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Ford Escort RS Cosworth: O matador de Integrales

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O Ford Escort Cosworth está inserido entre os mais memoráveis automóveis derivados do Grupo A. No entanto, pode ser considerado um dos automóveis mais complicados.

 

Mais complicado para mim, pois é impossível manter a imparcialidade. Vou abrir o jogo: é o meu favorito! Sim, mesmo em relação ao Delta Integrale. Disse-o! Não por ser melhor ou pior do que qualquer outro, mas, unicamente, por ter tido uma marca em mim enquanto adolescente petrolhead. Quando se tem 12 ou 13 anos não é fácil lidar com a presença diária de um Escort Cosworth. Muito menos quando é um Escort Cosworth vermelho, imaculado, e conduzido por uma mulher que, como hei-de dizer…não ficava atrás do Cosworth em termos estéticos. Pronto, penso que fui discreto… Já agora, essa mesma senhora alternava entre o Escort Cosworth e um BMW E36 M3 Coupé, em Alpine White. A minha adolescência não foi fácil…Bom, voltando ao que interessa.

Para falarmos do Escort Cosworth, temos de recuar um pouco. Mais precisamente, ao fim do Grupo B, em 1986. Com este, as marcas focaram a sua atenção no Grupo A, e a Ford não foi excepção. Contudo, o Sierra (utilizado nas versões de tracção traseira Cosworth e tracção integral XR4x4) mostrava-se aquém da concorrência.

 

Ao Sierra Cosworth faltava tracção e agilidade, ao XR4x4 faltava potência. Ambos estavam bastante aquém do Delta Integrale, mais potente, leve e muito mais ágil. A Ford tentou colmatar estas falhas com o aparecimento do Sierra RS Cosworth 4×4 em 1990, mas sendo derivado de uma berlina familiar, nunca conseguia fazer frente ao leve e compacto Lancia.

A solução era clara: Ford Escort. A Ford preparava-se para lançar a quinta geração Escort e decide criar ao mesmo tempo a sua nova arma para o Mundial de Rally. E aqui está outra das razões pela qual eu considero o RS Cosworth tão especial, pois com o Escort “civil” partilhava o nome e apenas alguns componentes da carroçaria. Ao contrário dos seus concorrentes, que utilizavam de facto de versões normais dos seus automóveis para criar os modelos de homologação, o que a Ford fez na realidade foi criar quase um automóvel à imagem do antigo Grupo B, mas produzido em maiores quantidades, e dentro das novas regras do grupo A.

O que a Ford fez foi simplesmente transplantar o motor, transmissão e suspensão do Sierra RS Cosworth 4×4 para a carroçaria do Escort. Como a aplicação directa não era possível, o chassis e a carroçaria do Escort normal foram de tal forma modificadas pela alemã Karmann, que na prática o RS Cosworth era um automóvel novo, único, mas ainda assim, de alguma forma, dentro das normas do Grupo A. Motor Cosworth em posição longitudinal, suspensão independente nos dois eixos, do tipo Mcpherson, e vias bastante mais largas. No final, o RS Cosworth partilhava menos de 50% dos painéis da carroçaria com um Escort normal. O mais Grupo B dos Grupo A.

Lançado em 1992, contava com o motor Cosworth YBT, que era uma evolução do utilizado no Sierra Cosworth, com uma nova gestão electrónica e um grande turbo híbrido Garret T3\T04B, o mesmo usado no Ford RS200, com um enorme turbo-lag, mas necessário para servir de homologação.

A transmissão era também herdada do Sierra, com uma caixa de cinco velocidades, dois diferenciais autoblocantes do tipo viscoso (central e traseiro) e uma repartição de 66% da potência para o eixo traseiro e 34% para o frontal.

Em termos de suspensão, a Ford manteve à frente a solução Mcpherson com um braço inferior simples, que funcionava em automóveis de menor potência, mas que foi uma das características mais criticadas do design do Cosworth, pois um braço inferior simples não conseguia dar a precisão e rigidez necessária a um automóvel com as performances do Cosworth. A Ford tentou minimizar o problema ao ancorar a barra estabilizadora ao braço inferior para reforçar o mesmo, mas era ainda assim insuficiente. Esta falha era amplificada por a direcção precisa ser exactamente um dos pontos fortes do rival Integrale. Atrás mantinha-se a tipologia Mcpherson mas com braços inferiores do tipo “semi-trailing arms”, mais capaz de lidar com as forças aplicadas ao eixo traseiro.

O design do Escort RS Cosworth é sem dúvida outra das razões que faz dele um ícone. Stephen Harper e Frank Stephenson criaram uma silhueta tão reconhecível como a de um Porsche 911, as proporções musculadas mas ao mesmo tempo carregadas de uma elegância completamente atípica para um automóvel deste tipo.

Encontra-se muita desinformação acerca do desenvolvimento e sobretudo do design do Escort RS Cosworth, lendo-se inclusivamente em alguns sítios que o desenho deste teria ficado concluído antes e assim teria influenciado o desenho do Escort “normal”. O facto de no lançamento do Escort regular estarem presentes protótipos do RS Cosworth, ajuda à confusão.

Tive oportunidade de falar com o próprio Stephen Harper, noutro contexto, e aproveitei para ter dois dedos de conversa sobre o Cosworth. A verdade é que o Escort mk5 já estava terminado e pronto para entrar em produção quando foi iniciado o projecto RS Cosworth. Esteticamente o Cosworth funciona tão bem porque a Ford SVE deu liberdade criativa à equipa de design.

