado pejorativamente de ‘pay driver’, algo que no passado era perfeitamente bem aceite, ou, por exemplo, não tivesse Niki Lauda comprado a sua entrada na Fórmula 1 com um empréstimo a um banco dando como garantia o seu seguro de vida.

Filho de um dos homens que tornou a marca Tommy Hilfiger um colosso no mundo da moda, Lance Stroll, que venceu todas as categorias de monolugares por onde passou, e que na sua época de estreia na Fórmula 1 subiu ao pódio, não fugiu ao dístico. Jolyon Palmer foi o campeão da GP2 Series com mais pontos somados, também não escapou ao rótulo. Marcus Ericsson, que é provavelmente o menos cotado dos vinte pilotos do pelotão e cujos patrocinadores assumiram o controlo da Sauber o ano passado, também carrega consigo o indesejado letreiro, apesar de ter no seu currículo um vice-campeonato da GP2 Series, um título japonês de Fórmula 3 e um Europeu de Fórmula BMW.

Para evitar que um qualquer piloto com uma mala de dinheiro comprasse uma entrada direta na Fórmula 1, desde 2016 a FIA mudou as regras de obtenção da super-licença, requerendo 40 pontos por um período de três anos.

“Julgo que é muito difícil chegar à Fórmula 1, até porque hoje em dia são poucos os lugares disponíveis, mas sem talento é ainda mais complicado”, afirma Álvaro Parente que chegou a ser apontado como piloto de reserva da Virgin Racing para a temporada 2010. “O talento é indispensável, mas é preciso ter boas ligações que nos permitam criar pontes com as pessoas certas, só essas duas condições juntas permitem que um jovem piloto ascenda à Fórmula 1. Julgo que para entrar o dinheiro não é tão importante, sendo mais relevante para a carreira nas competições de promoção”, realça o piloto da cidade do Porto.

Para António Félix da Costa a aptidão ainda continua a ser determinante na altura das equipas decidirem a sua formação de pilotos, mas o ex-piloto do Red Bull Junior Team também destaca o poder do dinheiro. “O talento continua a ser muito importante, pois não é qualquer um que entra na Fórmula 1, mas definitivamente o dinheiro tomou conta das importantes decisões e muitas vezes acontece mesmo o dinheiro sobrepor-se ao talento”, salienta.

O agora piloto de GT e Fórmula E avaliza que na atualidade “temos uma boa grelha de qualidade na Fórmula 1, mas alguns pilotos não fizeram por merecer o seu lugar” e teme que essa realidade possa “cada vez mais existir, infelizmente”. De qualquer forma, Félix da Costa admite que “é bom vermos pilotos como o Verstappen, Vandoorne, Ocon, Wehrlein, Bottas ou Hulkenberg na Fórmula 1, pois foram pilotos que conseguiram entrar no Grande Circo apoiados por marcas, mas sem patrocinadores diretos, o que é bom para o desporto.”

O que ficou a faltar aos portugueses…
Em 2006 Tiago Monteiro completou dezoito Grande Prémios de Fórmula 1 e foi o último piloto português a chegar ao topo da pirâmide. Contudo, outros três portugueses estiveram muito lá perto na última década, e só um conjunto de fatores desfavoráveis lhes roubou a oportunidade de uma vida.

“Ao longo da minha carreira mostrei competitividade em todas as categorias por onde passei – fui campeão da Fórmula 3 Britânica, campeão da World Series by Renault, venci corridas na GP2 Series, penso que sou o único português a tê-lo feito – portanto, julgo que ficou provado que tinha o talento e as características necessárias para chegar à Fórmula 1”, atesta Parente, que relembra que fez “um teste com a Renault F1 que correu igualmente muito bem”. Contudo, o portuense tem a perfeita consciência do que falhou no momento decisivo. “Quando chegamos à porta da Fórmula 1 há também interesses comerciais e, quando foi preciso apresentar um pacote financeiro, por um motivo ou por outro, não foi possível e a oportunidade gorou-se”, recapitula Parente que chegou a apresentar-se ao lado de Timo Glock e Lucas Di Grassi quando o VR-01 Cosworth foi mostrado à imprensa.

