944 Turbo S: O Porsche esquecido

01/08/2020

Mesmo em período de confinamento, ou semi-confinamento para ser mais exato, continua a valer a pena sair à procura de automóveis interessantes. Às vezes, a gestão de expectativas providencia-nos umas surpresas engraçadas.

Nos automóveis como em muitas outras coisas, quando esperamos experiências fantásticas, acabamos por não as ter. Mas, quando estas, as expectativas, são medianas ou baixas, as outras, as experiências, podem ser fora-de-série…

O Porsche 944 deriva directamente do infame 924, um projecto conjunto da Porsche e da Audi. Em 1981, a Porsche fez alinhar em LeMans, um protótipo chamado precisamente 924 GTP LeMans. Tendo como base o 924 Carrera GT, a marca aproveitava também para estrear um novo propulsor. Em vez do 2-litros da Audi, a Porsche desenvolveu um 2.5-litros, mantendo a configuração de quatro cilindros, mas com dupla árvore de cames e dois veios de equilíbrio, uma solução pouco usual na época, que providenciava um melhor equilíbrio de massas internas do motor e eliminava vibrações indesejadas. Na prática, um quatro cilindros com a suavidade de um seis cilindros. Este motor era, na sua essência, metade do 5.0-litros V8 do 928, embora não partilhasse componentes internos.

O 944 foi apresentado em 1982, substituindo o 924 como modelo de base da marca. Mais bem equipado e mais refinado, tinha também um melhor comportamento e travões com dimensões mais generosas e era também mais confortável.

A versão turbo foi apresentada em 1986. Tendo 220cv, elevava o 944 para um patamar de performance já muito perto do 911. Com um 0-100km/h de 6 segundos e uma velocidade máxima de mais de 250km/h, esta versão tinha ainda os travões do 911 e a suspensão melhorada. A caixa de velocidades reforçada tinha relações mais curtas e radiador de óleo próprio. O motor tinha mais de trinta componentes revistos para lidar com a superior carga térmica e pressões internas mais elevadas.

A versão que nos interessa, a “S”, foi introduzida em 1988. Com um turbocompressor KKK ligeiramente maior e com uma curva de sobrealimentação diferente, o “S” atingia os 250 cv. Esta variante vinha equipada com a opção M030 que consistia em amortecedores Koni reguláveis, distância ao solo também regulável, barras estabilizadoras de diâmetro superior, casquilhos de suspensão mais duros e barras de reforço da carroçaria. O diferencial autoblocante a 40% era standard, assim como os discos e pinças de travões bastante melhorados. Os componentes do eixo dianteiro vinham directamente do 928 S4.

A unidade à nossa disposição é célebre no universo Porsche mais marginal, em Portugal. Já tinha sido alvo de uma breve apresentação, pelo jornal AutoSport em 1988. Era das primeiras unidades de produção, daí a combinação de cores e pertencia ao parque de imprensa do importador, na época, e deixou saudades, como se pode ver na foto.

Possuidor de um hardware impressionante, não será difícil adivinhar que o “S” é um sério concorrente aos lugares cimeiros do ranking dos melhores desportivos jamais construídos… e que continuam a ser um segredo muito bem guardado, ou seja, que quase ninguém sabe!

Ofuscado pela exuberância e fama do irmão mais velho, sim o 911, o 944 turbo S é uma jóia que só agora começa a ser apreciada. Temos que agradecer à escalada de preço quase insana, dos modelos de motor traseiro da marca, para que muitos entusiastas começassem a olhar para estes, os de motor dianteiro, até agora considerados “menores”. Mas de menor, este Porsche não tem nada. Com uma personalidade vincada, o 944 tem argumentos mais do que suficientes para se impor a qualquer 911 da mesma altura. Com uma facilidade de utilização desconcertante, o chassis é mais do que competente para digerir tanto a potência do propulsor como as curvas mais apertadas, mesmo em sucessão quase infernal. A inércia do conjunto, nestas situações, prima pela ausência. Não tendo a finesse de alguns produtos de outros fabricantes, no entanto, compensa este facto com uma competência a toda a prova, sem grandes floreados. Simples, directo e focado… muito alemão.

A precisão do trem dianteiro é exemplar, quase avassaladora, ajudada pela direcção com um grau de assistência que não será do agrado de todos. Sim, é assistida, mas pesada ao mesmo tempo. A parte boa é que não absorve ou disfarça a informação necessária para uma condução a um ritmo mais entusiasmante e é muito fácil de dosear. Os bancos não merecem qualquer reparo tendo em conta que providenciam apoio mais do que necessário para o condutor não pensar em como não ir parar ao banco do passageiro a meio de uma curva mais exigente. Os travões, mesmo numa sessão algo puxada e num dia de muito calor, não dão qualquer sinal de fadiga ou degradação da viagem do pedal. Bons, muito bons!

Graças ao equilíbrio geral dos diversos sistemas, é muito fácil dosear a potência em curva. O acelerador, de curso longo, permite ao condutor aplicar o estritamente necessário para realizar trajectórias limpas, sem desequilibrar o conjunto. Graças ao binário, abundante e bem distribuído pela gama de rotações, também permite o contrário, se for um daqueles dias!Mas a grande surpresa é o motor. Não pela potência que debita, que não será de todo impressionante nos dias de hoje, mas pelo carácter! Confesso que neste departamento estava à espera de algo típico dos anos 80 do século passado: um turbolag monumental e de repente uma avalanche de cavalos algo descontrolados. Engano meu… lá está, as expectativas a saírem goradas. Mas ainda bem que foi para muito melhor.

A partir das 2800 rpm, o turbo começa a fazer-se sentir, e é de uma suavidade desconcertante. Às 3500 rpm já está a debitar uma dose muito confortável de pressão e perde um bocado da referida suavidade. Chega a marca das 4000 rpm e já está a plenos pulmões… ou assim pensava eu! Mil rotações mais à frente e a suavidade desapareceu, completamente esquecida, para dar lugar a um crescendo de emoção crua e visceral, sem qualquer tipo de filtro, ao mesmo tempo que pressiona os ocupantes contra os excelentes e confortáveis bancos, inexoravelmente e sem piedade. Isto dura até ao redline, às 6200 rpm. Este tipo de vivacidade a altos regimes, não é fácil de encontrar em motores turbocomprimidos, ainda menos desta época. É tão inesperado que quase ultrapassa o limite entre o prazer e a dor. Passando para a relação seguinte, o processo repete-se, sem se notar um abrandamento. Sem dúvida que a caixa de escalonamento curto potencia tudo isto e nota-se que a equipa que desenvolveu este automóvel eram entusiastas e petrolheads sem qualquer tipo de salvação possível.

Em suma, não conseguiria ter imaginado uma melhor tarde de sábado… e só posso dizer que enquanto existirem marcas a produzirem Automóveis como este, com um A grande, deixem vir os eléctricos, os híbridos, os SUV e outras modernices tão em voga actualmente. Haverá sempre lugar para realizações fora-de-série como esta… e compradores para lhes dar o devido valor.

Agora, ainda tenho tempo para mais uma voltinha!