As agressivas saídas de ar no capot e atrás das rodas da frente eram essenciais para dissipar o calor gerado no compartimento do motor em competição. O famoso “whale tail” traseiro e o enorme spoiler frontal ajustável foram desenhados ao pormenor para fazer do RS Cosworth o primeiro automóvel de produção capaz de gerar downforce sobre os dois eixos. Sim, o design tinha de ser funcional. Mas não foram colocadas outras limitações relativamente ao desenho, e é por isso que o Escort RS Cosworth é o design mais coeso, mais homogéneo deste grupo. Mesmo os apêndices de dimensões generosas, como o spoiler traseiro, ou as inconfundíveis jantes envoltas em enormes – para a altura – pneus 225/45 R16, tudo faz parte de um desenho muito fluido. É essa a melhor palavra: fluído. Elegância e músculo não só convivem mas complementam-se.

Em 1994, a produção das 2500 unidades necessárias para homologação estão produzidas, e a Ford opera uma série de alterações ao Escort RS Cosworth para o tornar mais utilizável, sendo o mais notório a evolução para o motor Cosworth YBP (identificável pela tampa das válvulas de cor prata, enquanto que a anterior versão YBT ostentava a cor Azul), com nova electrónica e um turbocompressor mais pequeno Garret T25, muito mais utilizável, ainda que perdendo a capacidade de subida de regime explosiva do YBT. Esta segunda série é tida como um produto bastante mais maduro, e até mesmo uma melhor experiência de condução, mas é inegável que alguma da magia da primeira série é perdida. Prova disso: nesta segunda série, o característico spoiler traseiro era opcional, algo incompreensível, tendo sido vendidas pouquíssimas unidades nessa configuração.

Em 1996 a Ford encerra o capítulo Escort RS Cosworth, com apenas 7145 automóveis manufaturados, e esta é a expressão correcta, pois cada unidade foi cuidadosa e artesanalmente produzida pela Karmann na Alemanha, pois só dessa forma se garantia a qualidade e rigor necessários a um automóvel com o caderno de encargos do Cosworth.

Conduzir um Escort RS Cosworth é uma experiência única. Todas as sensações são ampliadas pelo facto de saber que estamos a conduzir algo verdadeiramente especial e único. Não que o Subaru, Mitsubishi e Toyota que falamos antes não o sejam, mas sentimos que estamos a mexer em algo quase sagrado com o Ford.

Somos recebidos por um interior em tudo semelhante a um Escort MK5 normal, mas ao mesmo tempo, é impossível os nossos olhos não saltarem logo para os lindíssimos (ainda que algo escorregadios quando forrados a pele) bancos Recaro, e para os 3 manómetros extra no centro do tablier. O fechar de porta sólido e seco também nos distancia dos comuns Escort, e denotam uma solidez e rigor de construção acima do normal.

Rodamos a chave e apenas ouvimos o rumor do motor algo distante, silenciado pelo enorme turbo. Abaixo das 3000 rpm nada acontece. Os 304 Nm de binário máximo são atingidos apenas ás 3500 rpm, mas idealmente a agulha do tacómetro deve estar sempre acima das 4500 rpm, sobretudo para não sermos apanhados pelo “fosso” entre a 2º e a 3ª velocidade. Assim garantimos uma subida de regime viciante e ritmos que ainda envergonham muitos dos actuais e mais potentes “hot hatch”.

Mais viciante que o seu motor é a capacidade e a forma como o Escort devora curvas. Sim, o eixo frontal não tem a rigidez desejada e a direcção não é comunicativa e não tem a precisão que tem o rival Integrale, mas é directa e rápida, muito rápida. Tão rápida que pode provocar algum desequilíbrio senão utilizada com a devida atenção. A seguir basta saber dosear o binómio acelerador/travão e o Escort roda sobre si e coloca a traseira na posição certa para sair em potência, com uma ligeira e controlada deriva de traseira. Um controlo perfeito de movimentos graças a um chassis equilibrado (com uma distribuição de peso muito próxima dos ideais 50/50) e de elevada rigidez, uma transmissão simples mas eficaz e bem calibrada, e uma suspensão capaz de um comportamento exemplar e ao mesmo tempo uma capacidade de absorver irregularidades do piso, e mesmo abusos do condutor, parecendo nunca chegar ao seu limite, mostrando claramente a sua génese do mundo dos Rallies. Juntamos a isto um sistema de travagem que surpreende pelo poder de travagem e por um ABS bem calibrado (tendo sempre em conta que falamos de um automóvel de 1992).

Abrandamos o ritmo e o nosso coração é conquistado outra vez pela visão do enorme spoiler traseiro no retrovisor, pelas inconfundíveis saídas de ar no capot, por ser capaz de ser refinado, confortável e até mesmo silencioso, quando ainda há pouco estava a curvar a velocidades que desafiam as leis da física.

E quando voltamos a sair dos magníficos Recaro, todas aquelas formas são exóticas e raras, e ao mesmo tempo tão familiares, transportam-me novamente para uma época em que tudo na minha vida girava à volta dos automóveis, e apetece-me abraçar aquele miúdo de 12 anos e dizer-lhe: “continua a sonhar com eles, vais ver como vai valer a pena”.