Os Corvettes Italianos: O Kelly Vignale

08/06/2020

Os projectos mais interessantes no mundo dos automóveis são, usualmente, resultado da visão única de uma personalidade com a ambição e meios para embarcar na aventura de transformar uma ideia complexa em realidade. Gordon Kelly foi um desses visionários.

No início da década de 60, Kelly trabalhava como designer ao serviço de Brooks Stevens, um verdadeiro gigante do design industrial nos Estados Unidos ao longo dos anos 50 e 60, responsável por criações tão icónicas como o Jeep Wagoneer, as carruagens Skytop Lounge construídas pela Pullman e a Harley Davidson Hydra-Glide. A fama do patrão de Kelly colocava-o numa situação delicada; o designer nutria há vários anos a intenção de criar o seu próprio Corvette como expressão pessoal de um ideal estético, objectivo que poderia ser mal interpretado pelo influente Stevens como um esforço por parte de Gordon para se afirmar publicamente e, talvez mesmo transformar-se em concorrência para a própria firma que então o empregava. Felizmente tal não foi o caso e Stevens acabaria aliás por beneficiar dos contactos que Kelly viria a estabelecer na Itália para ajudar no desenvolvimento de protótipos para a Studebaker, construtora que possuía contrato com a firma de Stevens.
Gordon Kelly ponderou cuidadosamente a criação do seu Corvette, tendo inclusive esculpido um modelo detalhado do automóvel à escala 1/8. Contactada pelo designer, a General Motors ficou intrigada com o projecto e concedeu permissão para o embarque de Kelly na aventura italiana. Este partiu então em busca do contexto ideal para dar vida à sua visão. Em Turim, na Carrozzeria Vignale, Kelly deparou-se com uma companhia perfeitamente capaz de realizar o sonho de um Corvette criado de acordo com as suas especificações exactas. Aliás, o trabalho realizado pela Vignale para a Ferrari na década de 50 influenciara profundamente o design adoptado por Kelly, o qual se inspirou nos 212 Coupe concretizados pela popular construtora de carroçarias.

O proprietário deslocar-se-ia à Vignale diversas ocasiões no decorrer do projecto; contudo, a primeira visita não foi cedo o suficiente para evitar que os trabalhadores da firma italiana destruíssem por completo a carroçaria de fábrica do Corvette (modelo de 1959 ou 1960, fontes divergem), a qual Kelly esperava poder vender de modo a recuperar algum do investimento no projecto. O acto não foi malicioso, simplesmente uma falha de comunicação; os artesãos da Vignale, não acostumados a elementos em fibra de vidro, não consideraram o exterior do automóvel como de qualquer valor, não poupando à força bruta no processo de desmontagem. A nova carroçaria seria moldada no processo tradicional de painéis batidos sobre um molde de madeira, logo a original era – para os funcionários da Vignale – completamente inútil. Apesar de a desmontagem ter ocorrido então na Carrozzeria Vignale, muito do trabalho acabaria por vir a ser realizado na Carrozzeria Sibona & Basano, também em Turim. As duas companhias tinham relação familiar além de profissional, visto Walter Basano ser sobrinho de Alfredo Vignale.
A dramática grelha oval domina a frente do automóvel; o restante da carroçaria é desprovido de adornos ou elementos que comprometam a aerodinâmica. O pára-brisas foi retirado de um Lincoln e cortado à medida na nova criação; já as extraordinárias jantes de oito pernos em alumínio são únicas ao automóvel, tendo sido produzias pela Kelsey-Hayes (décadas antes da firma ser adicionada ao portfolio da Lucas por meio da fusão com a Varity). Os pára-choques traseiros são extremamente interessantes e bastante à frente do seu tempo, consistindo de blocos em borracha muito semelhantes aos que viriam a ser instalados em Porsches da década de 80. Também de interesse e com uma semelhante tendência futurística, os puxadores do automóvel são reminiscentes do que viria a ser possível encontrar nos Aston Martin Vantage do início do milénio. O interior do Corvette Kelly manteve-se praticamente inalterado em relação à versão de fábrica, excepto a inclusão de um conta-rotações Jaeger proveniente de um Abarth.
O sonho de Gordon Kelly acabaria por exigir 14 mil dólares para ser realizado, uma soma muito considerável no início da década de 60. Relembre-se que, à data, um Corvette novo exibia um preço de venda ao público de pouco mais de 4 mil dólares. Apresentado na edição de 1961 do Salon de l’Automobile em Paris, o Corvette Kelly foi uma das sensações do evento, tendo assegurado bastante atenção mediática. O automóvel permaneceu na posse de Kelly até ao seu falecimento em 2004. Nessa ocasião, foi vendido e passou a integrar a colecção de John Breslow, a qual inclui igualmente exemplos do Jaguar XKSS, E-Type Lightweight, Shelby Cobra 289 e um de apenas nove Alfa Romeo TZ3 Stradale Zagato.

Com o automóvel, Breslow tornou-se igualmente o guardião de todo o material associado ao design e construção do Corvette Kelly Vignale, incluindo o modelo à escala e os esboços originais, assim como toda a correspondência trocada entre Gordon Kelly, GM e Vignale; um espólio inestimável para acompanhar uma criação única. Num vídeo da Petrolicious em 2016, Breslow descreveu o automóvel como “a van Gogh you can drive”.