O curioso Clube dos Packard mortos na Noruega

19/07/2018

Viajei para a Noruega esta semana, a primeira vez que fui este país. O motivo não podia estar mais distanciado dos veículos clássicos, porque fui testar dois novos Hyundai, um elétrico e outro a fuel cell de hidrogénio.

A Noruega é um dos países com maior interesse e investimento ligados à criação de uma rede de produção e abastecimento de hidrogénio, o que justificou esta longa, mas muito curta viagem — com uma estadia de apenas 18 horas.

Já tinha feito o primeiro contacto com o SUV elétrico, que em Portugal se vai chamar Kauai e chegou a altura de passar para o Hyundai Nexo. Este é o revolucionário modelo com célula de combustível, que vai ser lançado muito em breve no mercado norueguês. No resto da Europa, depende da criação de redes de abastecimento de hidrogénio. É praticamente impossível que venha para Portugal.

Estava já a terminar o meu test-drive a solo de cerca de 50 quilómetros, quando passei ao largo de um edifico banal. Parecia um pequeno armazém. Mas pude vislumbrar quatro automóveis americanos dos anos 50, atrás do edifício. Um deles era claramente um Studebaker Champion, aquele modelo com uma grelha curiosa: parece que o automóvel está a chupar um limão!

Decidi voltar para trás e investigar aquela aparição com o detalhe possível. Parei o silencioso Nexo ali perto e desci uma rampa de terra. Agora já podia ver que, além do Studebaker — aquela grelha não lembra ao diabo, de facto… — estava um vistoso De Soto, um Nash Rambler e, mais afastado um pouco, um Kaiser.

Um tema fora do comum

Mesmo em frente estava a entrada de uma garagem. Aproximei-me e vi um cavalheiro lá dentro. Soltei um “escuse me” e um “hello” e perguntei-lhe se falava inglês. Ele respondeu um tímido: “a little” e para mim, chegou.

Entrei e expliquei-lhe de onde vinha e o que andava por ali a fazer. Disse-lhe que estava muito surpreendido por ver aqueles automóveis tão raros e bem apresentados.

Ele disse-me que se chamava Per Ronninj e explicou que aquilo era um clube. Mas não é bem um clube como os outros. Tinham uma lista fechada de modelos e marcas, que só incluía construtores americanos que abandonaram a produção depois da II Guerra e que não tinham relação com os três grandes: General Motors, Ford e Chrysler.

O clube foi fundado em 1977 e inclui apenas oito marcas americanas, todas extintas entre 1946 e 1966. Por isso se chama EAC (Eight Amcars Club)!

À cabeça estava a Packard, mas também a Nash, a Hudson, a Studebaker, a De Soto, a Kaiser, a Frazer a Henry J. (sub-marca da associação Kaiser-Fazer) e a Willys. Muitos destes construtores sobreviveram à II Guerra e produziram bons automóveis, mas não conseguiram manter o ritmo de desenvolvimento para competir com o poderoso triunvirato da indústria americana.

Na oficina estavam um Studebaker coupé, com motor V8, cujo restauro estará terminado em breve, um lindo Packard Clipper, provavelmente em manutenção e um estranho Henry J., que era um modelo de baixo custo da Kaiser, numa tentativa quase desesperada de se manter rentável.

Identifiquei-o de imediato, porque existe um bom exemplar em Penafiel. O Per explicou-me que foram vários exemplares para a Noruega, que nos nos 50 tinha muitas limitações à importação de automóveis.
Como o Henry J. era montado em Israel, um acordo comercial com aquele país permitiu a vinda de várias unidades para perto do Polo Norte.

Mas há mais

O meu simpático anfitrião levou-me depois ao piso de cima, com ajuda de uma escada de caracol. Ali fica a área de exposição, com mais nove automóveis.

Uma das paredes nesta divisão com um pé direito de mais de três metros, está forrada com um quadriculado de centenas de fotografias, que representam todos os automóveis do clube. Com um tema tão restrito, surpreendeu-me saber que tem 100 sócios e 312 automóveis!

Lá ao fundo, outro lindo Packard, desta vez, descapotável. A sua alcunha é “Carro do Rei”, porque o Rei Haakon VII da Noruega, no final dos anos 40, quis conduzir um automóvel, em vez de ser sempre conduzido. Não percebia de automóveis e os seus conselheiros indicaram-lhe várias alternativas. O Rei escolheu um Packard descapotável igual a este, porque os reis têm muito jeito para escolher o que é melhor.

Outro Henry J. Faz companhia a dois Hudson Hornet de gerações diferentes e um espetacular Studebaker Wangonaire, cuja particularidade é ser descapotável no espaço dedicado à bagagem. A marca anunciava que era excelente para transportar frigoríficos, mas duvido que essa vantagem fosse usada com frequência.

Mas, a Wagonaire fazia certamente a delícia das crianças na época pré-isofix e também dos cameramen, que tinham excelentes condições para trabalhar. Daí vários exemplares terem estado ao serviço de estúdios de cinema.

Familiares mas desconhecidos

A sala faz lembrar a área comum de uma associação tipo casa do povo, com várias mesas arrumadas em quadrados, respetivas cadeiras, cortinados tradicionais e vasos com plantas. De um lado, uma pequena copa, para petiscos e bebidas. É o local de encontro para os membros deste inusitado clube. Não faltam vários gira-discos, muitos LPs empilhados e dezenas de fotos de artistas de música e cinema.

O estilo e a atitude são-me familiares, com as poupas levantadas, os cabelos com volume e os olhares sedutores. Mas, eu não reconheço nenhum!

O Per, percebendo a minha perplexidade, diz: “O presidente do clube é um grande colecionador de memorabilia da época de ouro do Rock n’ Roll norueguês!”

Um clube ativo

O Clube organiza eventos regularmente, sendo que o encontro anual é, evidentemente, no dia 4 de julho. Ali juntam-se com outros colecionadores de clássicos americanos, mas o Per solta um lamento: “Agora é só Camaros e Mustangs… Mas as pessoas gostam sempre de ver os nossos automóveis, que saem pouco à estrada”.

Isto, apesar de, na Noruega não haver, pelo menos para já, qualquer impedimento de circulação dos veículos históricos. Os membros do clube alugam também os seus veículos a turistas e outros eventos especiais, como casamentos ou festas de empresas.

Já novamente na oficina, diz-me que o Studebaker coupé verde é dele. Restaurou outro — que ainda tem — há vários anos, e este foi comprado como apoio à recuperação. Mas há uns tempos decidiu que também merecia melhores dias. Recentemente, vendeu um Citroën DS Cabriolet. “Era muito bonito, mas prefiro os nossos americanos. Além disso, vendi-o por bom dinheiro. Estou reformado e é altura de organizar a minha vida.”

Despedimo-nos como amigos, antes de eu entrar no Hyundai a hidrogénio. Admitimos ambos que provavelmente é o futuro, mas concordamos também que tecnologia de nenhuma espécie superará o encanto de um grande V8.

Quando lhe contei que ia escrever um artigo para o Jornal dos Clássicos, disse-me para mandar cumprimentos a todos. E, se um dia passarem por Sørum, a alguns quilómetros de Oslo, procurem um armazém com clássicos americanos de marcas falecidas. Podem dizer ao Per que vão da minha parte e só darão pelo tempo a passar para trás.

Adelino Dinis/Jornal dos Clássicos

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