Diz-se que um homem adulto é uma criança grande e é bem verdade. O brinquedo é um estabilizador emocional das crianças que assume o mesmo papel nos adultos masculinos. Naturalmente que variam em grau, escala e são definidos, muitas das vezes, como óptimos investimentos ou como obras de arte de apreciação subjectiva.

Assim há quem se baste por aumentar a sua colecção de Dinky Toys, quem acumule revistas contemporâneas à sua adolescência, os que querem o brinquedo a mexer-se numa pista Scalextric e os que se querem agora meter dentro do brinquedo com que sonharam quando o sonho comandava a vida.

Eu sou dos últimos, embora frustrado porque sonhava muito. E, nessa modesta realização dos sonhos de infância e especialmente de adolescência, mal me apanhei com uns tostões no bolso, usei dos dotes argumentativos inerentes à minha profissão e abri caminho no interior da família para me justificar.

Adquiri primeiro um Triunph Stag que veio a brilhar por fora e podre por dentro o que, na altura, significava que cada vez que saía nele, a seguir ia para a oficina e a carteira sofria e mingava. Mas fiz uma épica viagem ao Algarve nele que, se não tivesse outra vertente paralela, teria sido um pesadelo.

Troquei-o por um MGB vermelho e mais algum dinheiro e nesse dia senti uma alegria inaudita. Gozei este carro de forma intensa, melhorei-o e pintei-o de verde escuro, estofei com couro de Búfalo e saía nele com o orgulho de quem se sente bem consigo mesmo.

Até que um dia vi um MGA lindo (HC-24-35) e, como esse era o meu MG de eleição, não descansei enquanto não o consegui comprar, operando a troca do “B” pelo “A”, o que constituiu uma progressão inversa à ordem das letras.

Em Barcelos encontrei um interlocutor experiente (Manuel Norberto Lopes Gonçalves) que exibia já uma colecção fantástica e restaurava então um BMW 328 na sua antiga casa, distribuindo pelas respectivas divisões os componentes que iria montar segundo o seu destino, na sala os do motor, na copa os cromados, na sala da TV os estofos, etc.

Fizemos negócio mas fiquei com a sensação de que roubara ao vendedor o seu amor querido e de facto foi dos carros mais lindos que já vi e, felizmente, tive. Fiável e exuberante como convém na sua condição de carro aberto era delicioso de guiar deixando a cada paragem uma ansiedade em prosseguir viagem.

Não contente com tamanha alegria, renovada a cada dia em que punha os olhos no MGA, começou a bailar nos meus sonos leves a lembrança do carro que me punha o coração a bater forte – o Porsche 911S da época em que, em Lisboa, andava na faculdade, isto é, de 69 a 74.

Convenci então alguns amigos a visitarem comigo a feira de Essen em Abril de 2002 e aí regalei os olhos com os carros fantásticos que ali se expunham.

Decidi comprar um Porsche 911S, 2,2 de 1971 em estado “indescritível” ou seja um “caco”.

Trouxe-o para o Fernando Riboira e francamente fiquei tão depenado quanto feliz pelo brinquedo de luxo em que ele transformou a peça de lixo que eu comprara. Um espanto. Perfeito, mas sem parecer um carro saído agora da fábrica. Um clássico como deve ser um clássico.

Fui trabalhar muitas vezes com o Porsche (PP-82-64) e viajei um pouco com ele mas a rotina profissional consome e desgasta esta versão jovial de mim e, em breve, era mais o tempo de garagem do que o de movimento. Em 2009 decidi (mal, como sempre me disse o meu avô sobre a venda do que é nosso) vender o MGA e o Porsche.

Após consumar essa decisão tão sensata quanto tola segundo o ângulo de julgamento, entrei no limbo cinzento do bom senso e virei a cara sempre que passava por mim uma tentação, até que um facto, que não sei bem identificar mas que deve ter existido, me fez começar a comprar revistas de clássicos.

Na sequência da falência da famosa Mundauto, onde havia alguns Fiat antiguinhos, como um 124 Spider e um 500, olhei para o primeiro como uma boa hipótese de não ficar pobre com a compra de um cabrio bonito e carismático. Afinal era uma peça de história nos Rally de Portugal.

Como fazer negócio com clientes está fora de questão, iniciei a displicente busca de um Fiat 124 Spider que teria de ser a versão europeia, de preferência 1800 CC e, como arquétipo, tinha o carro verde do Manuel Pereira Alves (GP-21-00) e uma recordação de um outro, branco, pertencente a um médico cujo nome não me lembro e que circulava pelos mesmos sítios que eu nos anos 70.

Num momento de ócio, antes de abrir o primeiro dossier da tarde, circulava eu como abutre no leilão online da autoridade tributária na esperança de encontrar um prédio a preço de saldo e vi um 124 Spider em venda.

Olhei para o carro e fiquei a pensar novamente no assunto do Fiat mas recusei aquela via de atingir o meu fim pois o carro deveria estar uma desgraça.

Procurei então nos sítios do costume e descobri um reluzente Spider vermelho de um anunciante situado na Coina (famosa localidade integrante da cintura erótica de Lisboa).

