A origem e evolução dos veículos utilitários desportivos

30/01/2023

Em tempos passados, qualquer automóvel poderia ser considerado como um SUV, tal o estado das estradas, ou a ausência destas. O período a isso obrigava, e a evolução da tecnologia e muitas vezes a necessidade do progresso foram proporcionando cada vez melhores capacidades de todo-o-terreno, o que seria particularmente apropriado a partir da Segunda Grande Guerra, após a qual este tipo de veículo proliferou.

A oferta de veículos todo-o-terreno estendeu-se à Europa, Japão, e Estados Unidos, em muitos casos tendo como base projectos militares, como o primeiro Nissan Patrol, DWK Munga, ou Fiat Campagnola.

Com dois polos bem estabelecidos, turismos e todo-o-terreno, era uma questão de tempo até que surgissem soluções intermédias entre ambos, estabelecendo-se duas vertentes bem definidas. Num primeiro caso, veículos com mecânica de todo-o-terreno, mas com uma carroçaria mais aproximada a um turismo, e num segundo turismos com distância ao solo mais elevada, protecções específicas de carroçaria e, eventualmente, tracção total.

Como poderemos ver posteriormente, estas soluções intermédias iniciais tiveram várias facetas. Por extremos podemos encontrar o IH Travelall e o Renault Rodeo, que nada mais têm em comum do que o facto de terem sido perspectivados com algo mais em vista do que o asfalto. Se nos considerarmos puristas e tomarmos um SUV como uma espécie de todo-o-terreno aligeirado, um dos primeiros antecedentes do segmento seria o Jeep Cherokee, mas bem antes deste houve veículos que mesclaram perfeitamente o supramencionado conceito de turismo e todo-o-terreno.

Nascia assim o segmento SUV, sem que à altura houvesse grande noção do mesmo, um segmento que divide opiniões e propósitos, e que actualmente encontra espaço de mercado na maior miscelânea possível de características de diferentes segmentos. Dos inovadores aos icónicos, seguem-se alguns destaques das duas vertentes supra-mencionadas de uma história em constante actualização.

O Chevrolet Model EB Suburban de 1935, com uma distância entre eixos de 2,85 metros e um motor de seis cilindros com uma única árvore de cames à cabeça, poderia perfeitamente ser considerado como o primeiro SUV, ainda que o termo apenas viesse a ser cunhado largas décadas depois.

A Willys-Overland começou a fabricar versões à civil do Jeep (CJ) em 1945, e a partir daí estendeu a sua gama para o fabrico de uma larga panóplia de veículos, como camiões, autocarros e furgonetas. O Station Wagon de 1946, equipado com tracção traseira, suspensão dianteira independente e carroçaria metálica (e não de madeira), representou uma tentativa de concretizar um veículo que fosse adequado para levar comodamente sete pessoas. Em 1949 passou a ser equipado com tracção total e eixos rígidos.

Já o Volvo TP21 “Sugga” de 1953 (designação para comercialização civil P2104) apresenta-se como um caso típico de um veículo militar com elementos de carroçaria adaptados de veículos de passageiros. Tinha eixos rígidos, tracção traseira com eixo dianteiro conectável, uma redutora de relação muito curta, elevada distância ao solo (25 centímetros). Estava equipado com um motor industrial de seis cilindros em linha a gasolina com válvulas laterais, com uma capacidade de 3,6 litros e potência de 90 cavalos. Pela sua traseira arredondada começou a ser designado de “sugga”, que em sueco significa porca, sendo hoje em dia muito apreciado pelos coleccionadores suecos.

O fabricante sueco GAZ teve também uma interpretação deste fenómeno, desvendando (em plena guerra) o M72 em 1945, um veículo com carroçaria de um veículo turismo, mas com chassis derivado do fabrico de camiões, com eixos rígidos e tracção integral. Após a guerra haveriam de ser lançadas outras versões como o M20, com alterações provenientes do veículo militar todo-o-terreno GAZ-69. Não se pode dizer que seja um veículo civil, já que os poucos que se fabricaram só estiveram à disposição de altas patentes militares soviéticas. Com o mesmo princípio, a Moskvich fabricou o 410.

A Willys-Overland e a Internacional Harvester, duas empresas relativamente pequenas, adiantaram-se na divulgação do conceito de primeiro veículo de passageiros para uso misto aquando do lançamento do Travelall em 1953. Com um chassis que praticamente provinha de um camião e tracção traseira (a partir de 1956 foi adicionada a opção de tracção integral), mas com carroçaria elegante e interiores luxuosos, a parceria entre os dois fabricantes propunha-se a cumprir o seu objectivo. Foram fabricadas quatro versões distintas do Travellal, tendo sido produzido até 1975.