Apesar deste ser um episódio de má memória, Parente realça que “no entanto, consegui chegar ao ponto de ter sido contratado por um construtor e, no fundo, cumpri o meu sonho – tornar-me piloto profissional.”

Quatro anos depois, os portugueses voltaram a acreditar num piloto luso na Fórmula 1. António Félix da Costa estava numa fase crescente no Red Bull Junior Team, mas quando chegou o momento da verdade, outros valores mais altos se levantaram, e a Toro Rosso escolheu Daniil Kvyat, então prestes a sagrar-se campeão da GP3 Series, para o lugar.

“Penso que não é difícil entender que a Rússia ao “comprar” um Grande prémio fez muita força para ter um piloto russo na Fórmula 1, o que obrigou a mexidas internas e de bastidores de forma a colocarem lá o Kvyat. Infelizmente calhou-me a mim, e aqui sim o dinheiro sobrepôs-se ao passo natural que seria eu entrar por via da Red Bull Junior Team”, recorda Félix da Costa, que acabaria por continuar ligado à Infiniti Red Bull Racing, exercendo o papel de piloto de reserva em vários eventos do mundial. “De qualquer forma isso são águas passadas e apesar do talento do Kvyat que não está em causa. Penso que ele deveria ter feito mais um ou dois anos de World Series ou GP2 Series antes de entrar, pois a rapidez de facto existe, mas em termos de maturidade ainda estava a crescer.”

Tal como Parente, o piloto de Cascais, não se arrepende do rumo que deu à sua carreira, estando hoje ligado a um construtor com uma vastíssima tradição no automobilismo.

“Gostava de facto de ter lá chegado, era um sonho de uma vida, mas o mais importante é que estou bem e feliz na família BMW e em campeonatos onde realmente o talento é valorizado como a Formula E e outro campeonato de grande nível de GT.”

Antes de Parente e Félix da Costa, também Filipe Albuquerque espreitou um lugar na Fórmula 1. O piloto de Coimbra, então membro do Red Bull Junior Team, chegou a participar em vários “roadshows” promocionais da Red Bull em 2007, conduzindo um RB1 com um motor V10 montado, e também chegou a fazer testes de linha reta pela marca de bebidas energéticas austríaca. Contudo, o Dr Helmut Marko tinha outros planos para o português e a ensejo esfumou-se.

Sérgio Fonseca

Programas de jovens pilotos

Ferrari Driver Academy
– Charles Leclerc (F2)
– Antonio Fuoco (F2)
– Guanyu Zhou (FIA F3)
– Giuliano Alesi (GP3)
– Marcus Armstrong (F4 Itália)
– Enzo Fittipaldi (F4 Itália)

Force India:
– Jehan Daruvala (FIA F3)
– Nikita Mazepi (FIA F3)

Honda Formula Dream Project
– Nobuharu Matsushita (F2)

– Nirei Fukuzumi (GP3),

– Tadasuke Makino (FIA F3),

Mercedes-AMG Petronas Motorsport Junior
– Esteban Ocon (F1)
– Pascal Wehrlein (F1)
– George Russell (GP3)

McLaren-Honda Young Driver Programme
Nobuharu Matsushita (F2)
Nyck Vries (F2)
Lando Norris (FIA F3)

Red Bull Junior Team
– Pierre Gasly (Super Formula)
– Niko Kari (GP3)
– Dan Ticknum (FR e GP3)
– Neil Verhagen (FR)
– Ricard Verchoor (FR)

Renault Sport Academy
– Jack Aitken (GP3)
– Jarno Opmeer (FR)
– Sun Yue Yang (FR)
– Max Fewtrell (FR)
– Marta García (F4 Espanha)
– Christian Lundgaard (F4 SMP)

Sauber Young Driver Development Programme
– Tatiana Calderón (GP3)

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