Convenci a minha mulher a vir comigo numa deslocação profissional a Lisboa e “já agora” a aceitar um desviozinho para ver um carro em que remotamente eu estaria interessado em comprar, desafio que fiz acompanhado de um discurso profundamente lógico e sustentado em premissas muito sólidas, fazendo-me suar as estopinhas no esforço argumentativo.

Contudo, o carro apesar de bonito, exibia uma serie de pústulas na pintura que presumia a ferrugem interna, o que me fez fugir ligeiro daquela hipótese, para satisfação da minha cara metade que achou que eu recuperara o siso. Engano dela pois, de regresso, alavanquei as consultas aos sites e voltei a olhar para o pobre Spider penhorado pelas finanças.

Num daqueles momentos, de palermice incontrolável, cliquei no botão de licitação após oferecer mais um euro do que o preço base e, arrependido, esperei que alguém me superasse na patetice, mas tal não aconteceu e, no fim do leilão, o Spider era meu.

Sem o ter visto e sem saber como estava. O sarilho estava instalado. Combinei com o fiel depositário nomeado pela AT levantar o carro numa sexta em que fui a Lisboa, tendo preparado o transporte respectivo.

Cheguei ao local onde estava o carro segundo a informação obtida das Finanças e achei que apontara mal a morada da Calçada da Ajuda 88, pois ali jazia uma funerária. Como estava fechada a porta da Funerária, decidi esperar pelas nove horas e ver se aparecia alguém, o que sucedeu logo de seguida, chegando o pessoal que me confirmou ser ali que o Spider estava.

Mas, como não via o carro, fiquei surpreendido com a confirmação da morada, até que os vi arrastarem as urnas que aguardavam serenos clientes e, por trás delas, surgir o triste Spider, sujo, descaracterizado por umas faixas plásticas laterais e uns espelhos retrovisores laterais medonhos também de plástico negro.

Fiquei dividido entre dar uma chapada a mim próprio de castigo pela minha irreverência e disfarçar o disparate que fizera com a aparência de que tudo estava planeado.

Chegou o fiel depositário que, muito simpaticamente, me fez assinar o papel que lhe permitia ver-se livre daquele trambolho. Contudo, ao fim de algum tempo, criou empatia comigo passando a contar-me que o seu filho era um perigoso amante de carros clássicos e, por isso, lhe ocultara sempre a guarda daquele carro para ele não sofrer tentações.

Também me justificou a falta da chave da ignição, relatando que o carro fora rebocado por estar mal estacionado e depois, no depósito da PSP, quando o dono foi pagar a multa e fazer o levantamento, à saída, foi impedido de continuar por entretanto alguém na polícia ter encontrado aquela matrícula na lista de veículos penhorados pelas finanças.

O dono, revoltado, saiu do carro e levou consigo as chaves, displicência explicável por ter certamente a ideia de que o carro nada valia. Saiu-me pois na rifa um abandonado pelo dono que o descuidara de forma militante.

E assim se desenhava no meu espírito uma missão de salvamento de um automóvel que só na minha fértil imaginação tinha beleza.

Criada a necessidade só restava encontrar a forma de a preencher e, depois de despejado o Fiat na minha garagem de recolhas, pedi a um mecânico que tem de sensibilidade para estes veículos com alma, tanto quantos os cabelos que não tem, para tentar desbloquear as rodas e pôr o carro a trabalhar com a ajuda de um canhão de ignição novo.

Fê-lo, mas de forma tão bruta e deselegante que não descansei enquanto não tirei o Spider daquelas mãos de algoz, pedindo de seguida ao José Carlos Barquinha que recebesse este doente e abandonado para lhe dar nova oportunidade de brilhar.

Embarcou então o Spider para Guidões – Trofa – (terra ideal para um jogo de caça ao tesouro, pela dificuldade em chegar lá) e aí esteve de Fevereiro até agora num processo lento e desanimador.

Desmontar tudo, tirar motor, decapar a tinta, arranjar a chapa (felizmente só dois pequenos pontos de ferrugem), retirar a mecânica (motor impecável), preparar, pintar, relacionar peças aproveitáveis e as que foi necessário comprar, estofar, montar, melhorar os cromados, colocar vidros, borrachas e tantos pormenores que só quem faz esta tarefa com gosto sabe fazer, foi um processo ao mesmo tempo penoso pela impaciência de uma história que aparentava não ter fim e, por outro lado, gratificante pela modificação que se via surgir, dia após dia, prometendo a obra final correspondente às minhas expectativas.

O Barquinha lá me ia enviando umas fotos sempre que pressupunha que eu estava a perder o entusiasmo e os meses foram passando testando o meu exercício de paciência.

Entretanto, a espera tem-me feito sonhar com o incremento da frota, mas como as paixões não são paixões senão quando há um alvo único, para já é apenas o sonho mitigado pelas recordações dos carros que me fizeram vibrar na juventude com o tempero dos valores elevadíssimos que hoje correm.

Texto: Matias Serra

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