Um dos exemplos que iremos mencionar neste artigo, como não poderia deixar de ser, é o Citroën 2CV Sahara. Concebido no final dos anos 50 como um automóvel para o meio rural, o Sahara, com dois motores e duas caixas independentes, possui uma manobrabilidade similar à de um típico 2CV, e um acelerador e uma manete que permitia a actuação sobre os dois motores em simultâneo.

Destinado ao público americano, o Suburban não tinha como intenção uma literal aplicação à utilização nos subúrbios, mas sim era uma designação habitual para veículos que representavam um misto entre turismos e furgonetas, geralmente com carroçaria em madeira. Em 1937 a General Motors lançou o Carryall Suburban, sendo considerado por muitos como o primeiro verdadeiro SUV. A última geração data de 1960.

A primeira geração do Ford Bronco tinha um rasgo de design praticamente revolucionário para o mercado americano da altura: era pequeno. Com 2,3 metros de largura e 3,8 de longitude não era consideravelmente maior que o primeiro Suzuki Vitara, sendo até mais pequeno do que o IH Scout 80, outro veículo americano do mesmo género. A ideia partiu do mesmo responsável pela concepção do Mustang, Donald N. Frey. Possuía tracção integral redutora com motores a gasolina de seis e oito cilindros chegando à capacidade de 4,9 litros.

Alcançando a sua segunda menção neste artigo, a Citroën desenvolveu um projecto destinado aos países em desenvolvimento com o nome genérico FAF (facile à fabriquer et facile à financer), tendo também sido comercializado sob as designações Pony, Vanclee, Yagan, ou simplesmente 4×4 em outros mercados. Possuía base no 2CV com uma carroçaria de chapa aberta ou fechada e uma ou duas filas de assentos. O motor era de dois cilindros e tinha uma arquitectura boxer e tracção dianteira ou integral, com uma redutora de relação 2,6 para as três primeiras mudanças de uma caixa de quatro.

O Mehari poderia também surgir com nobre distinção, mas será referida a resposta da Renault a este, o Rodeo 4 (com base na 4L). Para além das modificações do equipement pistes na carroçaria e interiores, possuía um motor de 845 centímetros cúbicos. Fabricou-se até 1981, e desde 1972 conviveu com o Renault Rodeo 6 (com plataforma e motores do Renault 6), tendo sido substituído pelo Rodeo 5 (1981-1986), de linhas mais modernas. O preparador francês Sinpar, que de entre outras fazia versões da R4 com tracção total, também as oferecia para os Rodeo.

Durante a década de 70, surgiu a ofensiva nipónica, da qual se destacará o peculiar Subaru Leone. Com aparecimento em 1972, coincidiu com as olimpíadas de inverno em Sapporo. A Subaru já havia procurado anteriormente a implementação com sucesso de tracção integral, mas a experiência com o FF-1 não tinha cumprido os desígnios. No Leone, já estava presente um motor de arquitectura boxer e tracção integral tal qual é tão comum nos modelos Subaru dos dias de hoje. Com uma distância ao solo elevada e equipado com pneus mistos, superou as expectativas de vendas dentro e fora do Japão, tendo motivado a marca na aposta do fabrico de modelos com tracção integral.

Partindo do Simca 1100, a Matra concretizou um veículo com vocação de utilização mista com uma enorme quantidade de variantes, chegando algumas delas a ter três filas de assentos e outras a serem utilizadas como veículos industriais. Em todas elas o motor seleccionado era um Poissy de 1,4 litros, com geralmente 80 cavalos. Até 1980 foi considerado Matra Simca Rancho, e até ao final da produção, em 1983, aparecia com a insígnia da Talbot Matra.

Roy Lunn, brilhante engenheiro da Ford e AMC, concebeu a ideia de um automóvel equivalente um turismo, mas com uma carroçaria monocasco elevada e tracção integral. Contactou a FF Developments para o desenvolvimento da transmissão e, em 1979, começou a produção do mesmo, o AMC Eagle. A gama de motores chegou a possuir quatro ou seis cilindros em linha a gasolina, ou um motor seis cilindros turbodiesel. As variações de carroçaria estavam também bem presentes, podendo possuir formatos cabrio, berlina, ou familiar.

Em 1979 a Citroën enveredou por alterações ao Mehari por forma a incrementar as suas capacidades de circular fora de estrada, efectuando a instalação de um sistema de tracção total semelhante ao presente nos modelos FAF, sem diferencial central, com redutora e bloqueio manual do diferencial traseiro.

A Carrozzeria Fissore produziria em 1971 uma versão do Fiat 127 desenhada por Franco Maina com uma carroçaria com porções de fibra de vidro e tecto em lona, de nome 127 Scout. Também a Moretti concretizou um veículo similar em 1972, o Midimaxi.

Numa adaptação das comuns station wagon da década de 80, a Alfa Romeo fabricou um familiar com tracção total e carroçaria elevada, um antecessor das gamas Allroad da Audi e offroad da Volvo. O Alfa Romeo 33 4×4 tinha uma traseira distinta dos restantes modelos 33, à excepção da edição especial Giardinetta 4×4 que possui ainda mais atributos dedicados ao todo-o-terreno. Era um tracção total conectável, sendo que a tracção traseira engrenava por uma alavanca no painel de instrumentos.

Antes da incorporação de tracção total com acoplamento viscoso central (como no Golf Syncro), a Volkswagen produziu o Passat Tetra com mecânica Audi e uma carroçaria com distância ao solo incrementada. A tracção total consistia num diferencial central e um diferencial traseiro livres, bloqueáveis manualmente por comando pneumático, um método similar ao encontrado no primeiro Quattro. Como o eixo traseiro detinha tracção, a suspensão passava a ser triangular com eixo obliquo.

Quando foi lançado ninguém se referia ao Cherokee como a verdadeira aproximação de um todo-o-terreno a uma vertente distinta, mas possuía todas as características para tal, continuando a ser uma das imagens de marca sempre que pensamos no conceito, e influenciando o mercado desde a altura do seu lançamentos até aos dias de hoje.

Com o Country, a Volkswagen avançou ainda mais na ideia de adaptar uma carroçaria corrente para utilização fora de estrada. Partindo de um Golf Syncro (com a sua tracção integral com acoplamento viscoso e suspensão traseira distinta), o Country distingue-se pela maior distância ao solo, posição de pneu suplente, e pelos pneus específicos.

A Toyota, com o Rav4 estava décadas à frente do conceito de uma veículo todo-o-terreno com design desportivo e propósito urbano, tudo conjugado com uma carroçaria de três portas. Apesar da muito maior probabilidade de vermos um Rav4 em cidade do que fora de estrada, com tracção integral sobejamente elaborada, diferencial central autoblocante e diferencial traseiro Torsen, o seu comportamento neste tipo de condições não fica aquém.

Havia já precedentes de automóveis familiares com maior distância ao solo para mais fácil adaptação a superfícies de fraca aderência (sem sair da marca, o Leone e o Gravel), mas o Outback destaca-se por ter servido de inspiração (de forma até algo descarada) para os primeiros Audi Allroad. O primeiro Outback, com base nos Subaru Legacy, era um veículo de elevada qualidade, dinâmica, e resiliência, com um sistema de tracção integral soberbo, tendo-se tornado num dos símbolos da marca.

Por última menção nesta lista, o Land Rover Freelander, porque falar de automóveis que mesclaram o conceito de todo-o-terreno e SUV e não o mencionar, seria uma travestia. Desenvolvido a partir de um Austin Maestro com motor dianteiro transversal, o Freelander possuía tracção total com um simples acoplamente viscoso central em lugar de um diferencial (não permanente). Espantou todos os puristas, foi uma dor de cabeça para os responsáveis de comunicação, e superou logo desde início as previsões de venda do fabricante britânico.

A ideia de “segmento automóvel” aparece cada vez mais esbatida, tal a oferta de soluções intermédias providenciada pelas marcas, de uma forma que o segmento todo-o-terreno/SUV sofre de um mal geral da indústria automóvel dos dias de hoje. A capacidade de offroad dos SUV’s actuais será sempre um ponto de discórdia para os derradeiros puristas dos veículos todo-o-terreno, por mais que alguns deles cheguem mesmo a ter provas dadas, mas pela possibilidade de versatilidade (e, aparentemente, um sentido actual de favorecimento pelo design), acabam por ser o segmento com maior evolução de vendas dos últimos anos, não se prevendo uma inversão nos que se seguem. Resta saber se nestes não nos veremos obrigados a uma nova recategorização.